Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro // Em seguida levaram alguns operários / Mas não me importei com isso / Eu também não era operário // Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável // Depois agarraram uns desempregados / Mas como tenho meu emprego / Também não me importei // Agora estão me levando / Mas já é tarde / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo” – Autoria incerta.
– Introdução
Escrever sobre a conjuntura política nacional é um exercício de esperança e, em simultâneo, o necessário esforço para a superação do asco causado pelo desgosto de haver visto o país tornar-se um ator proeminente no cenário internacional e, agora, vê-lo convertido em um pária tido por “ameaça global”, como noticiou há pouco o prestigioso jornal britânico The Guardian. Ter assistido, através do consumo e da renda, a ascenção social de 40 milhões de brasileiros e brasileiras para espanto, medo e raiva do Terraplanismo e, dez anos depois, deparar com a fome a agonizar dezenas de milhões de indivíduos – dói na alma. Pensar que amanhã outros tantos milhões se sub-alimentarão apenas do que acharem no lixo das classes médias – dá um aperto no coração. Deus, quanta miserabilidade e desemprego por todos os lados.
Cruzar com a procissão sertaneja de Vidas Secas saída de um livro de Graciliano Ramos ou com o Gaúcho a Pé (sem cavalo) da trilogia de Cyro Martins, que o vírus invisível fez mais visíveis e numerosos – que tristeza dá. Sentir a impotência frente ao genocídio em curso, a perda de amigos e conhecidos em cada olhar perdido nas paradas de ônibus e nos semáforos – não dá vontade de acordar. Observar o desamparo e a violência que aterroriza, mata e esquece os corpos esquálidos que insistem em renascer nas periferias – pesa nos sonhos ainda a serem sonhados. E, no entanto, a gente encontra (sabe-se lá como) forças para bradar: “Chega! Basta!”
Há acontecimentos que concentram o que os filósofos alemães chamam de Zeitgeist: o Espírito do Tempo. O massacre sócio-racial de Jacarezinho condensou o Mal sofrido ao longo da história pelos marginalizados, sobreviventes da barbárie escravista que durou mais de três intermináveis séculos. O Grito, pintado pelo expressionista Edvard Munch, foi ouvido no Rio de Janeiro. Condenava o Estado que: a) não cuida da cidadania; b) retira direitos aos segmentos vulneráveis; c) dilapida o patrimônio público e ambiental; d) deixa ao léu o futuro com dignidade às gerações vindouras; e) rouba aos aposentados a paz e o sossego que mereceram.
O massacre sócio-racial na periferia da “cidade maravilhosa” é testemunha das iniquidades que corroem a nação. Sintetizou o Espírito do Tempo ao combinar a história e a conjuntura no espaço exíguo de nove horas de brutalidades ininterruptas, perversas como sói ser o capital. Foi uma lição resumida de Brasil. As notas, a seguir, apontam o significado político da trágica epifania, no contexto de inúmeras contendas políticas que atravessam a combalida institucionalidade brasileira atualmente.
– Neofascismo bolsonarista
O neofascismo bolsonarista está alinhado por uma “ideologia como imaginário social”, ou seja, por uma percepção distorcida da realidade que falseou: a) conhecimentos sobre as orientações sanitárias na pandemia e sobre a necessidade de vacinas para a população; b) conteúdos sobre a origem do coronavírus e a suposta guerra bacteriológica da China contra os demais países, bem como sobre o desmatamento da Amazônia, do Pantanal, do Cerrado; c) promessas sobre o respeito ao regime liberal-democrático no momento em que assinou o termo de posse à Presidência; d) desde então, fraudou as “regras do jogo” (expressão de Norberto Bobbio) e as “normas procedimentais” (expressão de Alain Touraine) para apunhalar a própria democracia, a fim de re-implantar o regime de caserna nessas paragens.
O massacre sócio-racial do Jacarezinho estampou a lógica falseadora do real. Confundiu: a) informação sobre “suspeitos”, que o vice-neofascista acusou de serem “todos bandidos” para safar das punições devidas os que emitiram as ordens, e a acareação com bandidos de fato; b) o enfrentamento com recurso da força pública, tendo por mote a defesa da segurança pública, com a execução de inocentes a sangue frio num rastro de cadáveres com tiros nas costas e na cabeça – mesmo desarmados e rendidos; c) o juramento de “servir e proteger” com o sentimento do dever de criação de um cordão de isolamento para 85% % de pobres que sobrevivem em favelas, classificadas como um perigo à “sociedade de bem”. E encaradas como inimigas.
Essas ideias manipuladoras da consciência dos agentes a soldo dos contribuintes, ao cabo, convertem funcionários públicos em guarda pretoriana particular da burguesia, conforme apontou o ex-chefe de Polícia do RJ, Hélio Luz (Brasil 247, 08/05/2021). Pior, com mandato para matar sem atentar para a presunção constitucional de inocência, nem esperar por um julgamento imparcial em um tribunal justo.
Reconfigurar o acontecimento in concreto é, na escala microfísica de Michel Foucault, fazer um acerto de contas com a história que se prolonga nessa virulenta conjuntura política sob o bolsonarismo. O eugenismo racista, que iniciou com a facilitação de imigrantes caucasianos no século XIX para branquear o país, revela que as “classes perigosas” tem cor e moradia fixa, são pretos e pretas e residem nas periferias urbanas, a esmagadora maioria trabalhando na informalidade.
– Enviados do demônio
Os responsáveis diretos pela chacina precisam ser apurados com o exame de balística feito com a expertise da Perícia. À boca pequena, corre solto o boato de que pertencem à Coordenadoria de Recursos Especiais, cognominados de “facção da Core” (The Intercept Brasil, 08/05/2021), o que sugere que o aparelho de Estado abriga um antro de assassinos profissionais. Nas palavras da estupefata defensora pública, nenhuma ação estatal pode ser considerada “um sucesso” com legado de tamanha comoção na sociedade que, como na canção, prefere chamar o ladrão ao policial. A experiência indica que pode ser mais seguro e menos traumático.
A operação desastrada, com o único propósito de disseminar o terror indiscriminado para invocar a noção de mando atávico, em que o senhor de escravos tinha direito de eliminar a propriedade viva quando bem entendesse, atingiu com disparos até quem estava na estação de trem inadvertidamente. O único policial morto deve ter as circunstâncias esclarecidas para que se saiba donde veio o tiro letal. Não seria a primeira vez que as armas da corporação erram o alvo por despreparo técnico.
A ação de porte, com logística de helicópteros e armamentos pesados por terra, horas a fio, deu-se sem aval preliminar do Ministério Público (MP/RJ). Não por casualidade, mas premeditada afronta, depois reiterada na fala do comandante da Polícia Civil (PC) ao criticar o “ativismo judicial” que coibiu a liberdade (leia-se: arbitrariedade) das forças de repressão oficial. Sobraram reclames para a vigilância exercida por Organizações Não-Governamentais de proteção aos Direitos Humanos. Coisa que, na ótica paranóide dos capatazes da Casa-Grande freyriana, beira o insulto e o escármio pois apercebem-se em luta encarniçada contra animais selvagens, quando adentram comunidades faveladas, arrombam portas e interrompem vidas.
Evidentemente o objetivo da operação não se resumia a entregar, com aparato desproporcional em estilo militar, duas dezenas de intimações da Justiça a, repita-se, suspeitos de aliciarem menores de idade a serviço do narcotráfico. A sensação de que os atos seriam relevados em instâncias superiores acompanhou a tropa de choque. Ficou claro na declaração ameaçadora do comandante, na entrevista coletiva posterior ao episódio bárbaro protagonizado pelo Estado em plena luz do sol, contra setores sociais desvalidos: “O combinado não sai caro.” Combinado com quem, cara cínica?
– Recado para a nação
A PC sinalizou o completo adesismo do novo governador do RJ, Cláudio Castro, ao bolsonarismo e a aparente disposição para sustentar o presidente Bolsonaro na travessia das tempestades que surgiram no último período. O morticínio ocorreu no dia subsequente à reunião do governante com a cúpula da seara policial no Gabinete da Segurança Institucional, que concedeu licença à matança. A mensagem à “pátria amada” foi dada pelo Executivo Estadual/RJ, decerto com anuência do andar de cima. O recado veio da vivenda das milícias: “Camarão que dorme, a onda leva.”
O Governo do Rio e seu tenebroso braço armado, doravante, agirão com autonomia (ao menos, relativa) perante o Poder Judiciário (PJ) e o MP/RJ. Primeiro os fatos consumados; os comunicados ficarão para registro póstero nos arquivos. Mais: em franca desobediência às orientações fixadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que, ainda em junho de 2020, “salvo hipóteses excepcionais com a obrigatoriedade de comunicar antes o MP/RJ”, suspendeu abordagens beligerantes nas comunidades durante a disseminação da doença pandêmica. A trégua foi rompida unilateralmente.
A operação serviu para reafirmar a articulação das forças policiais legais com as milícias ilegais, controladoras de várias regiões sob o Cristo Redentor. O ex-deputado Bolsonaro queria legalizar os mercenários. As milícias, assim, ampliam as áreas de controle, enfraquecendo a facção do Comando Vermelho, muito influente junto ao locus comunitário do Jacarezinho. Trata-se de briga de gângsteres, uns atuando no Estado, outros na sociedade civil, com repercussão nas disputas políticas que balançam o edifício Brasil. A polícia carioca, contaminada pelo vírus da corrupção, funciona qual escudo para os milicianos interessados na exploração do pedaço.
Para contextualizar o acontecimento convém recorrer a uma metáfora. Imagine-se uma pedra atirada na água, ela forma círculos. Epistemologicamente, quanto mais abrangentes os círculos formados, maior a compreensão do evento em questão. Essa é a maneira como decidir-se sobre a melhor tese entre duas ou mais. A melhor é sempre a que alcança explicar a extensão de implicações examinadas racionalmente.
– Círculos do inferno
A operação fez: a) demarcação pública entre a disputa das milícias, acobertadas pela polícia, e os traficantes na zona (primeiro círculo); b) penetrou a disputa entre o MP/RJ e a PC, num plano inicial e, na sequência, as atribuições que atritam a Presidência, o PJ e o STF (segundo círculo); c) enviou recado ao Poder Legislativo (PL) e à Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do Genocídio, em disputa com o Governo Federal ao acenar a possibilidade de impeachment (terceiro círculo); d) invadiu a disputa de narrativas com os meios de comunicação de massas, ao obrigar a Rede Globo a cobrir uma intervenção que apresentou, de um lado, a “defesa da ordem” e do “direito de ir e vir da boa sociedade” que, com o laissez-faire econômico, formam o tripé do neoliberalismo e, de outro, o rebotalho descartável pelo sistema capitalista (quarto círculo); e) espetou a direita não-bolsonarista na disputa pelas bandeiras da tradição conservadora, apequenando-lhes o moral para reivindicá-las (quinto círculo); f) na disputa pela opinião pública, a ação empoderou o verdeamarelismo e manteve mobilizado o jogral bolsominion, que foi às ruas no simbólico Dia do Trabalhador (sexto círculo); g) a ação funcionou como provocação na comunidade batizada Jacarezinho, em alusão ao que se transformariam aqueles que recebessem a “vachina comunista”. Essas foram as implicações relevantes.
Os elementos elencados são peças de um quebra-cabeças que demonstraram o embaraço do neofascista-mor et caterva, a saber, o novo governador do RJ e a respectiva PC colonialista (racista e anti-republicana). Os movimentos nervosos e a determinação subjetiva do dirigente miliciano reagem ao garrote que aperta o pescoço majestático. O ser repugnante está cônscio de que só resta-lhe o núcleo duro de apoiadores e uma franja, que não se bate por direitos, senão por privilégios.
O confronto eugênico, aproveitando-se do respeito imobilista de vasto contingente populacional adepto das diretrizes sanitaristas para evitar aglomerações, extrapolou a gramática da guerra de posição nos limites dos vetores da modernidade, iconizados no regime liberal-democrático. É hora daqueles que se movem por uma “ideologia de relação de poder”, quer dizer, por um projeto político contraposto ao ensaio de guerra de manobra deflagrada pelo neofascismo – erguerem barricadas para assegurar a paz social na sociedade civil, dentro das regras do jogo e das normas procedimentais.
– Epílogo de luta
Cabe ao campo democrático-popular a necessidade de retomar as ruas, apesar das recomendações das autoridades da Saúde, para fazer emergir outra autoridade. A autoridade do povo soberano, com as imprescindíveis máscaras zapatistas de prevenção, para decidir os destinos do Estado de Direito – enfraquecido: a) pelo quietismo do PJ e do MP Federal frente à deposição injusta da presidenta Dilma Rousseff em 2016, sem crime de responsabilidade, encaminhada pelo chefe de uma verdadeira organização criminosa, interditado somente depois do trabalho sujo realizado; b) pelas adversidades da conjuntura política acirradas no fatídico ano de 2018; c) pela passividade acumpliciada do PJ e do MPF às flagrantes ilegalidades e corrupções cometidas pela Lava Jato, com auxílio prestimoso do lawfare; d) isto é, do manejo de processos jurídicos para a consecução de metas políticas, na perseguição insana ao ex-presidente Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores (PT).
Atitudes, tais, que fragilizaram as instituições do Estado de Direito Democrático, os defensores da árdua caminhada civilizacional e, portanto, os valores que poderiam robustecer um ideal de República na direção da liberdade com igualdade.
Para encerrar, fica o apelo à reflexão militante do leque da esquerda e de todo o espectro democrata, tendo por fundamento histórico-conjuntural um mesmo paradigma sistêmico. Para que as ruas e as praças voltem a ser apropriadas pelas mobilizações progressistas, libertárias, igualitárias. Na medida do possível, abrindo clareiras de entendimento e sólidas alianças antineofascistas. Essa luta não tem dono. Tem, isso sim, sonhos a serem sonhados e tornados realidade. A gente não desiste.
- Luiz Marques é profesor universitário, UFRGS