No último 27 de janeiro foi amplamente veiculado nas mídias sociais vídeo em que o presidente do Brasil ataca violentamente a imprensa com verborragia ácida de baixíssimo nível. Sem poupar palavras, com ódio exalando pelas narinas, o desequilibrado presidente vociferou num almoço com legião de puxa-sacos: “Vai para a puta que pariu. Imprensa de merda essa daí. É para enfiar no rabo de vocês aí, vocês não, vocês da imprensa essa lata de leite condensado”. A ação teve a conivência de inúmeros ministros de estado, dentre os quais o da Infraestrutura, do Turismo, das Comunicações, das Relações Exteriores, além de secretários especiais de Cultura e da Pesca. No vídeo, vê-se bem um vibrante chanceler brasileiro Ernesto Araújo adulando desavergonhadamente o chefe, com aplausos e aprovação aos gritos de “mito, mito”.
É redundante dizer que a manifestação presidencial foi gravíssima. Por diversas perspectivas assombra. Para começar, a postura é incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Por isso mesmo, viola a previsão do art. 9º, 7, da Lei n. 1.079/50, configurando crime de responsabilidade contra a probidade na administração, enquadrando-se, por consequência, na previsão do art. 85, V, da Constituição, que dá azo para mais um pedido impeachment a se somar aos, salve engano, 63 já apresentados. Não há sequer como tentar justificar que a fala do ocupante do Planalto foi a fala individual do cidadão Jair Bolsonaro, porque ele entoou a ira na condição de presidente da república furioso com denúncias que davam conta de que seu governo havia superfaturado, com dispensa de licitação, a compra de inúmeros produtos alimentícios desnecessários, a exemplo de leite condensado, bombons, goma de mascar etc. Cada unidade de leite condensado, por exemplo, teria custado aos cofres públicos R$ 162,00. No total, R$ 1,8 bilhão fora torrado em 2020 enquanto a população sofria as consequências do descaso do governo no enfrentamento à pandemia de Covid-19. Farra para uns, falta de oxigênio para outros.
Mas essa ação do presidente não foi grave apenas pelo crime de responsabilidade cometido. Bem além disso, o inconsequente que responde pelo comando da nação agrediu severamente a imprensa por ter feito exatamente aquilo que se espera que faça numa democracia, informar a população e denunciar em público desmandos que, se não denunciados, serão esquecidos e naturalmente replicados. Imagine-se o que seria da situação, a depender do governo, já que ontem mesmo o Portal da Transparência que continha as informações objeto da denúncia foi retirado do ar? Ou seja, ao negar o valor da imprensa, ao contrário, opor-se à mesma, tratando-a como inimiga, a ação de ontem consumou-se como perigosíssimo ataque à democracia no Brasil.
Para completar, o presidente conscientemente expôs ao risco a integridade física e a vida de milhares de jornalistas que diuturnamente vão às ruas exercer o mais que necessário trabalho de informar. Pessoas que, já de algum tempo, mas sobretudo agora, estarão sob a mira de um exército de fundamentalistas, trogloditas armados até os dentes, que não sabe diferenciar o certo do errado, e que transforma em pancadaria o ódio fomentado pelo embusteiro palaciano. Para estes profissionais, coletes à prova de bala serão poucos. Terão que andar em carros blindados, com apoio de escolta e direito a adicional de periculosidade, risco de vida, seguro pessoal, dentre outros benefícios do gênero. A necropolítica do governo se espraia para todos os lados, da perversidade no lidar com a pandemia à propagação do ódio contra os inimigos imaginários. Também ontem, a casa da covereadora negra e trans de São Paulo, Carolina Iara, foi atacada a tiros. Está-se às vésperas do terceiro aniversário da execução brutal da vereadora negra, feminista, do Rio de Janeiro, Marielle Franco, e sequer se consegue punir os mandantes da ação covarde. A ira está sendo naturalizada no país ao contrário da fraternidade.
Há quem, entre quatro paredes, sussurre que a imprensa brasileira merece a hostilidade do governo, afinal, endossou o golpe de 2016, difundiu a criminalização da política, apoiou o crescimento do fascismo. Seria, portanto, vítima de seus próprios erros. Tudo isso é verdade, parte da imprensa tem culpa no mal feito, mas nada justifica condescender com o curso macabro dos desdobramentos no país. É importante que as análises nesse momento não concluam com o fígado aquilo que precisa ser concluído com a razão, inclusive porque para cada dono de grande veículo de comunicação, para cada jornalista de costa larga, há centenas de profissionais repórteres, câmeras, fotógrafos, cinegrafistas em geral, cujo uso do crachá doravante poderá se converter num passaporte para a morte. A mídia em peso, convencional e alternativa, bem como entidades e associações de classe, da área jornalística e de defesa do Estado democrático, parlamento, justiça, precisam agir nesse momento sob pena do cenário se tornar incontornável.
Marcelo Uchôa, Advogado e Professor de Direito da Universidade de Fortaleza. Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) – Núcleo Ceará. Twitter/Instagram: @MarceloUchoa_