O feminismo foi, desde o início, parte integrante do projeto do PT, fruto da atuação de centenas e centenas de militantes do movimento de mulheres, de ativistas feministas que enraizaram a incorporação do feminismo como parte da experiência do partido.
A luta pela igualdade entre mulheres e homens, o enfrentamento da discriminação e das relações patriarcais que marcam a sociedade brasileira, a necessidade de construir políticas com a perspectiva feminista em sua ação institucional, e o questionamento ao machismo, ainda presente, no cotidiano das relações partidárias foram colocados na pauta do partido, como uma exigência e um desafio para um partido que se queria novo e libertário. Assim, em momentos de sua história, o PT foi um instrumento portador da esperança de construção de um projeto de partido que, em diálogo e, ao mesmo tempo, em contraponto com aspectos da tradição da esquerda mundialmente, fosse capaz responder ao desafio de romper com as desigualdades. Afinal, a luta contra a desigualdade, a indignação contra a opressão, a perspectiva de construção de um mundo sem exploração, se via inquestionavelmente incompleta com a persistência da desigualdade entre homens e mulheres. Uma questão nem sempre percebida e avaliada pela esquerda em sua real magnitude. Não foram poucas as vezes que os militantes de esquerda, o movimento socialista, o campo dos trabalhadores, relegaram a uma posição secundária a proposta da igualdade entre mulheres e homens; ou mesmo contrapondo-se explicitamente às bandeiras e reivindicações defendidas pelas mulheres.
Na história brasileira, as militantes feministas petistas tiveram uma valiosa contribuição na construção do movimento de mulheres, com um papel decisivo em sua ampliação e enraizamento no movimento social e na construção de uma referência socialista para um amplo campo do movimento de mulheres. Uma grande parcela do movimento de mulheres, em sua base social mais ampla, se identificou com o Partido dos Trabalhadores e depositou nele parte de suas esperanças de alterar a forte desigualdade entre mulheres e homens em nossa sociedade. Afinal, a perspectiva de um feminismo socialista não desassocia a necessidade por profundas mudanças sociais, a ruptura com as desigualdades de classe, marcada pela superexploração das mulheres no mundo do trabalho, e étnico-raciais, da busca de superação da opressão sexual. Neste sentido é indispensável que o partido se identifique, de forma efetiva, com a subversão cotidiana dos padrões, dinâmicas e valores que se fundam na hierarquia opressora das relações de gênero. O partido não pode deixar de assumir essa pauta como estruturante no processo de mudanças.
A atuação crítica das militantes feministas dentro do partido, contribuindo para o questionamento de práticas machistas, na defesa de um programa partidário que incorporasse os interesses das mulheres, e a construção de um processo de auto-organização das mulheres, marcou a história do PT. Isso contribuiu para que o partido também inovasse no debate sobre a exclusão das mulheres dos espaços de poder e direção e na construção de uma perspectiva de políticas públicas que incidissem sobre a desigualdade entre mulheres e homens.
No entanto, já há vários anos, o partido vem tendo um desenvolvimento contraditório, com um processo de despolitização de suas pautas, perda das dinâmicas de organização interna, institucionalização e burocratização de suas estruturas organizativas e das direções. Se isso tem um reflexo negativo sobre praticamente todas as áreas de atuação do PT, incidindo sobre os diversos âmbitos de direção, sobre os setoriais, também o trabalho feminista do PT foi fortemente influenciado por esta dinâmica. A Secretaria de Mulheres do PT deixou de ser um espaço coletivo de elaboração da política, de acompanhamento da vida partidária e da ação institucional do PT, de organização da militância das petistas. Se uma mudança radical do PT é indispensável para reconstruir o partido, isso não é diferente para o trabalho da Secretaria de Mulheres.
Não como decorrência natural, mas fruto da atual condução política, foi se repetindo ali a verticalização presente em outras estruturas partidárias controladas por uma política sectária do campo majoritário, sem a participação ampla das militantes e dos coletivos, minando a construção da unidade de ação das petistas, impedindo a continuidade da construção de uma política feminista unitária, que caracterizou o nascimento e a construção do trabalho de mulheres do PT durante quase duas décadas. Tal condução resultou em esvaziamento do papel da secretaria no conjunto da vida partidária, na perda na visão de um feminismo socialista e rebelde e não se enfrentou o retrocesso no interior do partido e nos espaços institucionais de atuação do PT.
O processo de institucionalização e despolitização, da fragilização das instâncias coletivas, dificultou, ainda mais, uma luta que por si só já encontrava dificuldades no partido: garantir na sua atuação e no seu programa uma coerência com as bandeiras do feminismo. Tal condução, com o esvaziamento brutal da atuação coletiva das mulheres, caracterizou uma superficialidade cada vez maior das questões programáticas, e a ausência de um efetivo enfrentamento do conservadorismo nas relações de gênero. É preciso mudar radicalmente esta prática e este funcionamento, que se recupere um processo democrático de funcionamento no sentido de fortalecer uma prática feminista dentro do partido e a militância das mulheres como sujeito coletivo, com os desafios apresentados também pelas mulheres negras, pelas jovens, pela questão LGBT, superando as imensas ambiguidades e concessões ao conservadorismo, laico e religioso, que levam a um eterno postergar das bandeiras prioritárias das mulheres.
Para o conjunto do partido é central uma discussão e avaliação crítica da debilidade da perspectiva feminista predominante no PT, que nos possibilite uma reflexão sincera sobre as dificuldades enfrentadas pelos governos petistas nesta área, sobre as ambiguidades de nossas bancadas parlamentares, majoritariamente masculinas, para se posicionar em defesa das pautas de interesse das mulheres, e garanta o enfrentamento do machismo presente no cotidiano do partido, quando se vê aumentar as práticas machistas dentro e a permanente desqualificação das militantes mulheres. Isso se expressa desde as campanhas eleitorais, no rebaixamento e falta de compromisso com as políticas voltadas para as mulheres em vários dos nossos governos, na visão conservadora em relação a várias questões como, por exemplo, nos temas da prostituição, do direito ao aborto, de uma visão crítica sobre a influência das religiões e das igrejas na política, das políticas públicas em geral. E em uma postura de descaso na aplicação da paridade entre mulheres e homens, que necessita ser entendida como parte de uma ação política decidida de enfrentamento à desigualdade e discriminação milenar sobre as mulheres. Não podemos aceitar a manutenção da dinâmica interna em que as reuniões e decisões centrais sejam feitas prioritariamente por homens.
O desafio que temos pela frente é imenso. É nítida a reação patriarcal e a ofensiva conservadora no Brasil que, no Congresso Nacional, nos grandes meios de comunicação, no crescimento do conservadorismo religioso, atuam para promover e fortalecer discursos e iniciativas de controle do corpo e da sexualidade das mulheres, com o reforço ideológico de padrões comportamentais e valores. A retirada de direitos patrocinada pelo governo golpista tem como um de seus alvos prioritários reduzir direitos das mulheres. A disputa em torno das relações de gênero esteve e está no coração do conservadorismo e do pensamento reacionário que vem crescendo no Brasil. O que se expressou em vários temas, e também de forma explícita e brutal diante da presença de uma mulher na Presidência da República.
As mulheres, o movimento de mulheres, tiveram um papel marcante nas mobilizações contra o conservadorismo no Congresso Nacional e contra o impeachment. Ainda que milhares de nós, militantes petistas, estivéssemos todos os dias nas ruas na luta contra o golpe, o PT foi incapaz de ter uma presença destacada neste processo.
Retomar a capacidade de mobilização, de organização, de luta do PT é hoje indispensável se quisermos, de fato, um partido capaz de lutar por mudanças sociais profundas, de disputar uma política anticapitalista, antirracista e antipatriarcal. E capaz de fazer frente ao retrocesso político, ideológico, social, que vem prevalecendo no Brasil hoje.
Queremos um partido que enfrente o desafio de lutar por uma sociedade com igualdade entre mulheres e homens; que retome o esforço de construção de uma política feminista unitária, capaz de enfrentar os conflitos que as mulheres feministas se defrontam quando se propõem a construir, como aqui nos propomos, um partido e um projeto político de esquerda.
Queremos um partido onde possamos, de fato, chamar de companheiros os seus militantes. Não fechamos os olhos às contradições e às dificuldades desta luta, mas reafirmamos que ela só vale a pena, se a coerência de uma plataforma de esquerda refletir uma defesa intransigente de um feminismo socialista, da igualdade entre mulheres e homens, do combate à opressão étnico-racial, do enfrentamento da LGBTfobia em todas as suas manifestações, com o fim de toda desigualdade social.
Militantes Mulheres do Muda PT
Brasília, 02 e 03 de dezembro de 2016