Greves e levantes envolveram as mulheres trabalhadoras e marcaram o começo do processo revolucionário. A participação na Guerra pesava sobre todo o país: muito frio, pouca comida e racionamento de alimentos. Nos meses de fevereiro e março de 1917 elas protestavam contra as jornadas extenuantes de trabalho e as péssimas condições de vida. A organização política delas foi fundamental para a queda do czar, forjando alianças com trabalhadores de várias fábricas e com soldados. Elas não foram apenas o estopim da revolução, mas a força que a movimentava. As trabalhadoras de Petrogrado e várias cidades foram responsáveis por derrubar o czar. Mas as histórias e narrativas propaladas pelas organizações dominadas por homens nos anos posteriores quase as fizeram desaparecerem.
Entre fevereiro e março de 1917, os sovietes ganharam ainda mais força e fôlego. A queda do czar aconteceu em 27 de fevereiro de 1917 e foi seguida pela criação de um governo provisório dirigido pelo príncipe Lvov, um liberal. As perturbações sociais, decorrentes da guerra, ainda movimentavam a classe trabalhadora da Rússia e os soldados simpatizavam cada vez mais com a paz. No mês de maio, o exército contou quase 80 mil deserções numa guerra que nada significava para o povo. Alexander Kerenski, um dos líderes das revoltas de fevereiro, assumiu o governo em 21 de julho de 1917. Era ao mesmo tempo quando a população havia se tornado dona das ruas de Petrogrado. O Governo Provisório firmou o compromisso de instalar uma Assembléia Constituinte assim que a Rússia saísse da Guerra. Era um governo em disputa. O exército, que já se forjava mais na organização coletiva que na autoridade de Kerenski, abriu caminho para o fortalecimento dos bolcheviques (que quer dizer maioria, em russo [bolshinstvo]; eram socialistas marxistas que até 1912 faziam parte do Partido Operário Social-Democrata Russo, junto com outras correntes).
AS MULHERES NA REVOLUÇÃO RUSSA – POR TATAU GODINHO
Quando as mulheres saíram às ruas em fevereiro de 1917, em um processo que mobilizava as trabalhadoras têxteis em greve, as comemorações do dia internacional das mulheres na Rússia, os protestos contra a guerra e as longas filas para conseguir alimentos e o pão, imprimiram a marca de sua rebeldia na história da Revolução Russa e no legado do feminismo.
A luta e a organização das mulheres na Rússia já tinha história para contar. As militantes socialistas, envolvidas na luta contra o czarismo e na construção de uma perspectiva revolucionária, percebiam que seu desafio ia além mas também se encontrava com as reivindicações por direitos das mulheres presentes no feminismo existente na Rússia desde o final do século XIX. Já em 1906, Alexandra Kollontai insistia que o partido precisava integrar em sua ação e na sua propaganda propostas dirigidas diretamente às mulheres e argumentava que era necessário a criação de um espaço próprio de organização.
Imediatamente após Outubro de 1917, os bolcheviques começaram a colocar de pé medidas para romper com a opressão das mulheres. Movidos por um ideal de igualdade e liberdade sonharam em por abaixo as amarras das mulheres ao cotidiano opressivo da estrutura de casamento e família tradicional, à dureza do trabalho doméstico, à ausência de autonomia pessoal e econômica. A “questão das mulheres” articulava medidas em vários âmbitos, e as ações postas em movimento nos anos iniciais da revolução mostram um contraste surpreendente com a timidez dos militantes socialistas do nosso tempo: um ideal radical de igualdade refletido em medidas econômicas, sociais, políticas e com incidência direta sobre a vida privada.
O novo código de família, de 1918, foi construído a partir da proposta de superação dos modelos de família e casamento tradicionais que impediam a realização livre dos afetos e dos relacionamentos pessoais e, em particular, submetiam as mulheres à autoridade dos pais e maridos. A perspectiva era de que mulheres e homens iriam, livremente, construir relacionamentos igualitários. Para isso, a intervenção do Estado deveria ser mínima. Ao lado da legalização do aborto e de medidas para promover a igualdade e a independência econômica das mulheres, estas ações nos dão a dimensão da coragem e da determinação de romper com a opressão que movia o ideário dos revolucionários.
Foram numerosas as ações postas em prática para alcançar esses objetivos. Garantia da igualdade salarial, o direito de escolher a profissão independente dos maridos, licença-maternidade, definição de direito à terra para as mulheres dentro do complexo código de terras e das tradições camponesas; acesso à educação e campanhas massivas de alfabetização das mulheres; substituição casamento religioso pelo civil, simplificação do direito de divórcio, reconhecimento da união de fato, eliminação da distinção entre filhos legítimos e ilegítimos; equiparação de direitos das mulheres à herança e à propriedade; perspectiva de pôr fim à prostituição; direito ao voto e à participação nos conselhos das comunidades camponesas. Em 1920, foi o primeiro país a legalizar o aborto.
Em meio à destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial e no turbilhão da guerra civil que buscava derrotar a Revolução, a criação de creches e equipamentos de educação infantil, de lavanderias, de restaurantes e refeitórios públicos, o estabelecimento de uma rede de instituições para garantir que a família, as uniões e o divórcio se desvinculassem da Igreja e das religiões demonstraram uma coerência radical com o programa proposto. As dificuldades econômicas objetivas e a luta travada pelas mulheres no interior do Partido tampouco eram pequenas.
Em 1919 foi criado o Jenotdiél (ou Zhenotdel), organização específica de mulheres do partido, sob forte pressão das militantes para que as respostas à situação das mulheres fossem mais efetivas. Se, por um lado, se acreditava que as desigualdades seriam automaticamente superadas como decorrência dos avanços econômicos e do fim da dominação de classes, a força dos privilégios patriarcais usufruídos pelos homens deixava evidente uma contradição para além das relações de classe.
A estratégia de eliminação do trabalho doméstico com a socialização das tarefas por meio apenas de instituições públicas, por um lado, vinculava-se à perspectiva de desaparecimento da família; mas, por outro, evidenciava que não previram o quanto pesa a desresponsabilização masculina com o cotidiano, com a reprodução da vida. A proposta era construir uma estrutura social que desse suporte às necessidades das mulheres. Isso incidia na divisão sexual do trabalho pelo lado do Estado, mas não lidava com as contradições advindas dos enormes privilégios que os homens obtêm com ela, tanto na vida pessoal quanto no mundo público. Contradições que se aguçaram a partir das novas dinâmicas de relações pessoais e de casamento, que trouxeram à superfície a dureza das relações patriarcais enraizadas em toda a sociedade.
O Jenotdiél mobilizou milhares de mulheres para impulsionar as conquistas da revolução, organizando assembleias e comitês de mulheres. Desenvolveu campanhas de alfabetização das mulheres, incentivo à sua participação no partido e nos comitê locais, ações contra o desemprego das mulheres, enfrentando forte oposição masculina, inclusive no interior dos sindicatos e do Partido. Segundo Wendy Goldman, o Jenotdiél foi a primeira organização de massas de mulheres criada dentro de um processo revolucionário, e permitiu que, nos primeiros anos, a pauta específica da igualdade se concretizasse em políticas da Revolução. O departamento de mulheres foi dissolvido pelo comitê central do partido em 1930, já na dinâmica do retrocesso estalinista.
As conquistas da Revolução Russa mostram o quanto um projeto de sociedade igualitário em todas as suas dimensões é central para superação das desigualdades entre mulheres e homens, para a mudança nas relações sociais de sexo (assim como as de raça). Mas, ao mesmo tempo, que estas mudanças não serão decorrência automática da ruptura com a dominação econômica e das relações de classe. Diante da contradição das relações sociais entre mulheres e homens, da profundidade das relações patriarcais, a necessidade da organização autônoma das mulheres incorpora-se à estratégia das feministas socialistas como um instrumento de luta indispensável a partir dos anos 1960. A inspiração da Revolução Russa nos cobra, hoje, retomar a radicalidade de sua proposta libertária e superar os limites que sua experiência histórica enfrentou.
Sugestões de leitura:
Wendy Goldman. A libertação das mulheres e a Revolução Russa. Revista Margem Esquerda. Editora Boitempo. 1° semestre de 2017.
Wendy Goldman. Mulher, Estado e Revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936. São Paulo: Boitempo, 2016.
Clarisse Paradis e Sarah de Roure. Origens históricas do feminismo socialista e as mulheres na Rússia revolucionária. Revista Democracia Socialista. n.1. São Paulo: DS, dezembro de 2013.
Graziela Schneider. A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética. São Paulo: Boitempo, 2017.
Vídeo – Discurso de Alessandra Kollontai para as trabalhadoras (1918):
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