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Lula e as desigualdades | Luiz Marques

No Brasil, a hegemonia burguesa fundada na ideia de desenvolvimento integrado nunca se realizou, a não ser como inserção instável dos trabalhadores no circuito produtivo. As desigualdades sociais, raciais e de gênero persistem. Falar que os banqueiros nunca acumularam como nos governos do PT (Partido dos Trabalhadores) atesta o limite das medidas que melhoraram a vida de 30 milhões de cidadãos. Não se vence a opressão sem enfrentar a resistência do status quo. Governar é optar. A esquerda não pode abdicar do discurso utópico em nome do conformismo com a ordem liberal. O Estado de direito democrático, per se, não enche barriga e não fabrica emprego com dignidade.

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Ademais, os índices crescentes do PIB (Produto Interno Bruto) nem sempre conduzem à diminuição das diferenças socioeconômicas e culturais na sociedade. Ao se afirmar que em certo período “todos foram beneficiados”, há que arguir quais grupos despontaram e por que outros conseguiram pouco. Marcelo Medeiros, em Os ricos e os pobres, enfatiza que para haver uma política de ataque direto ao desigualitarismo é preciso que a riqueza contemple os necessitados no saneamento básico, na saúde, na educação e nos equipamentos urbanos, além do que concerne a renda. A visão deve ser holística. O povo tem pressa em realizar seus sonhos, e jovens não são guardiões do establishment.

É incorporando elementos que se confronta as iniquidades, no conjunto. A destruição provocada pela perfect storm / tempestade perfeita (conservadora, neofascista, neoliberal) e o atraso da representação congressual são obstáculos que exigem a sensibilidade de um estadista. Ao pautar a taxação das grandes fortunas em nível nacional e internacional (G20), o governo mira o consenso global para compensar a desfavorável correlação de forças internas. A pressão de fora é o gatilho. Os recursos permitiriam cumprir as promessas igualitaristas nas comunidades periféricas.

Anos atrás, Marilena Chaui rebateu a desqualificação de um ilustre metalúrgico. Então o esporte do “andar de cima” era rir da subescolarização do petista: o líder com mais títulos de Doutor Honoris Causa em instituições renomadas. Oppositum sensu, a filósofa elencou primeiros-ministros da Europa sem curso superior, nem por isso estigmatizados na imprensa. 350 anos de escravidão, aqui, geraram o preconceito que ainda cospe os memes de ressentimento: “Ele não deve improvisar”.

Para uma ascensão social

O balanço do terceiro mandato do filho de dona Lindu é positivo. Alcançamos o menor desemprego desde 2015 e o maior crescimento da massa salarial, desde 1995. A inflação tombou. O repasse aos estados e municípios pelo Fundo Nacional de Saúde e o Fundo Nacional de Segurança aumentaram, em 2023. “O aumento do repasse de recursos é a expressão do que é cuidar de gente”, adverte o ministro Fernando Haddad. A filiação da mídia adversativa à lógica dos “investidores” impede-a de criticar os juros desindustrializantes (10,75%) do Banco Central. Preferem o jogral de Netanyahu.

O Bolsa Família atingiu o valor médio de R$ 680,60 e registrou 55,7 milhões de beneficiários. O Programa de Transferência de Renda unipessoal, usado e abusado para promoção de um genocida, voltou a amparar as famílias. O Programa Mais Médicos atingiu 25.421 profissionais, quase que a totalidade formada de médicos brasileiros nas regiões dos municípios desassistidos. Mais de 9 milhões de contribuintes usufruíram da gratuidade do Farmácia Popular, que morria à míngua.

Assim também aconteceu com o reajuste da merenda escolar e o fomento às escolas de tempo integral. O valor das contratações do Plano Safra cresceu. As exportações do agronegócio subiram. A recomposição do Programa Para Aquisição de Alimentos (PPA) aumentou. O desmatamento da Amazônia encolheu. Sem citar o acesso à água nas áreas rurais e os recursos ao Luz para Todos. O saldo positivo da balança comercial ficou em US$ 98,9 bilhões. Foi lançada a Nova Indústria Brasil (NIB), um programa de reindustrialização sustentável com R$ 300 bilhões para o financiamento.

As conquistas gritam. Ao kit se junta o anúncio do presidente no último 12 de março que incide, direto, nas assimetrias: os 100 novos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (IFs). A iniciativa cobre todas unidades federativas, com 140 mil vagas, a maioria em cursos integrados ao ensino médio. Os IFs são instrumentos de ascensão social. O projeto envolve R$ 3,9 bilhões em obras – campus, refeitórios estudantis, ginásios, bibliotecas, salas de aula, equipamentos eletrônicos.

A experiência de Harvard

A discussão entre conservadores e progressistas invoca mais os meios de chegar à meritocracia do que o seu conceito. Conservadores alegam que as categorias de raça e etnia para o ingresso nas universidades são ilegítimas. Progressistas defendem ações afirmativas para remediar as injustiças persistentes. “A verdadeira meritocracia depende de se acabar com as enormes desigualdades entre pessoas privilegiadas e pessoas em desvantagens”, frisa Michael J. Sandel, em A tirania do mérito.

As universidades tiveram um reconhecimento proporcional ao aumento do abismo entre as classes nas sociedades ocidentais, em décadas recentes. O medo de cair potencializa o desejo de entrar em uma instituição superior, que contribua para assegurar o futuro. Não é difícil enxergar como a fé nos mercados prepara o cenário para um descontentamento em largos segmentos da população, que procura alternativas. Para Max Weber, “os afortunados necessitam crer que têm o direito à boa sorte para se convencer de que os desafortunados igualmente estão recebendo o que merecem”. Ora, ora.

Nos anos 1940, no intento de racionalizar o ingresso no big three, o grandioso trio (Harvard, Yale, Princeton), que pressupunha ter estudado nos internatos particulares que atendiam às famílias de classe média alta da elite protestante, – o reitor da Universidade de Harvard buscou mecanismos de seleção que não fossem por hereditariedade, mas por talentos independentes da hierarquia social. Mulheres eram excluídas, negros eram barrados e judeus tinham matrículas restringidas por cotas formais e informais. O objetivo era substituir a elite antidemocrática e hereditária por uma elite nova, inteligente, dedicada ao bem-estar social, vinda de muitos contextos dos Estados Unidos.

O plano audacioso implicava modificações no arcabouço do país, por intermédio da educação, para uma sociedade mais móvel – e não mais igual. O reitor não queria universalizar as portas do ensino universitário, apenas garantir a entrada dos capacitados sem os fortes pistolões. Décadas depois, Harvard continuava priorizando os filhos de ex-alunos, em 87% das vagas. O sistema brasileiro de cotas é o que, em pouco tempo, obtém de longe os melhores resultados contra as desigualdades.

Quem deve desculpas hoje

De acordo com o IBGE, a Lei de Cotas fez o número de negros nas universidades aumentar 400% e o de indígenas 842%. No painel do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), os dados sobre as trajetórias dos ingressantes em 2017 mostram que a taxa de desistência acumulada até 2021 foi de 39% nas universidade federais e de 59% nas universidades privadas. Na USP (Universidade de São Paulo) se afigura o menor índice de evasão entre as instituições, 17%. As taxas maiores de evasão estão na Física, Química e Matemática. Bolsas de estudos servem de dique.

A partir dos anos 2000, tivemos avanços ao transitar para outro padrão de coesão social. “A volta da mobilidade social foi impulsionada pela recuperação do crescimento econômico e do nível de emprego concomitante com a adoção das políticas públicas de elevação do salário mínimo e de transferências de renda”, diz Marcio Pochmann, em Desigualdade econômica no Brasil, publicado antes do impeachment e do retrocesso civilizacional. Não à toa, se desde 1960 o índice Gini aponta queda na desigualdade pela expansão dos rendimentos dos mais pobres; houve elevação em 2018.

Esther Dweck e Pedro Rossi, em “Desmonte neoliberal e alternativas para o Brasil” (In: Brasil em colapso, organizado por Esther Solano Gallego), corroboram o mesmo entendimento. “Desde 2015, indicadores de desigualdade de renda voltaram a crescer e níveis de pobreza e pobreza extrema, em queda desde 2003, reverteram sua trajetória. Pari passu, o desemprego permanece em patamares elevados e a lenta criação de emprego é limitada ao emprego informal, precário, temporário e sem garantias de direitos aos trabalhadores”. Detalhe, a assertiva dos autores foi redigida em 2019. O pesadelo se agravou desde então, sob a premeditação do Corrupt old man e do Chicago boy.

Adriana M. Amado e Maria de Lourdes R. Mollo, em “Desafios econômicos na nova era Lula” (In: Brasil sob escombros, organizado por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe Osório), estão em consonância. “O consumo tem se apresentado como variável importante para o crescimento. O desemprego, a precarização do trabalho e salários baixos, fruto da austeridade fiscal, da reforma trabalhista e da previdenciária impedem que essa variável cumpra papel alavancador, de modo a reduzir a desigualdade”. O desafio é superar a barreira para consolidar a democracia e romper os grilhões que prendem a economia ao “equilíbrio fiscal” (déficit zero), do Consenso de Washington.

Alheios ao que importa para construir uma autêntica nação para as brasileiras e os brasileiros, o Jornal Nacional e a Globo News entoam o temor da mudança nas estruturas. Sem pejo, divulgam fake news sobre o patrimônio mobiliário das residências oficiais da Presidência da República, ao admoestar o casal Lula e Janja por terem acusado os antigos inquilinos pelo sumiço de 261 peças. Devagar com o andor. A informação consta no próprio relatório assinado pela incúria da desastrosa gestão anterior. Foram necessários meses para achar as peças extraviadas. Só ingênuos ou hipócritas esperariam da famiglia algum cuidado com a coisa pública. Quem deve desculpas a quem?

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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