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Lula e o espírito do tempo | Luiz Marques

A historiadora francesa Élisabeth Roudinesco considera Michel de Montaigne (1533-1592) o precursor do espírito de nosso tempo (Geist der Zeit), ao transformar a dúvida na atitude subjetiva por excelência frente ao mundo. Ao se debruçar sobre os fenômenos cotidianos (hábitos de vestir, costumes, incertezas, amizades, mulheres, glórias, leis, livros, odores, risos, bebedeiras, cavalos, etc), o famoso filósofo descobriu perspectivas inéditas no exame psicológico dos problemas e sentimentos. Viveu na Renascença, entre a Idade Média que morria e a Idade Moderna em gestação.

No turbilhão da Modernidade, três pensadores converteram a suspeição no portal do conhecimento. Em ordem cronológica: Karl Marx (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). O primeiro ensinou a suspeitar de narrativas da sociedade sobre ela própria, porque exprimem a ideologia das classes dominantes. O segundo ensinou a suspeitar da herança cultural dos valores judaico-cristãos na formação ocidental, que impedem a ideação do novo ser humano. O terceiro ensinou a suspeitar do que os indivíduos falam de si mesmos; pois obedecem a motivações do inconsciente que escapam à razão. O método da dúvida e da suspeição libertou-nos dos dogmas.

Não se trata de elogiar a dúvida ou a suspeição em abstrato, mas abrir janelas para a complexidade que envolve a cotidianidade, a sociedade, a cultura e o indivíduo. Implica o compromisso ético da intelligentsia de não se deixar enganar pelas aparências. É questão de honestidade cognitiva abordar as distintas dimensões da realidade, sem tropeçar nas armadilhas do reducionismo por preguiça mental. O que é “complexo” precisa ser entendido em todas as suas relações, sob pena de se reiterar o rol de ideias pré-concebidas com uma imitação extemporânea da platônica alegoria da caverna.

A teoria distingue a subjetividade característica das grandes ondas históricas, mas não contempla situações nacionais específicas em que interferem variáveis imprimidas pelas tecnologias recentes dos meios de comunicação. Menos ainda no contexto de forte presença das redes sociais digitais. Num caso, com o agravante da drástica redução de espaço para o jornalismo investigativo. No Brasil, o Globo Repórter apresentado por Caco Barcellos é uma exceção. O handicap empobrece o debate público. Noutro caso, com o agravante das mentiras fabricadas em escala industrial pelas campanhas de Donald Trump nos Estados Unidos e do Brexit (Britain Exit, da União Europeia) no Reino Unido, as quais fizeram o Dicionário Oxford escolher Post-Truth a palavra do ano em 2016.

A Pós-Verdade define o espírito do tempo na Modernidade tardia. Vivemos na pele o significado do termo no quadriênio pinoquiano do desgoverno da família indecorosa de Jair Bolsonaro, embora os assombros tenham começado na cobertura laudatória da Lava Jato. Agentes da Justiça, de poucas luzes intelectuais e muitas ambições politiqueiras, cancelaram a crítica jornalística e telemática. Sem duvidar ou suspeitar, a imprensa e a teia comunicacional digitalizada ajudaram no embuste, com aclamações à pantomima, loas às ilusões e medalhas aos heróis de pés de barro mal cheiroso.

O estamento “aristocrático” (pelo critério salarial), do aparelho estatal, recebeu cachês robustos por palestras sobre uma rotina funcional de obrigatória transparência para a cidadania. Um contrassenso desapercebido no clima da criatura de Gepeto, o Pinóquio, utilizado na propaganda fascista à época de Mussolini, na Itália. Na encenação do teatro judicial, um playboy tucano saiu ileso apesar das provas, e um estadista foi preso de forma injusta sem provas. Quando as cortinas caíram, a farsa saiu de cena. O juiz revelou-se faccioso e o procurador devedor de R$ 2,8 milhões ao Erário pela “farra das diárias”, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU). A operação judicial seletiva enriqueceu notórios dinheiristas. Com culpa no cartório, o conluio escondeu-se no foro privilegiado.

Em 2015, já era possível entrever a armação, quando o brilhante cientista nuclear brasileiro, Othon Luiz Pinheiro da Silva, na idade de 77 anos foi condenado a 43 anos de prisão pelo juízo farsesco. O almirante em tela dedicava-se a um projeto científico, de tubos geradores, para a produção de eletricidade com queda d’água de apenas um metro de altura, a fim de trazer conforto a milhares de pessoas em regiões desassistidas por energia elétrica. Antes, desenvolvera uma ultracentrífuga tida a melhor para o ciclo de enriquecimento do urânio. A pergunta é: a quem interessava aprisionar o cérebro supervisor da construção de um submarino atômico para proteger o Pré-Sal nacional?

O protofascismo movido por falsas notícias irrompeu nos procedimentos de lesa-pátria, da “República de Curitiba”. Daí, alastrou o vírus letal pelo organismo das instituições do Estado de Direito Democrático. A recuperação é lenta. Célere foi a destruição terrorista da cadeia produtiva das empresas de engenharia e infraestrutura, em favor das concorrentes estadunidenses. O estudo da verita effetualle de la cosa refugiou-se então nas áreas de ciências humanas, das universidades.

Na canoa furada, além dos veículos midiáticos convencionais, embarcaram o Ministério Público Federal (MPF), o Judiciário, o Legislativo sob as patas de um biltre e as Forças Armadas. Estas, à diferença da dinâmica ditatorial de priscas eras, trocaram o nacionalismo pelo neoliberalismo globalista. Não se forja patriotas, como antigamente. O presente passa longe do desenvolvimento autóctone. O passado sobrevive tão somente no apreço da caserna pelo poder político. A mudança de paradigma substituiu o pensamento criativo pelos mandamentos sem imaginação do Consenso de Washington, na doutrina da exploração que submete a humanidade às finanças. Tempos difíceis.

Entre uma e outra geração de militares, “houve sempre muitas nuvens”, diria a poeta. O ceticismo sobre os serviços públicos prestados induziu o processo de privatizações predatórias. A função protetora e indutora do Estado, de papel fundamental na história da América Latina para garantir direitos sociais, econômicos, políticos e culturais à população, cedeu lugar às prioridades do livre mercado. O esforço dos dirigentes neoliberais concentrou-se no apagamento total da memória de Getúlio Vargas (“pai dos pobres”) no Brasil, e Evita Peron (“mãe dos pobres”) na Argentina.

 

A voz do tambor

Contudo, havia fé no progresso e na civilidade. Na vez que um ex-guerrilheiro do Araguaia foi convocado a depor na CPI do Mensalão, ao comparecer reconheceu o coronel que o torturara no Dops, décadas atrás. Um deputado inexpressivo levara o covarde de farda ao espetáculo. Sequer os parlamentares de direita toleraram a infâmia, e puseram o torturador para fora. O pinoquianismo não mostrara as garras. Ninguém podia supor que o protagonista da cena de sadismo viesse a ser presidente da nação que aprendera a respeitar direitos humanos, acabara com a fome e dirimira as desigualdades sociais e regionais, até se tornar uma referência internacional de governabilidade.

Técnicas de comunicação computacional aplicadas em multiplataformas fizeram a lavagem cerebral  que naturalizou o emprego das mentiras, produzidas por robôs e trolls, reproduzidas nas redes sociais com premeditada insensatez. A disseminação do antipetismo atingiu as forças da rebeldia, que batalham pela politização da economia. A distopia estendeu as asas abertas à “pós-política”, criminalizou as ações de solidariedade e desacreditou os esforços pelo bem comum. Um niilismo destrutivo sabotou a democracia constitucional, as legislações trabalhista e previdenciária, a emancipação das mulheres, a execração do racismo e a preservação ambiental. Aconteceu um retrocesso civilizacional. Mas a dúvida e a suspeição sobreviveram na esperança de sonhadores.

Os partidos uniram-se em uma frente progressista, os movimentos sociais recarregaram as baterias libertárias. E a utopia renasceu. Em Por um populismo de esquerda (Autonomia Literária), Chantal Mouffe sustenta que a distinção entre o “povo” e as “oligarquias” permitiu uma síntese superior à variedade de lutas contra a opressão, a subordinação e a discriminação. A crise da hegemonia neoliberal mobilizou os afetos para a participação e a democracia (populismo de esquerda), em oposição ao autoritarismo e à demagogia (populismo de direita). A resiliência mostrou o valor.

Governos da política da vida trouxeram paz e prosperidade para a América Latina, promovendo o “retorno à política”. A grande vitória eleitoral de Lula contra o “sistema” empolgou os corações e atravessou campos, cidades, florestas. A assunção antissistêmica superou a violência das armas, a compra de votos e a cínica manipulação do ICMS nas unidades federativas para disfarçar o aumento do preço dos combustíveis, que tornaram o botijão de gás um luxo nas comunidades periféricas.

A desinformação e as teorias conspiratórias, escoradas na volta a um tradicionalismo retrógrado, desmancharam no ar. Aqueles a quem os podres poderes manietaram têm a chance de acordar. “Não há necessidade de se perderem em rebanho, podem se perder sozinhos”, parafraseando Paul Valéry. Depois do relatório do Ministério da Defesa, que não achou “pelo em ovo” ao auditar as urnas eletrônicas, é hora de os golpistas tirarem o traje de patriotismo de encomenda para datas cívicas. Se querem uma causa, com efeito, patriótica e justa saiam às ruas com faixas “O petróleo é nosso”.

O líder, cujas divisas de capitão vieram na aposentadoria compulsória por indisciplina, exauriu-se na opinião pública. Murchou como o balão furado, que jaz no chão ao final da festa. Bolsonaro não senta mais na cadeira presidencial, nem encanta os zumbis web guiados. Ao genocida, resta a fuga para o Afeganistão ou o Catar, com o desprezo dos eleitores e 400 mil óbitos evitáveis na bagagem.

A dúvida e a suspeição, na acepção dada nas origens da Modernidade, novamente servem de guia. Como um escudo neoiluminista contra os dogmatismos e a Pós-Verdade, reafirmam os méritos da investigação científica, da reflexão filosófica, da criação artística, da invenção política, da condição sexual, da empatia com quem sofre, dos credos religiosos e do contraditório em um Estado laico, acolhedor ao revés de discriminador. O capitalismo na fase atual, com bilhões de seres humanos na linha da pobreza absoluta no mundo, é uma prova irrefutável do fracasso das classes dirigentes.

Com suporte nas aspirações de liberdade, igualdade e justiça social, a Terra gira. A transição de governo em processamento contém, em embrião, o Estado e a sociedade que queremos e porque lutamos: antineofascista e antineoliberal. O espírito do tempo já pode ser rebatizado. Agora com o nome valente e promissor de democracia. Repara a voz do tambor: “fala de um tempo bom”.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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