A renomada jornalista e ativista, Naomi Klein, dedica-se ao estudo dos choques políticos, das mudanças climáticas e do despotismo das marcas. Em Não basta dizer não, obra publicada após a vitória eleitoral do trumpismo, nos Estados Unidos, a autora estampa o descontentamento com a ascensão do “nacionalismo branco” que afasta para longe o ideal do “mundo justo e solidário”. A questão é como concretizar no século XXI os generosos lemas da Modernidade, que inspiraram a fórmula radical do prefeito de Paris na fachada dos edifícios públicos, em 1793: “Liberté, Égalité et Fraternité ou la mort”.
Tal é a esfinge que a escritora canadense procura decifrar, antes que a cortina pesada do totalitarismo obscurantista desça sobre o palco da democracia e da humanidade. Trump é a supermarca que imprime a riqueza privada no sistema político, estimula o medo da alteridade e minimiza os danos do modo hegemônico de produção e consumo predatórios.
Conforme o Relatório da Oxfam, apresentado no World Economic Forum, de Davos, na pandemia emergiram ultra-ricos nos setores de energia, alimentos, tecnologia e medicamentos. Na órbita internacional, trinta empresas lucraram R$ 545 bilhões a mais do que no período 2016-2019. No país, enquanto 13 milhões de pessoas ficavam sem emprego e 600 mil micro, pequenas e médias empresas fechavam as portas, o leque de bilionários brasileiros acrescentou R$ 180 bilhões à sua fortuna. Para uns, a crise sanitária gerou negócios; para o povo, sofrimento, fome e 700 mil óbitos.
O caos pandêmico magnificou os números, mas a tendência à concentração de renda remonta aos anos 1980, quando o neoliberalismo se afirma com a chancela do Consenso de Washington. Iniciava a era de ajustes fiscais para barrar os projetos institucionais de igualitarização, e romper o pacto civilizatório da solidariedade e da sustentabilidade. Desde então, a ideologia da inimizade corrompe a utopia liberal do Estado de bem-estar social, criado aos moldes da Europa ocidental na idade de ouro. Entre nós, na sequência do impeachment, a precarização do labor com a Reforma Trabalhista e a Lei das Terceirizações adequou a nação ao receituário da globalização. Resultado: a participação da massa de salários caiu 12,9% em relação ao PIB nos últimos anos. Cresceu como rabo de cavalo.
Para Noemi Klein, trata-se de “um golpe corporativo sem disfarces que vem sendo elaborado há tempos”. Não à toa, na administração trumpista, “a ExxonMobil assumiu o Departamento de Estado, a General Dynamics e a Boing ocuparam o Departamento de Defesa, e os caras da Goldman Sachs praticamente todo o resto”. O poderio econômico tem lado no espectro político. O assessor da Presidência no mandato de Trump, Steve Bannon, sintetizou assim o assustador objetivo da gestão – “desconstrução do Estado administrativo”. Indicações para órgãos de regulamentação e agências governamentais de proteção aos direitos privilegiaram candidatos em contradição com a função.
O presidente da Argentina, Javier Milei, denomina “anarcocapitalismo” o modelo autofágico de governabilidade que, via de regra, implica a extinção de ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Trabalho; Cultura; Mulheres, Gênero e Diversidade – para que não interfiram na dinâmica desenfreada de acumulação do capital. Aspectos do programa da extrema direita só podem se viabilizar sob o Estado de exceção, com a suspensão de normas democráticas fundamentais para contemplar, por exemplo, a promessa de proibir a entrada de quem professa a religião muçulmana, ou o desejo compartilhado pelos ditadores de plantão de impor restrições à imprensa.
O conferencista do Fronteiras do Pensamento, Michael Sandel, em A tirania do mérito, considera que “uma mistura tóxica de arrogância com ressentimento” preparou a escalada do extremismo. As alucinações estavam no kit. “Qualquer esperança de renovarmos nossa vida moral e cívica depende de entender como, ao longo de quatro décadas, nossos laços sociais e nosso respeito um pelo outro se desmantelaram”. Donald Trump e seus globetrotters na América Latina devem ser vistos pelo que são: um sintoma de um mal profundo que decidimos, coletivamente, nos unir para curar.
Dizer “não” à necropolítica e ao necropoder significa recusar o arcabouço estrutural que descuida do planeta, provoca poluição, guerras e, ainda por cima, incrementa as desigualdades entre as classes sociais e reproduz os líderes autoritários. É preciso mudanças de caráter popular que releguem o atual golpe corporativo, encarnado nos princípios do livre mercado contra a esfera pública, a uma nota de rodapé histórica. Hoje o Brasil é a vanguarda da luta pela democracia mundial com justiça social e ambiental, rumo à sociedade da amizade. O que fazemos repercute ao Sul e ao Norte.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.
(Publicado originalmente no Caderno Doc, do jornal Zero Hora, em 17/02/2024).