“A liberdade, sim, a liberdade!…
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, o que é de mim?”
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
O neofascismo, codinome histórico-mundial do bolsonarismo nativo, busca canibalizar o conceito de liberdade como fez com o de anti-sistema, na tentativa de cooptar setores ressentidos com os avanços sociais e econômicos alcançados sob os governos progressistas no país, entre 2003 e 2014. O construto de democracia o mandatário ressignifica nas falas para adequá-lo ao império da Post-Truth. “Vamos defender a democracia e a liberdade, custe o que custar”, arrota o genocida prevaricador nas motociatas que aglutinam segmentos incuráveis das classes médias. Por “democracia”, leia-se o que pode assegurar-lhe a permanência indefinida na cadeira presidencial, à revelia das normas procedimentais legitimadas pelo Estado de Direito Democrático. Por “liberdade”, leia-se o direito civil de ir e vir, independente das determinações das autoridades sanitárias sobre o uso de máscaras e o risco de aglomerações à ordem pública. Máscaras que, no delírio dos negacionistas da pandemia, são mordaças criadas pelo Foro de São Paulo. Por “custe o que custar”, na vociferação do Brutus que assassina o povo brasileiro, entenda-se a ameaça de golpe armado com apoio das milícias e das polícias militares. Se o uso do cachimbo entorta a boca, aliás, falta na equação a variável das Forças Armadas – que adoram um putsch.
Muitos se debruçaram sobre o tema da liberdade, em vários contextos e épocas. A definição capaz de compendiar a tradição político-filosófica foi sistematizada por Isaiah Berlin (1909-1997), no artigo Dois Conceitos de Liberdade, em que discorreu sobre a liberdade chamada negativa e positiva. A primeira é a liberdade “de”, que consiste na ação exercida por alguém sem coerção externa (heterônoma), embora no limite das leis. A segunda é a liberdade “para”, motivada pela vontade (autônoma) de assumir o destino nos marcos da legislação existente. Uma e outra concepção se completam. Na síntese de Montesquieu (1689-1755), autor da teoria dos três poderes baseada na experiência nascida da Revolução Inglesa (1642-1649), “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”. Acrescente-se: numa república ideal. Sendo as leis formuladas por nós, explicou Kant (1724-1804), obedecê-las nada mais é que cumprir a nossa própria vontade. A lei, no caso, não é entendida como uma barreira, mas como uma pista para a cidadania correr livremente.
A esquerda e os democratas, em geral, condensam in concreto a liberdade negativa e positiva. Sua práxis não está condicionada de fora para dentro. Acontece por obra de uma apropriação de objetivos emancipatórios em face da opressão e exploração sob o capitalismo na fase neoliberal, que dura quarenta anos. Em contrapartida, a atuação da extrema-direita bolsonarista se dá além dos parâmetros da liberdade, em qualquer acepção. Sua ação rompe a fronteira das leis consensuadas. Pior, funda-se em uma interpretação de má-fé, conquanto no discurso argumente (minta) defender os dispositivos da Carta Magna de 1988. Sua vontade visa o estabelecimento de um regime autoritário, que soterre os resquícios de regras transparentes na condução da res publica, por exemplo, na compra de vacinas. As rachadinhas de outrora foram um treino para os rachadões que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ora revela. Escândalo pouco é bobagem.
A desfiguração da democracia
Para o professor Renato Lessa, no ensaio A Destruição: Bolsonaro, a Palavra Podre e a Desfiguração da Democracia (Piauí, julho 2021), o governo corrente “leva adiante o mais extremo processo de ‘desfiguração da democracia’ entre todos (Polônia, Hungria, Índia, Colômbia) os que estão em curso no mundo”. A aversão às formas de soberania popular, tipo a escolha de reitores pela comunidade universitária, assim como a recusa dos mecanismos legais e institucionais de controle do poder político e do universo da opinião são sintomas de “uma vontade de destruição do que está configurado, mais do que de construção de algo alternativo”. A meta é eclipsar os controles e liberar fake news. O consolo, como diria com graça jornalística o famoso Barão de Itararé, é que “se há um idiota no poder, é porque os que o elegeram estão bem representados”…
Ao analisar o idiota no poder, os profissionais Psi apontam uma noção de liberdade perversa, que promete gozo sem fim aos seguidores e instiga a proliferação no cotidiano de dita-dores. Correias de transmissão, para o degrau abaixo na escala social, da agressividade e do ressentimento da condição de subalternidade. O sentimento de pertença ao círculo dos escroques anti-sistêmicos de plantão é uma injeção de autoestima na existência medíocre e desumanizante que carregam. “A pessoa que tem livre acesso ao Palácio não tem limites”, vocalizou a amiga da familiciana no Alvorada. O cercadinho concentra o gado-latrina para ouvir as “palavras podres” do presidente escatológico, que caga pela boca termos novos (“imorrível, imbroxável, incomível”… que mortal se aventuraria), eufemismos (“levar para a ponta da praia, não sou coveiro”… claro, é o matador) e acrobacias de signos (“nunca cometi um ato contra a democracia e a liberdade”… poramordedeus) – cumpre a mesma função reabilitadora do ego bolsominion pela desconstrução da semântica. “A maneira como as pautas do governo Bolsonaro se organizaram desde o início é marcada pela destrutividade”, resume o psicanalista Joel Birman em O Brasil no Divã (Valor Econômico, maio 2021). As operações violentas e corruptas são mera decorrência.
O fascismo clássico caracterizou-se pela inserção das esferas pública e privada na órbita do Estado. O que ocorre na atualidade – no Brasil – é uma lida para devolver a sociedade ao estado de natureza hobbesiano, no qual homo homini lupus (o homem é o lobo do homem). A contra-reforma da previdência; a precarização do trabalho e dos salários; a desindustrialização acelerada; o desemprego massivo (16% da população ativa); o alastramento da informalidade maquiada como empreendedorismo; o enfraquecimento da malha de entidades sindicais por conta do fim do imposto sindical em nome da liberdade (sic); a degradação das instituições políticas que com os sindicatos conferiam identidade de classe aos trabalhadores; – tudo isso ajudou a aprofundar o individualismo pós-moderno (neoliberal). Retirou-se da sociedade os laços de normatividade e ligação com o Estado, em particular, com o Judiciário e o Ministério Público postos a serviço do plano liquidacionista das empresas de engenharia e do patrimônio estatal, a começar pela Petrobrás. Eis o pano de fundo do processo destrutivo de sociabilidade que extrapola o prazo de validade do governicho atual. Reconstituir o tecido sociopolítico é a árdua tarefa das forças antineofascistas e antineoliberais, na hipótese de vitória nas eleições de 2022. Não será fácil. Supõe um arco de alianças representativo e forte o suficiente para o giro.
Os apóstolos da liberdade
Bolsonaro eliminou do espaço público a vida e a morte, o sofrimento e a esperança. O fato de as informações sobre óbitos da doença pandêmica serem, ainda hoje, coletadas pelos meios de comunicação junto às Secretarias Estaduais de Saúde e de a administração federal não promover campanhas de prevenção contra a Covid-19 e também de vacinação – é mais uma prova de crime de responsabilidade cometida pelo presidente que envergonha a Terra redonda. A morte e a vida, o sofrimento e a esperança, no entanto, são questões públicas em tempo de cóleras acumuladas no âmbito da sobrevivência biológica e política. Como tal devem ser tratadas. Se não o são, é que o extremismo de direita não possui projeto de nação para valorização do povo desse país. Nenhum compromisso com a democracia e a liberdade. Nenhuma empatia com a dor que causou (e causa) às mais de 500 mil famílias enlutadas, que não param de crescer na contabilidade macabra do vírus mensageiro. Tragédia que outros governantes minimizaram, ao adquirir com celeridade os imunizantes oferecidos pelos laboratórios. Aqui, a opção foi rolar a bilionária corrupção.
Os apóstolos da liberdade pertencem ao espectro da esquerda e dos democratas. Bolsonaro é o candidato a exterminador das liberdades individuais portadoras de direitos civis (vida, propriedade, culto religioso…) e das liberdades públicas protetoras de direitos sociais (saúde, educação, trabalho…) e políticos (participação, associação, expressão…). Paulo Guedes (Jegues, no dicionário de Juca Kfouri), é bedel do mercado financeiro nacional e internacional. No rastro dos Institutos de Estudos Empresariais (IEPs), subsedes da Société du Mont-Pèlerin (1947) para divulgação do ideário do neoliberalismo no século XXI, o tropeiro da ignorância & jegues julgam-se inteligentes repetindo refrões sobre o equilíbrio fiscal. Denominam liberdade a postura de oposição à regulamentação dos mercados por instância público-estatal. Dejetam para o bem comum, como guardiões da ganância do grande capital. São papagaios adestrados em torcer significados.
Liberdade é um conceito polissêmico, de múltiplas leituras. Presta-se à demagogia política, à manipulação ideológica, à camuflagem econômica, à prestigitação cultural e até à intervenção militar para ocultar os interesses que vicejam à sombra fétida da história. O critério para desvendar o conteúdo conceitual da liberdade acha-se:
a) Na colocação em ato do conceito para emancipar a humanidade dos grilhões que aprisionam o futuro da espécie e do meio ambiente à redoma de ferro da cobiça;
b) Na publicização e decodificação analítica, à luz do vasto território dos direitos humanos, para civilizar a sociedade e desenvolver as potencialidades dos indivíduos e;
c) Na luta pela democratização da democracia e a politização da política, pela igualdade de gênero e étnico-racial e o respeito à orientação sexual de cada um.
A liberdade, negativa e positiva, pelo que lutam os movimentos sociais transformadores é a palavra saudável que confronta a podridão neofascista. Parole que se abre como um girassol à procura dos raios que iluminem a marcha de todos e todas para a “felicidade”. Prescrição que, com pioneirismo, integrou um documento político: a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776). Mas que foi esquecida no exercício de sucessivos governos estadunidenses, no que concerne ao crescimento dos países latino-americanos. “A América Latina tem que ser um bloco e Biden precisa compreender que temos o direito de crescer”, lembrou um ex-metalúrgico recentemente. – Sem medo de ser feliz!
- Luiz Marques é professor universitário, UFRGS
Ilustração: Mohamed Hassan