No último dia 26 de fevereiro, domingo, Santa Maria, na região de Brasília, foi palco de mais uma ação cruel, criminosa e desumana: colocaram fogo em dois homens. Um, morreu. O outro continua internado até hoje.
Foi, em nossa história contemporânea, mais um ato cruel e desumano, que banaliza ainda mais a vida.
Quanto tomei conhecimento dessa notícia, lembrei-me do ano de 1997, quando, no dia 20 de abril, logo após o dia do índio, foi ateado fogo em Galdino Jesus dos Santos, líder indígena pataxó, que morreu. Galdino dormia em um ponto de ônibus, na cidade de Brasília. Na ocasião, os criminosos foram identificados e condenados. A penas leves, na minha opinião.
Dois dias depois do crime de Santa Maria, no último dia 28, a crueldade e o desrespeito à vida humana se repete em Curitiba. Na região central da cidade, um homem que dormia numa praça também teve parte de seu corpo queimado e teve que ser hospitalizado.
Este crime me trouxe à memória o mês de junho de 2011, quando, no bairro Juvevê, também em Curitiba, outro homem foi queimado, indo a óbito. Como se vê, em termos de crueldade contra pessoas que vivem nas ruas, a capital paranaense não perde para Brasília.
Nos meios de comunicação, com raras exceções, as notícias dos crimes viram espetáculo, ou são tratadas como fatos inerentes ao ser humano. Não é dado um tratamento especial, de caráter crítico ou educativo.
Aliás, no geral, a imprensa (rádios, TVs e jornais) trata esses crimes como de razão desconhecida. Ora, a razão é o desprezo pela vida humana, é a cultura do preconceito e do conceito de que quem vive nas ruas não tem direitos.
Ao afirmar que a razão do crime é desconhecida, alimenta-se o desrespeito e o conceito de que essas pessoas não têm família, não têm apego à vida, não têm direito à cidadania.
A crueldade é da natureza do ser humano, um animal racional, ou é algo que lhe foi culturalmente, durante milênios, incutido? Eis uma pergunta a ser respondida. Por natureza os animais irracionais são “violentos” quando estão com fome, e ao reagir, quando se sentem ameaçados. Eles não pensam, não programam e não organizam uma crueldade contra outro animal ou outro integrante de sua própria espécie.
Já há seres humanos, animais racionais, que desprezam e banalizam a vida de outros animais e de seus semelhantes, organizam e planejam ações cruéis.
No mundo dos racionais, há seres humanos que, pelas condições étnicas e sociais, são mais vulneráveis, como, por exemplo, os moradores de rua. Estes parecem ser as vítimas preferenciais de governantes, por não atendê-los socialmente, da polícia e de jovens, geralmente de classe média.
No Brasil, milhares de pessoas vivem nas ruas, principalmente nas maiores cidades e nas capitais. Por razões várias, desde os que por filosofia (minoria) preferem a rua até os que vão para a rua como última opção para continuar vivendo. Muitos lentamente vão perdendo tudo o que têm: emprego, documento, relação afetiva, saúde (mental), etc.
E, quando menos esperam, não têm mais para onde ir. Estão na rua, o único lugar que resta.
Marcelo (nome verdadeiro) vivia na rua. Nas minhas caminhadas diárias em alguns bairros de Curitiba, sempre o encontrava e o cumprimentava. Numa dessas ocasiões parei para conversar.
Depois de falar “disso e daquilo”, perguntei-lhe se gostava de morar na rua, e como exatamente ele foi parar ali.
Disse-me que não gostava da rua e que tinha medo, pois sempre é xingado, a qualquer hora do dia ou da noite, e que à noite nunca dá para ficar sozinho, pois sempre apareciam grupos, geralmente de jovens, ou policiais para maltratá-lo e inclusive espancá-lo.
Contou que trabalhava e vivia com a mãe. Que, no mesmo mês em que perdeu o emprego, a mãe faleceu. Sem a companhia da mãe e sem o salário para pagar aluguel, foi para a rua. Deseja sair dela. “Mas quem vai dar emprego para alguém que se apresenta sem uma roupa e sapatos decentes e que não tem endereço onde morar?”
Simpático e falador, Marcelo cuidava de carros estacionados. Um dia após outro, notei: Marcelo havia desaparecido.
Eu me preocupei (muito) com seu sumiço, mas não tinha onde procurá-lo, a não ser no IML (Instituto Médico Legal) ou nos hospitais, pois como ele mesmo disse, não tinha “endereço onde morar”.
Três meses depois, na semana passada, mais magro, com bom aspecto físico e de roupa limpa, eu o encontro, no mesmo local de sempre, cuidando de carros.
Paro para conversar e sou informado de que, no último mês de novembro, ele arrumou um emprego no setor de construção civil. Comento que está mais magro, ele responde: “O que o doutor quer, todo dia no serviço pesado”. Digo que está com boa aparência e de aspecto feliz.
Como resposta, ele cruza os braços sobre o próprio peito, como que abraçando alguém, dá um sorriso largo, mostra o seu único par de dentes –um em cima, outro em baixo– entre os caninos e diz: “Arrumei uma namorada. Agora tenho casa para morar e um amor para me cuidar. Estou amando”.
Uma oportunidade e o amor tiraram Marcelo das ruas. Quantos outros esperam e precisam da mesma coisa?
* Dr. Rosinha é Deputado Federal (PT-PR) e membro da Coordenação Nacional da DS.