Indo muito além dos discursos e das grandes narrativas, Nalu gostava de estar nos processos concretos de construção estratégica, sentada em roda, construindo sínteses, consenso, organização e luta.
Não é exagero começar esse texto afirmando que muito do que é o feminismo popular hoje — no Brasil, na América Latina e no Caribe e internacionalmente — tem as mãos, o coração, a mente e a energia militante de Nalu Faria (1958-2023). Nalu dedicou sua vida à construção do socialismo democrático, necessariamente feminista e internacionalista. Indo muito além dos discursos e das grandes narrativas, ela gostava de estar nos processos concretos de construção estratégica, sentada em roda, construindo sínteses, consenso, organização e luta.
Podemos escrever sobre Nalu do macro ao micro, do local ao internacional, e vice-versa. Sua prática era a expressão dessas e muitas outras conexões. Em sua despedida, ficou evidente a contribuição de Nalu para além da Marcha Mundial das Mulheres. Suas companheiras de militância afirmaram que ela tinha muitas “casas”. Uma casa de Nalu é SOF Sempreviva Organização Feminista, que Nalu integrou desde os anos 1980 e coordenou, e que é uma referência em educação popular feminista, na elaboração da economia feminista e na construção da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. Mesmo antes do surgimento da MMM, a partir da SOF vemos o compromisso de Nalu com a construção de um feminismo da classe trabalhadora — um marco nessa história foram as formações feministas do Instituto Cajamar.
Quando o chamado para construir a Marcha Mundial das Mulheres chegou ao Brasil, a SOF e a secretaria de mulheres da Central Única dos Trabalhadores (CUT-Brasil) foram as representantes do país nesse processo. Com as companheiras da SOF, Nalu viu nessa proposta a possibilidade de construção de um movimento feminista internacional, com uma agenda anticapitalista que desafiasse as dinâmicas institucionalizadas e orientadas pela agenda da ONU. A partir daí, ela e suas companheiras apostaram nessa construção, passo a passo, no Brasil e internacionalmente, para tornar realidade essa possibilidade.
Nalu tinha olhos de águia, conseguia ver muito longe. Seu pensamento estratégico sempre ia de mãos dadas com um olhar atento para os detalhes: dos processos, das palavras usadas nos textos e slogans, das cores dos adesivos e da expressão estética, profundamente política, do nosso feminismo. Nalu dizia que a luta tem que ser bonita e colorida; tem que ter uma estética que reflita o que é a alegria das mulheres trabalhadoras. Mesmo quando o assunto era violência contra as mulheres, a ênfase deveria ser na capacidade de superação, na resistência, nas estratégias das mulheres para romper a violência, superar a dor e derrotar o patriarcado.
No Brasil, a conformação da MMM como movimento popular, diverso e de esquerda carrega o acúmulo dos processos que Nalu participou desde os anos 1980. Desde o início de sua militância — no movimento estudantil em Uberaba, Minas Gerais, passando pela sua chegada em São Paulo — outra “casa” de Nalu foi a Democracia Socialista, tendência interna do Partido dos Trabalhadores. Nalu contribuiu muito com a auto-organização das mulheres do PT e também da CUT. As lutas por creches, por cotas para a participação das mulheres nos espaços da política — incluindo na direção —, partiam de uma elaboração política sobre a divisão sexual do trabalho como base da opressão das mulheres. Tais lutas marcaram esse processo, em que Nalu também atuou para afirmar que as mulheres trabalhadoras são o sujeito político do feminismo.
Para Nalu, a história do feminismo era algo que todas precisávamos conhecer bem, inclusive identificando continuidades ideológicas que por vezes pareciam ter sido superadas e reapareciam de forma complexa, armadilhas liberais que despolitizam o movimento e enfraquecem o sujeito coletivo. Incentivou que aprendêssemos sobre a história das feministas socialistas, sua construção internacionalista e seus debates com o movimento socialista e com o feminismo burguês; a história das mulheres que lutaram na independência de seus países e contra a escravidão; a história das organizações das mulheres, das diferentes correntes do feminismo e das teorias, mas também a história de grupos de mulheres nos bairros.
“Como essa reivindicação vai alterar ao modelo e não acomodar um pouco mais de mulheres na estrutura do capital?”, questionava. Nalu foi uma das lideranças da vitoriosa campanha contra a ALCA nas Américas. E insistia, a cada passo dessa luta, que não bastava “incluir” as mulheres naquele acordo neocolonial, porque todo o acordo deveria ser derrotado, e a única forma de fazer isso era com muita mobilização popular. Nessa luta, a economia feminista foi se consolidando na elaboração de Nalu, da MMM e da Rede Latino-americana Mulheres Transformando a Economia (Remte). Não bastava identificar impactos negativos desse projeto sobre as mulheres e atuar para tentar remediá-los, porque esse era um projeto neoliberal do imperialismo que tinha o patriarcado bem articulado em seu centro.
Ajuste estrutural e redução da capacidade do Estado de garantir direitos e serviços públicos só é possível com mais trabalho não remunerado das mulheres que sustentam a vida nas condições mais precárias. Trazer a sustentabilidade da vida para o centro da política e da economia, alterar sua estrutura, reequilibrando as esferas da produção e da reprodução, fazem parte da economia feminista que Nalu pensou e praticou em sua trajetória política. Ela dizia que, em tempos difíceis, precisamos nos radicalizar ainda mais; não podemos ceder para o que parece ser o limite da conjuntura, temos que atuar para ampliar as fronteiras do possível.
Nalu sempre respeitou os processos políticos e preservou os espaços de diálogo, explicitando divergências, mas construindo consensos, fundamentais para construir unidade e massificar a organização popular. As energias de Nalu se dividiam de forma complementar entre a auto-organização das mulheres e a construção de alianças estratégicas com os movimentos sociais mistos. Ela foi muito parceira das mulheres dos movimentos para debater e construir suas próprias perspectivas feministas, fortalecendo os movimentos como um todo. São muitos os relatos da importância de Nalu para o feminismo popular a partir de movimentos e organizações como a Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), os Amigos da Terra, a Central de Movimentos Populares (CMP), a União Nacional dos Estudantes (UNE), e a lista poderia ir adiante. Desde a primeira edição da Marcha das Margaridas, em adesão à MMM em 2000, Nalu contribuiu ativamente para a construção dessa que é a maior mobilização das trabalhadoras do campo, das águas e da floresta no Brasil.
Nalu foi uma referência da esquerda brasileira e latino-americana. Atuou na Frente Brasil Popular, na Jornada Continental pela Democracia e contra o Neoliberalismo, na ALBA Movimentos e na Assembleia Internacional dos Povos. Nesses espaços e em outros espaços, discutia conjuntura política e econômica, propostas para o Brasil, de integração regional e soberania dos povos, de luta anti-imperialista, sempre a partir do feminismo. E esse é um dos grande legados de Nalu para a esquerda: é preciso superar a visão de que o feminismo é um capítulo à parte da luta socialista, como se fosse algo “específico”, apenas subordinado à luta “geral”.
A revolução pela qual Nalu lutou é necessariamente socialista, feminista, anti-imperialista e antirracista. A capacidade de organização para essa luta é construída a partir dos territórios e das contradições enfrentadas, sentidas e vividas pelos povos, sem fragmentar as lutas, mas forjando sínteses, e encontrando na luta popular as soluções e alternativas que devem orientar propostas de políticas antissistêmicas. Nessa mesma linha, Nalu contribuiu e acompanhou de perto o Centro Feminista 8 de Março, no Rio Grande do Norte, organização que também compõe a coordenação da MMM no Brasil. Ela chamava a atenção para a forma como os processos de organização e transformação da economia real mudavam diferentes dimensões da vida das mulheres potiguares.
Com Nalu, aprendemos a prática da educação popular feminista. Brasil afora, encontramos militantes de diferentes gerações que lembram de oficinas facilitadas por Nalu, e que mudaram suas percepções sobre os mais diversos temas. Aprendemos que existem diferentes maneiras de expressar como vemos e sentimos temas difíceis – dos pessoais-políticos aos geopolíticos. Aprendemos que a formação política é um processo no qual enfrentamos contradições, desatamos nós e avançamos como grupo, fortalecendo sujeitos coletivos. “Como foi fazer essa atividade? Como vocês se sentiram?” eram as perguntas que Nalu nunca esquecia de fazer após uma dinâmica de grupo. As respostas davam um passo a mais para romper com a dicotomia patriarcal entre razão e emoção. Nalu também saia das oficinas com novas percepções. Sua presença nos encontros dos Paradigmas Emancipatórios, em Cuba, por exemplo, traziam para nossa experiência brasileira inspiração e força das práticas de construção de poder popular. “O que a gente aprende, a gente coloca na roda e passa pra frente”, Nalu escreveu em um de seus textos sobre metodologia. Nos últimos anos, Nalu levou esse acúmulo para a Escola Internacional Berta Cáceres, mantendo sempre o compromisso com escutar e dialogar, mesmo com o desafio de fazer isso em um espaço virtual, com diferentes idiomas, e com o tempo sempre curto.
Desde 2016, Nalu integrou o Comitê Internacional da MMM, impulsionando a organização da MMM nas Américas e contribuindo com a construção das agendas políticas do movimento: desde a elaboração da crítica às empresas transnacionais e a noção do conflito capital-vida, passando pelo acompanhamentos dos processos de aliança e com a construção do Capire.
Nalu sempre trazia a importância de não hierarquizar quem pensa e quem faz, não hierarquizar gerações, entender as demandas de cada tempo e lugar construindo sínteses capazes de avançar nossas lutas, sem perder de vista o nosso horizonte de transformação ao definir as estratégias e apostas políticas.
Todas essas “casas” de Nalu formavam sua comunidade. E comunidade se constrói a partir das relações pessoais e políticas, a partir de cuidado, afeto e solidariedade. E também de alegria, de música, de comida e de festa. Todas essas são também marcas da trajetória de Nalu, registradas em diferentes relatos de mulheres e homens de diferentes gerações e países. Nalu semeou feminismo, o internacionalismo e a conexão entre as lutas. Semeou muitas sementes, regou, nutriu, sempre disposta a conversar, escutar, pensar junto.
Nalu foi dessas pessoas extraordinárias que sabemos reconhecer quando cruzam nossos caminhos, com a característica singular de que Nalu não apenas cruzava, mas ficava com a gente, construindo juntas os caminhos.
Sua partida, decorrente de uma doença cardíaca, em 6 de outubro deste ano, nos deixou com muita tristeza e dor, mas com muito compromisso de manter sua memória viva e encontrar as formas de seguir, juntas, a marcha de Nalu.
Herança
Poema de Camila Paula
A indignação e a capacidade de organizar a luta
Com comprometimento, força e ternura
De uma feminista revolucionária
Escreveu, até aqui, a história que nos encontra,
Hoje, não prontos e prontas, mas de pé para seguir escrevendo
A radicalidade urgente de um novo tempo.
Ora! Mirar o horizonte de um outro mundo é exercício coletivo
– de ontem e de agora –
E se um farol se apaga para fora,
É hora de acender o que está dentro:
Do fundo dos nossos quintais-continentes
Sejamos luzeiros da esperança teimosa aprendida
Nossas mãos dadas: varais de bandeiras vermelha-lilás
Até que tremule a bandeira da paz
Em todo recanto desta Terra!
O caminho, camaradas, segue sendo um:
O bem comum de iguais.
Não fiquemos distantes.
Façamos como sabemos –
Com paixão e sem se dobrar à nenhuma tirania!
Companheiras, amigas, em nós permanece ardendo a Marcha da solidária rebeldia.
Sonhar, amar e mudar o mundo
Como Nalu Faria.
Até que todas sejamos livres!
Tica Moreno e Maria Fernanda Marcelino são militantes da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.
Via Capire
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