A Lei Maria da Penha é, sem sombra de dúvidas, um marco para a conquista de direitos das mulheres brasileiras, mas 17 anos depois ainda há muito que caminhar no que diz respeito ao enfrentamento à violência de gênero. Sancionada em 2006, esta é a primeira lei que define violência doméstica e familiar e além de prever punição aos agressores, impôs medidas protetivas às vítimas, criou a demanda de uma série de equipamentos públicos para lidar com a questão e previu a incorporação da temática nos currículos escolares. Ou seja, é uma lei que busca prevenir, remediar e dar suporte às mulheres vítimas de violência em todas as suas formas: psicológica, sexual, patrimonial e moral, além da violência física.
Um dos maiores ganhos da Lei Maria da Penha é fruto da mobilização das feministas e do esforço bem sucedido em fazer com que essa pauta ganhasse a agenda pública. Desde que foi sancionada, é uma das leis mais presentes no imaginário da sociedade – você, que está lendo esse texto, pode não conhecer todos os mecanismos de execução da lei, mas com certeza sabe sobre o que ela trata (e duvido muito que conheça alguém que não saiba o que é a Maria da Penha). Hoje, há um consenso de que se há violência contra as mulheres, este é um problema de toda a sociedade, inclusive do Estado, mas também é verdade que a violência ainda é uma realidade muito concreta.
Apesar dessa legislação pioneira no enfrentamento à violência, nosso país tem números alarmantes: no primeiro semestre de 2022, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) registrou quase 170 mil violações envolvendo violência doméstica. Dados da Rede de Observatórios de Segurança mostram que uma mulher foi vítima de violência a cada quatro horas no Brasil no mesmo ano. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública constatou que 50 mil mulheres sofreram algum tipo de violência por dia. Em 2021, o IBGE apontou que 7,5 milhões de mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de violência sexual. Em todos os casos, o marcador de raça aparece mostrando como as mulheres negras são as maiores vítimas. Se por um lado, esses dados mostram que há um esforço positivo em romper com o silêncio, por outro mostra que só a implementação da lei e de seus equipamentos sociais não é o suficiente para acabar com este problema.
Foram (e sempre serão) as mulheres, organizadas em seus coletivos, organizações, associações ou grupos de bairro que se mobilizaram e pautaram que o enfrentamento à violência fizesse parte da agenda política nacional e local. São as mulheres que se organizam nos seus trabalhos, escolas, universidades, associações e outros espaços para enfrentar o patriarcado e construir uma cultura pautada na solidariedade e no feminismo: que respeita os tempos das pessoas e da natureza, que compartilha o cuidado, que divide o trabalho. Se a cultura da violência é uma tragédia, o fruto da construção coletiva das mulheres é um caminho de emancipação e liberdade no qual ganha a sociedade como um todo.
É preciso meter a colher em briga de marido e mulher, denunciar, romper o silêncio, educar para prevenir. Mas também é necessário que as mulheres tenham autonomia financeira, de real valorização do salário mínimo, da divisão do trabalho de cuidado, de creches, lavanderia pública, formação e emprego de qualidade. O compromisso de enfrentar esse problema crônico com a seriedade que precisa passa pelo movimento feminista, mas também pela garantia de direitos e pela centralidade que o Estado dá em construir políticas públicas que deem uma alternativa concreta para que as mulheres vivam com dignidade.
O enfrentamento pela denúncia, o combate e a educação são muito importantes para o tempo presente, mas o futuro requer mais: as políticas para as mulheres, se restrita à agenda da violência ou desconectada dos debates de raça e classe, possuem um limite muito nítido, que é a sobrevivência em um mundo marcado pela lógica do lucro e da propriedade. Enquanto essa lógica persistir, nossos corpos continuarão sendo explorados pela divisão sexual do trabalho, nossa vida continuará sendo vista como propriedade e a violência continuará existindo como mecanismo de submissão.
Hoje, o aniversário da Lei Maria da Penha, é dia de um importante recado: a superação da violência deve ser tão sistêmica quanto a superação do patriarcado que a sustenta – e perpassa necessariamente pelo fortalecimento do feminismo e superação do capitalismo, que impõe limites nítidos para a vida plena das mulheres. Nem nos serve uma sociedade que nos vê como lucro, nem uma que não se proponha a superar o capitalismo sem passar pelas nossas mãos. Sem o feminismo, não há superação do sistema vigente – e nem haverá uma sociedade verdadeiramente feminista enquanto o capitalismo continuar existindo. Por isso, marchamos até que todas sejamos livres!
Brisa Bracchi é vereadora do PT em Natal, Rio Grande do Norte.