Democracia Socialista

Juros altos e oportunismo climático no caminho da reconstrução do RS | Carlos M. Guedes de Guedes

Uma das maiores proezas da narrativa do pessoal da Faria Lima é fazer de conta que juros altos não retiram recursos públicos que poderiam atender necessidades reais das famílias e empresas. No contexto da maior catástrofe climática do Brasil ocorrida no Rio Grande do Sul, a aliança dos mais ricos com o mercado financeiro só vale quando há lucro envolvido. Quando há prejuízo, tratam logo de compartilhá-lo com a toda a sociedade, e rapidamente abandonam as soluções de mercado, pedindo dinheiro público. Mas não dizem nada sobre baixar juros para isso.

Maio de 2024. As imagens rodaram o mundo mostrando o desastre que impactou o Estado do Rio Grande do Sul. Na capital, o vídeo mostrando parte do primeiro andar do Mercado Público Central submerso remeteu a lembrança da dramática enchente de 1941. Na região metropolitana, o desespero tomou conta de quase 3 milhões de pessoas que tiveram suas casas ou empreendimentos inundados. No interior, aproximadamente 200 mil propriedades foram impactadas, segundo a Emater/RS e Embrapa[1]. O Mapbiomas identificou aproximadamente 1,5 milhão de hectares atingidos, sendo que destes perto de 1 milhão de hectares destinados à agropecuária. O Instituto de Geociências da UFRGS estima em 15 mil “cicatrizes” geradas por deslizamentos e corridas de terra, quase 5 vezes maior que os ocorridos na Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011.

Diferente do ocorrido durante a pandemia da Covid-19, dessa vez o Governo Federal agiu com rapidez e espírito público. O próprio Presidente Lula veio ao RS quatro vezes, visitando locais diretamente atingidos. Ações de socorro e resposta à calamidade foram acionadas. O Estado do RS teve a suspensão da cobrança da dívida com a União, antecipações de benefícios e prorrogações de tributos foram efetuados, e investimentos na reconstrução do Estado estão em curso. Mais do que agir sobre o caso concreto, o Estado Brasileiro está aprimorando ferramentas frente a eventos dessa complexidade e amplitude.

Toda a atenção dada ao povo gaúcho não afastou a necessidade diária do Governo Federal de explicar que as iniciativas de socorro não vão impactar o resultado primário e nem comprometer o Arcabouço Fiscal. O próprio Ministro da Casa Civil anunciou que o contingenciamento mais recente de R$ 15 bilhões tem como objetivo diminuir os ruídos sobre a situação fiscal e permitir que a taxa de juros retome trajetória descendente, estancada nas últimas reuniões do Copom Taxa Selic em 10,5% ao ano. Cada ponto percentual na Selic significa retirar aproximadamente R$ 40 bilhões[2] do orçamento para obras e serviços para pagamento da dívida pública em um ano.

Em paralelo a isso, verifica-se a movimentação das entidades de representação da agricultura patronal gaúcha e parlamentares de todo o país da bancada ruralista (os mesmos que defendem a austeridade fiscal, a autonomia e a atual política de juros do Banco Central) reivindicando medidas como prorrogação de dívidas, e linhas de financiamento públicas para reerguimento da agricultura local. Segundo eles, as medidas em curso para os agricultores que mais perderam com a catástrofe devem ser estendidas a todos os produtores que vem sofrendo com a queda dos preços das commodities agrícolas no último período, e que também sofreram com estiagens nos últimos anos.

Entende-se como inicialmente legítimo o pleito, dada a intensidade das perdas e danos sofridos na agropecuária do RS no último período. Isso por si só justificaria a reivindicação, mas com prioridade para agricultura familiar, mais presente na região devastada em número de propriedades e valor da produção. No caso do RS é importante ressaltar que entre 2003 e 2021 tivemos regiões com até 8 estiagens ou secas severas. Antes da tragédia de maio de 2024, houve uma enchente brutal no Vale do Taquari em setembro de 2023. O combo de impactos tem obrigado agricultores e empresas do setor a pegarem financiamentos para compensar a desorganização produtiva – perda de produção, atrasos em entregas, perda de qualidade do produto – em condições financeiras também adversas, com juros mais altos. Mas convenhamos que há uma dose cavalar (do tamanho da comoção que tomou o país com o cavalo caramelo) de oportunismo climático também.

A montagem dessa história exige retroceder 4 anos, para ser mais preciso, entre 2020 e 2021. Adotada pela bancada ruralista, a “Lei do Agro” prometia ser a panaceia para a agropecuária brasileira. Elogiada pelos representantes do agro como uma obra do Governo Bolsonaro, selava a aliança entre agricultura e o mercado financeiro. A ideia seria ampliar o papel privado no financiamento agrícola para negociar antecipação de receita da venda dos produtos e alongamento de dívidas(securitização) pela via privada, por exemplo.

No Plano Safra 2024-2025, estão disponíveis Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) para emissões de Cédulas do Produtor Rural (CPR) totalizam R$ 108 bilhões do mais de R$ 500 bilhões anunciados. Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), o valor do patrimônio líquido dos Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas do Agronegócio – Fiagro cresceu 147%, atingindo R$ 38 bilhões. Quem compra esses papeis tem isenção de imposto de renda na fonte. Porém, apenas 13% do valor patrimonial destes fundos estão diretamente relacionados com o financiamento da produção (antecipação de receita ou alongamento de dívida), enquanto 43% são compostos de fundos imobiliários, ou seja, de compra, venda e aluguel de terra. Do que vive o mercado financeiro? De especulação e juros altos.

As maiores entidades do agro gaúcho e seus parlamentares, os mesmos que defenderam e aprovaram a Lei do Agro, exigem agora do Governo Federal recursos públicos para renegociar um estoque de dívidas rurais do RS de aproximadamente R$ 80 bilhões, em condições amigáveis: 20 anos para pagar e uma taxa de juros fixa de 3% ao ano. São os mesmos que arrendaram terras e ganharam muito dinheiro no boom da soja, os mesmos que defendem a austeridade fiscal, a autonomia e a política de juros do Banco Central, e se opõem a medidas para conter as mudanças climáticas. E agora não se dispõem a acionar os mecanismos de mercado para renegociar suas dívidas. Querem pegar carona no sofrimento dos agricultores familiares. Numa conta rápida, a diferença entre o valor a total a ser pago na taxa desejada pelo agro e seus aliados e da mesma operação usando a taxa Selic/CDI seria superior a R$ 85 bilhões, maior que o estoque inicial da dívida, e equivalente a 2 pontos percentuais da taxa básica de juros. Esse é o tamanho do oportunismo climático.

Duas lições já ficam da jornada da Reconstrução do RS, ainda em curso. Em primeiro lugar, nunca deve ser retirado da natureza mais do que ela pode se regenerar, e o RS está aprendendo a lição duramente, depois de ter suprimido quase 2 milhões de hectares de campo nativo para cultivo de soja no bioma Pampa somente nos últimos 10 anos[3]. Como diz o economista Carlos Mussi da CEPAL, o “passivo ambiental de hoje é o passivo fiscal de amanhã”. A segunda lição é dada pelo Presidente Lula, lembrada recentemente pelo ex-Secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin: caro não é cuidar do povo (ou da natureza); caro é cuidar de rico[4].

Carlos M. Guedes de Guedes é Economista e Mestre em Desenvolvimento Rural pela UFRGS. Foi Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária entre 2012 e 2015.

Via Jornal dos Economistas


[1]https://ww4.al.rs.gov.br/noticia/336584#:~:text=O%20informe%20t%C3%A9cnico%20aponta%20perdas,toneladas%22%2C%20descreveu%20o%20Diretor.

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/06/entenda-por-que-cada-ponto-percentual-da-selic-pesa-r-38-bi-na-divida-bruta-do-brasil.shtml#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20c%C3%A1lculo,PIB%20(Produto%20Interno%20Bruto).

[3] Publicacao_expressa_TD_3016.pdf (ipea.gov.br)

[4] https://www.brasil247.com/blog/caro-e-cuidar-de-rico