Muito se disse sobre Luís Inácio Lula da Silva, uma liderança política com reconhecimento internacional. Sua figura carismática foi fundamental à organização do Partido dos Trabalhadores: “um partido de novo tipo”, descreveu o sociólogo Michael Löwy. O PT é a emblemática e duradoura obra gestada, de baixo para cima, pelo ex-sindicalista. Circunstância que, conforme a concepção gramsciana de intelectual, coloca-o entre os grandes construtores de uma visão de mundo. Embora o processo de institucionalização da dinâmica partidária ao longo dos anos tenha afastado a sigla dos movimentos sociais, o PT é uma associação política com democracia interna superior às organizações similares no Ocidente. “Partido, Partido, é dos Trabalhadores”, canta a aguerrida militância em dias de festa, com entusiasmo.
O PT foi estruturado com um programa agressivo em prol dos interesses das classes subalternas no país, diferente do Partido da Social-Democracia Brasileira, com o qual rivalizou por décadas. Em comum, ambos têm o fato de terem como fundadores dois presidentes da República. Sem que se possa dizer que o social-democrata, na acepção consagrada na Europa central no pós-guerra com a sedimentação do Estado de Bem-Estar Social, seja Fernando Henrique Cardoso, cujos posicionamentos descambaram para um neoliberalismo predatório desde que ascendeu ao poder, em 1995. O que explicaria a sua proverbial inveja da retidão de convicções do líder nascido nas hostes do operariado .
Voltemos à persona de Lula. Nos idos dos 90, a filósofa Marilena Chauí escreveu um artigo para contestar a cultura do bacharelismo, consolidada no Império no intervalo entre a Independência (1822) e a Proclamação da República (1889). Então eram comuns os comentários ácidos visando desmoralizar Lula por não possuir um título de doutor. Espocava o anedotário que classificava Lula de incompetente e analfabeto por não se encaixar no figurino da burguesia. Chauí arguia que, na Europa, tal não despertaria polêmica. Listava políticos proeminentes da França e da Inglaterra que desempenharam funções de primeiros-ministros, sem que fossem jogados no opróbrio pela imprensa por não serem graduados. Acusou nos epítetos jocosos a lacuna de uma cultura republicana.
Com ou sem diploma, o intelecto-militante psolista Vladimir Safatle (A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, 2012) observou que para ser de esquerda há que sentir empatia com o sofrimento do povo, recuperar o universalismo sem sucumbir no multiculturalismo identitário e, para confirmar, resguardar três temas conceituais inegociáveis:
a) a defesa do igualitarismo, à medida que todos são iguais perante Deus e às leis do Estado, e devem ter oportunidades iguais (viés liberal) e compartilhar resultados (viés socialista);
b) a defesa da soberania popular, posto que todo poder emana do povo através de mecanismos de participação direta (com ênfase em conferências nacionais, antecedidas de amplas discussões temáticas regionais) e de representação estadual e federal e;
c) a defesa do direito à resistência, que engloba a luta contra regimes de tirania e governos que numa pandemia ajam como genocidas, com propostas próprias da necropolítica.
À luz dos critérios, Lula perfila-se nitidamente à gauche do espectro político ao impulsionar o combate às desigualdades sociais, empoderar a sociedade civil, fortalecer a posição do país no cenário mundial, incentivar a competitividade das empresas nacionais em macroescala e recusar a privatização do patrimônio público. Além de tornar o Estado permeável às demandas dos segmentos laboriosos, ao receber no Palácio do Planalto os catadores de materiais recicláveis quando promulgou a colheita seletiva em órgãos públicos e sua destinação para as cooperativas de reciclagem (25/10/2006).
Analistas interpretam atitudes do jaez como populistas. Estigmatizam a preferência pelos pobres e setores marginalizados. Com efeito, há anos Lula passa a antevéspera do Natal junto aos profetas do futuro: expressão do frei Leonardo Boff para designar os recicladores por recordarem os profetas bíblicos do Primeiro Testamento, ao acenar caminhos alternativos aos convencionais. O tom pejorativo dos críticos, ao condenarem o populismo, advém da contraditoriedade com inclinações ideológicas fora do arco da direita. Optam por servir de ventríloquos subsidiários do capital. Por venerarem o bezerro de ouro são dinheiristas, descendentes dos antigos vendilhões do templo. Vade retro.
Judicialmente, o caso Lula reatualizou no século 21 a pantomima do caso Dreyfus, em fins do séc. 19. Propiciou uma dura provação para o velho marinheiro, enfrentada de forma digna e altiva. Metaforicamente, um indivíduo (Davi) frente ao poderio do Estado (Golias), com um Judiciário corrompido pelo lavajatismo que penetrou os escaninhos institucionais. Consciente de sua inocência, Lula saiu da injusta prisão com a honradez intacta. De certa maneira, sua libertação tirou também a nação do estupor e da paralisia em que estava. De acordo com o depoimento de alívio do ex-chanceler Celso Amorim para a TV 247: “Nós não estávamos respirando. Não só por causa do coronavírus. As discussões eram sobre as loucuras do governo e a réplica daqueles, dentro da direita, que se opunham às loucuras do governo. Agora é uma coisa mais ampla. A volta do Lula reorganiza tudo”.
O discurso (10/03/2021) no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, após a anulação no STF das sentenças que pressionavam o ex-presidente, trouxe de volta o estadista maiúsculo capaz de emular a coletividade e barrar o neofascismo mimetizado pelo capitão pária. O mundo ouviu-o com atenção e respeito, numa deferência planetária. Sem mágoas e sem rancor, com uma compreensão apurada das enormes dificuldades que rondam a humanidade na tragédia da pandemia, Lula ergueu a bandeira da esperança para os que sofrem. Abriu-se ao diálogo com outras forças políticas, unificou as nuances no rol dos democratas. Encheu os corações de energia positiva. Retirou a névoa das mentes entorpecidas e o véu da falta de perspectiva da juventude. Deu um direcionamento à revolta represada e ao luto de milhares e milhares de famílias vitimadas pela Covid-19.
Era hora, denunciam os periódicos estrangeiros: “O Brasil parece ter instalado um regime bárbaro com ações de terrorismo perpetradas contra os que defendem medidas protetivas e o lockdown para frear a propagação da Covid-19, ao ponto do paroxismo.” (El País, 18/03/2021). A matéria aponta os ataques à sede da Folha da Região, de Olímpia (SP) e ao editor que teve um incêndio provocado em sua moradia, onde dormia com a esposa e dois netos. Motivo: haver coberto o negacionismo de comerciantes da cidade contrários ao fechamento dos estabelecimentos comerciais. O jornal refere, paralelamente, as covardes agressões cometidas com capacetes, pontapés e socos contra um jornalista de Belo Horizonte (MG) que acompanhava outra manifestação negacionista avessa aos procedimentos de cautela recomendados pelas autoridades sanitárias em meio à crise. Essas invectivas, de perfil fascista, repetem-se com a condescendência da Polícia Militar.
Enquanto estive Secretário de Estado da Cultura, no governo Olívio Dutra no Rio Grande do Sul (1999-2003), participei de cerimônias com a presença de Lula. Nessas oportunidades apenas cumprimentamo-nos, como determinava o protocolo. Numa prisca ocasião dirigi-lhe a palavra, ocorreu no encerramento de um ato político em 1988, em Porto Alegre. Perguntei-lhe sobre o recém fundado PSDB, oriundo de uma costela carcomida do emedebismo com um verniz que resfolegava um pendor transformista. Lula olhou-me sério e respondeu: “Companheiro, não existe social-democracia possível no Brasil”. A conversa terminou ali.
Por ironia, este é o destino de Lula e do PT, fadados a lutar por um Estado de Bem-Estar Social que supere a maldita herança escravista que perdura na sociedade, como uma âncora fundeada no passado horrível. E impeça qualquer retrocesso civilizacional, como indica a estrela da manhã. Quiçá dando um passo adiante. Criador (Lula) e criatura (o PT), lanhados por perseguições reacionárias, têm um desafio. Já provaram na prática ser possível outra história. Caberá à população decodificar a moral dessa história em 2022.
Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS.
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