Este é um livro que todos devemos ler: K. , de Bernardo Kucinski. No ano passado, ganhei um exemplar do Alípio Freire, no Rio, e comecei a ler no aeroporto, vindo para São Paulo. Não consegui parar, quase perdi o voo, cheguei a Sampa e ainda faltavam algumas páginas. Entrei num taxi quase sem falar e não desliguei até virar a ultima página. A narrativa é simplesmente cativante. Mas não é apenas por isso que devemos lê-lo. É para entender o sistema político em que vivemos sob a ditadura. E para entender como ainda sobram restos desse sistema. E, mais ainda, para entender como podemos evitar que esses restos vinguem de novo, como um cadáver insepulto que procria, para usar a frase do poeta.
Muita gente diz que para superar situações como aquela – dos anos de chumbo – é preciso alguma dose de esquecimento, senão enlouquecemos ou nos matamos uns aos outros. Pode ser, mas para ‘esquecer’ ou deixar para trás, antes é preciso lembrar e compreender bem, senão as lembranças abafadas ficam martirizando nossas mentes e condicionando nossos comportamentos. Somos governados pelos traumas quando não os enfrentamos conscientemente.
O livro de Kucinski é fundamental para reconstruir o clima daquela época. Não reconstrói apenas um caso trágico e exemplar, o caso de sua irmã, Ana Kucinski, sequestrada e morta pelos órgãos de repressão. Uma “desaparecida”. Conta ainda a comovente e reveladora odisséia do sr. K, pai de Ana e Bernardo, tentando descobrir o que tinha sido feito de sua filha. Através dessa narrativa, Kucinski mostra todo um mundo, um sistema, um ambiente de terror. E a reconstrução da “Memória” , que tentamos fazer neste projeto, é isso, principalmente: não é apenas a necessária reconstituição dos tantos casos e situações de repressão, os depoimentos que temos recolhido. Por mais importantes que sejam – e como são! Nosso esforço é, também e principalmente, reconstituir as entranhas de um regime de terror: como foi criado, como operava, com quais recursos contava, quem financiava, dirigia, mandava. E como operava nos seus alvos – nos opositores do re gime, mas também nas grandes massas da sociedade: operários, camponeses, pequenos e médios empresários, as chamadas classes médias.
Kucinski escreveu um romance diferente. Como ele mesmo diz: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. O escritor colhia fatos, documentos, depoimentos. Mas muita coisa ainda resta por ser esclarecida, completada, comprovada. E apenas a imaginação bem treinada, a reconstrução lógica da época permitia ver o conjunto, o sistema. Assim, pouco a pouco vemos aparecer os personagens, o cenário, o enredo. Alguns desses personagens são colaboracionistas interessados – oportunistas que querem ganhar algum com a delação ou, simplesmente, querem se vingar de um desafeto. Os amedrontados – aqueles que evitavam os ‘subversivos’ como se eles fossem perigosos, portadores de alguma praga contagiosa. Os espertos mandantes do crime – aquela gente fina que financiava e estimulava a contratação dos jagunços das várias ‘forças da ordem’, batalhões de tiras, espiões, torturadores. E, claro, os que tentavam escapar dessa máquina – e queriam destruí-la.
A máquina era bem lubrificada e alimentada. Sistemática. Procurava identificar os ‘subversivos’, isolá-los, cercá-los, prendê-los, arrancar-lhes informação e, depois, se fosse o caso descartá-los. Ou, mesmo, devolvê-los à circulação para utilizá-los como colaboradores mais ou menos voluntários. Essa é a máquina que precisamos entender –se quisermos que ela não volte a ser reconstruída. Por isso é importante decifrar sua lógica, suas entradas de energia, seus operadores principais e secundários, seus efeitos sobre a sociedade que queria moldar pelo terror.
Esta notinha é apenas um convite – insistente – para que leiamos esse grande livro. Como um começo de conversa. Um começo indispensável.
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No Rio de Janeiro, este livro está à venda na Livaria Antonio Gramsci, a Livraria do NPC. Foi publicado pela Expressão Popular, e custa apenas R$ 15,00.