Michael Löwy analisa as mobilizações populares na América Latina.
Löwy fala ainda da criação de uma nova cultura contestatória, em que se cria uma relação nova entre os países do Norte e do Sul. Não uma simples solidariedade, mas a luta comum em torno de objetivos comuns.
Os desafios da esquerda na América Latina
Entrevista Michael Löwy
Michael Löwy, sociólogo brasileiro radicado na França, esteve recentemente no país. Nesta entrevista do Democracia Socialista ele analisa a situação dos movimentos sociais na América Latina e seus desafios políticos.
Como você vê o momento da esquerda e do pensamento socialista na América Latina?
Do ponto de vista da esquerda na América Latina, um aspecto fundamental é essa dominação esmagadora do imperialismo. Frente a esse poder – a essa chapa de chumbo do neoliberalismo, da dominação das multinacionais e do FMI – há um movimento de resistência em toda a região, que teve seu ponto de partida com o levante zapatista de 1994.
A partir desse momento, pudemos acompanhar a aparição pública de uma série de movimentos sociais, passando de um país para outro, percorrendo quase toda a América Latina. Esses movimentos têm como inimigo imediato as políticas neoliberais: o tubarão imperialista por um lado e os governos invertebrados – para ficar no zoológico – que estão seguindo a orientação do Consenso de Washington.
Uma coisa notável, que não concorda muito com os clássicos do marxismo, é que são os camponeses e os indígenas que em muitos países são o motor social do movimento, sua força mais dinâmica. É o caso do México. Na Colômbia, também é do campo que vem a resistência maior. O caso do Brasil é evidente, com o MST, que é o principal movimento social hoje no País, senão de toda a América Latina. A exceção seria a Argentina, onde o movimento é mais dos desempregados e de certos setores de classe média.
E o caso venezuelano?
Lá é um movimento urbano e rural; há uma mobilização rural, mas o setor mais importante é a população pobre da periferia de Caracas, que projetou Chávez e impediu o golpe. Praticamente do norte ao sul da América Latina há essa efervescência social, essa mobilização dos camponeses ou, de uma maneira geral, do que eu chamo “pobretariado” – essa massa de pobres do campo e da cidade, que inclui uma parte da classe operária mais oprimida.
O problema que eu estou vendo, do ponto de vista da esquerda e do socialismo, é que há uma grande defasagem entre essa mobilização social anti-neoliberal, anti-imperialista – em alguns momentos anti-capitalista –, e sua expressão política. Esses movimentos têm radicalidade – na Argentina derrubaram três governos, na Bolívia obrigaram o cara a fugir de helicóptero, na Venezuela impediram um golpe de estado e derrubaram uma junta pró-americana que tinha se formado. Mais do que isso, eles mobilizam muita gente.
A defasagem é que esse movimento tem muita dificuldade de ter uma expressão política adequada.
Mas há casos favoráveis.
O caso mais favorável é o da Venezuela. Ali você pode dizer que há até uma certa sintonia entre o movimento social e o governo Chávez. Tirando Cuba, onde houve uma revolução socialista, o governo venezuelano é o que aparece mais avançado hoje na AL em termos de reformas sociais, de resistência aos ditados do imperialismo, soberania nacional, luta contra a oligarquia.
Mesmo assim falta na Venezuela uma expressão política de um partido que represente os interesses dos explorados e dos oprimidos. Não existe isso. Existem forças políticas cuja única identidade é apoiar Chávez. Claro que temos que apoiar Chávez, mas falta um partido político que dê continuidade, elabore programa, discuta com a base.
Na Argentina essa defasagem também é notável, não?
Na Argentina você teve essa mobilização extraordinária, houve uma insurreição incrível. Derrubaram três governos com aquela palavra de ordem: “que se vayan todos”. Só que não conseguiram dar expressão política pra isso. A esquerda argentina, que padece de um sectarismo congênito, não se uniu e foi para as eleições dividida. Uma parte pelo boicote, outros foram participar da eleição. Resultado: outra vez, voltou o peronismo. Toda aquela mobilização, todo aquele levante, “que se vayan todos”, e depois “vuelven todos”.
Está certo que é um peronismo um pouco mais democrático, um pouco mais progressista. O governo Kirchner é obrigado a “fazer média” com essa mobilização social, no sentido de não reprimir. Tomou algumas medidas democráticas como, por exemplo, botar na cadeia os militares torturadores. E na política econômica há uma tentativa de negociação, eles não estão aceitando tudo o que os americanos pedem. Pelo menos em algum grau há uma briga, mas não corresponde nem de longe àquela aspiração forte de uma mudança profunda.
E o caso do Brasil vocês conhecem melhor do que eu. Mesmo problema, mesma defasagem entre as aspirações do movimento social, do que havia sido o próprio programa do PT e o que está sendo o governo Lula, que é bem decepcionante.
Agora com as eleições no Uruguai e a vitória da Frente Ampla, vamos esperar que vá ser diferente; sejamos otimistas. A esperança é que eles cumpram pelo menos uma parte de seu programa; vamos ver.
A coisa toma forma diferente de um país para outro, mas há essa característica comum, de um movimento social bem massivo, radical, insurrecional às vezes. Todos com forte capacidade de sacudir o coqueiro, mas não com força para assumir uma alternativa política, para ter uma expressão política que dê tradução programática, eventualmente governamental – pelo menos política, no sentido de um partido – a essa mobilização e a essa radicalidade.
Há algo em comum que faz com que todos esses países padeçam dessa mesma questão?
Sempre houve essa defasagem. São raras as vezes em que os movimentos sociais conseguem ter um partido político que realmente corresponde às suas demandas, às suas exigências. Isso existiu com o PT histórico, “o PT do século passado”, por um certo período. Mas a verdade é que isso é raro.
Há problemas, não é simples. São diferenças que existem, lógicas distintas, mas não é impossível. Isso aconteceu em uma certa época no Brasil, e está sendo possível até certo ponto na Venezuela. Há uma certa sintonia entre a aspiração popular e o governo Chávez, mas com o problema que eu disse: falta um partido político que organize isso.
O papel dos socialistas é tentar contribuir para reduzir esse abismo. Tentar encontrar mediações para buscar dar ao movimento social uma expressão política que responda às suas exigências, suas demandas radicais de ruptura, de mudança de modelo econômico, de busca de uma alternativa. Esse é o desafio que a gente tem pela frente.
A eleição de Bush parece antecipar um cenário de agudização da relação centro-periferia. Como você vê o cenário para o futuro próximo?
A dificuldade de ler o passado e entender o que aconteceu já é muito grande. Prever o futuro realmente não dá, ninguém pode se arriscar a isso. Salvo coisas muito gerais. É possível dizer que com as eleições norte-americanas – e isso independentemente de quem fosse eleito – a contradição entre a política do Império e dos povos da periferia vai se intensificar.
Portanto, a necessidade de uma resistência, sobretudo em um movimento internacional, se torna ainda mais importante. Esse é um dos aspectos positivos dos próximos anos – e isso vai continuar: o aparecimento de um novo internacionalismo. Todo esse movimento que na Europa chamamos de altermundialista, e nos EUA eles chamam de movimento de justiça global.
Esse movimento, que é internacionalista, está se estendendo não só na Europa e na América Latina como também agora na Ásia, onde aconteceu o último Fórum Social Mundial, e possivelmente na África. Está se forjando uma nova cultura contestatória, radical, anti-neoliberal, mas também anti-capitalista, na qual entre os países do Norte e do Sul há uma relação nova. Não é mais a solidariedade do Norte com o Sul, mas a luta comum em torno de objetivos comuns.