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Momento de virar à esquerda

A oposição criou condições propícias para o governo alterar, em alguns graus para a esquerda, o percurso seguido até aqui.

TALVEZ SEM consciência do que fazia, a oposição criou as condições mais propícias, desde 2003, para o governo alterar, em alguns graus para a esquerda, o percurso seguido até aqui. É que, ao decretar o fim da CPMF no final do ano passado, PSDB e DEM tiraram um dos suportes sobre os quais estava apoiada a estratégia de fazer distribuição de renda sem confrontar o capital.

Quem sabe esses partidos, com o beneplácito de alguns senadores que formalmente fazem parte da bancada governista, tenham agido em causa própria (de olho apenas no desgaste político do governo), sem perceber que atingiam simultaneamente o interesse dos capitalistas. Mas ocorre que, ao implodir o status quo, serraram um galho no qual a burguesia também estava sentada.

É verdade que, pela reação de parte do empresariado de São Paulo, animado com a derrota imposta ao presidente, ou o acordo anterior só servia ao setor financeiro -o que não parece ser o caso, a julgar pelas altas taxas de lucro e índices de atividade do setor industrial-, ou não foi só a direita senatorial que deu um tiro no pé.

Parece que certas entidades patronais até agora não entenderam de maneira precisa o caráter e o sentido da coalizão conduzida por Lula.

Em todo caso, não terá sido a primeira, nem certamente a última, vez que classes sociais e seus representantes se deixam enganar por preconceitos e refrações ideológicas. De tanto afirmar a urgência de aliviar a carga tributária, escapou-lhes que a CPMF era parte essencial de um modelo que, longe de representar “gastança” inútil, garante a margem necessária para, ao mesmo tempo, aumentar o investimento social e pagar juros que, embora declinantes até setembro de 2007, ainda consomem parte muito significativa do orçamento público.

Com a súbita desaparição de quase R$ 40 bilhões de arrecadação, a direita obriga o governo a rever os termos do acordo imaginado para vigorar até o fim do segundo mandato. Ou corta gastos que, direta ou indiretamente, interessam ao trabalhador, ou reduz o superávit primário e determina que o BC reduza a taxa de juros e, portanto, o montante gasto com a rubrica que diz respeito aos rentistas e bancos.
Qualquer diminuição do investimento público prejudica as classes populares. Bolsa Família, vencimento dos funcionários públicos e salário mínimo pago pelo INSS são transferências diretas do Tesouro para o bolso de assalariados e aposentados.

A reação rápida do funcionalismo, antes até da definição sobre onde passaria a tesoura, mostra que os possíveis afetados perceberam imediatamente o sentido da pressão a favor de um “ajuste fiscal”.

Do mesmo modo, eventuais restrições a concursos ou obras do PAC acabarão sempre por afetar mais os que possuem menos, seja pela diminuição de serviços estatais, seja pelo aumento de tarifas.

No caso da infra-estrutura, atingiria a sustentabilidade do crescimento econômico, que, embora beneficie também empresários que apoiaram o fim da CPMF, é prioridade absoluta para os que dependem de um emprego para sair do inferno e ingressar em uma vida mais ou menos civilizada.

Isso explica a adesão do bispo que dirige o Serviço de Caridade, da Justiça e da Paz da CNBB à iniciativa de mobilizar os movimentos sociais para evitar o que seria um retrocesso inaceitável do ponto de vista dos pobres (ver o manifesto “Por uma reforma tributária justa”, publicado neste espaço em 10/1).

Em resumo, o gesto talvez impensado da oposição produziu uma polarização das opções governamentais. Imaginar que se consiga economizar R$ 40 bilhões diminuindo o número de membros do governo que viajam de avião é daquelas mitologias que só continuam a se propagar pois há interesse em manter cidadãos confusos.

Fortalecido pela nítida manifestação popular no segundo turno de 2006, pelo bom desempenho da economia em 2007 e pela compreensão que sindicatos e movimentos sociais mostram da conjuntura, a situação objetiva permite que o Executivo escolha o caminho da esquerda para resolver o impasse criado pelos conservadores no Senado.

Ao fazê-lo, ajudaria, mesmo em um cenário de incertezas internacionais, a que o país mantivesse o ritmo de expansão em 2008 e a que os setores progressistas pudessem fazer das eleições municipais oportunidade de conscientizar o povo sobre o conteúdo da disputa hoje existente no Brasil.

Cabe ao PT, como maior partido do governo, mas também principal partido socialista do país, cujo novo Diretório Nacional se reúne pela primeira vez no próximo dia 9, deixar claro qual caminho convém aos trabalhadores.

ANDRÉ SINGER , 49, jornalista e cientista político, é professor do Departamento de Ciência Política da USP. Foi secretário de Redação da Folha e secretário de Imprensa e Porta-voz da Presidência da República (governo Lula).

Publicado no Jornal Folha de S. Paulo de 22/01/2008

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