Em novembro de 1910, um grupo de marinheiros da Armada brasileira rebelou-se no Rio de Janeiro, assumindo o controle dos principais navios da frota, os encouraçados Minas Gerais, São Paulo e Deodoro, além do cruzador Bahia. Os canhões foram apontados contra o palácio do Catete, na época a sede do poder federal. Esses marinheiros, na maioria negros, mulatos e migrantes nordestinos, pediam o fim dos castigos físicos, aplicados pelo uso da chibata, e melhores condições de trabalho na Marinha. Muitos desses rebeldes ficaram conhecidos pela imprensa em sua época. Posteriormente, o líder do levante, o marinheiro João Cândido, tornou-se uma figura simbólica reverenciada até hoje por uns, pouco conhecida do grande público e sem reconhecimento em seu universo de origem, a Marinha brasileira.
A revolta, que durou da noite do dia 22 até 26 de novembro de 1910, provocou pânico na população brasileira, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro. Os jornais da época mostram que a população carioca teve o reflexo de fugir do centro da cidade e das regiões litorâneas, com medo dos canhões dos poderosos navios. Mesmo assim, uma parte da imprensa manifestou simpatia pelas reivindicações dos marinheiros.
O governo do marechal Hermes da Fonseca, que havia tomado posse uma semana antes da revolta na baía da Guanabara, experimentava com o evento sua primeira crise política. É importante lembrar que Hermes da Fonseca havia disputado uma concorrida campanha eleitoral contra Rui Barbosa, durante o ano de 1909 e início de 1910, quando houve uma mobilização de certos setores da população em torno das candidaturas de Hermes, defendida pelos militaristas, e Rui, apoiado pelos civilistas, segundo a terminologia da época. Esse clima de divisão seria retomado no Congresso com a revolta, havendo desconfiança e pressão de ambas as partes. Assim, o governo do marechal, ameaçado, criticado e enfraquecido, concedeu anistia aos rebeldes, mas o Estado autorizaria, poucos dias depois, a exclusão dos elementos “não desejáveis” à disciplina a bordo. Quase 1000 marinheiros foram excluídos da Marinha no início de dezembro do mesmo ano. Nesse mesmo mês, eclodiu uma nova rebelião cujas razões são pouco conhecidas, desta vez um levante dos fuzileiros navais. Essa segunda rebelião foi massacrada em poucas horas pelas forças oficiais da República brasileira.
O governo federal decretou estado de sítio e foram feitas inúmeras prisões. O navio Satélite foi preparado para exilar no norte do país quase 500 pessoas, dentre as quais ex-marinheiros e outros elementos populares, como mendigos, prostitutas, soldados do exército e vagabundos, para servirem como mão-de-obra na produção da borracha. Boa parte dessa tripulação morreu durante a viagem, fuzilados ou em decorrência dos maus tratos. Em uma outra medida de extermínio, alguns membros da revolta de novembro são trancados em duas celas solitárias na Ilha das Cobras, durante o Natal de 1910. A maior parte dos prisioneiros morreu ao cabo de três dias, desidratados e tendo ingerido uma solução de cal que os carrascos jogavam dentro das celas para torturar e sufocar os prisioneiros. Os sobreviventes foram apenas dois : o soldado naval João Lira e o marinheiro de primeira classe João Cândido.
Esses eventos são conhecidos pela historiografia brasileira como Revolta da Chibata. Trata-se de um caso exemplar de uso de violência por parte do conjunto do Estado brasileiro contra rebeldes, particularmente contra membros das classes populares. Assim, a denúncia da injustiça do governo e das forças armadas foi aos poucos criando em torno da memória da revolta a figura de um herói popular, o marinheiro negro João Cândido.
A Marinha em que João Cândido servira no início do século XX vivia uma situação particular em relação ao contexto militar e sócio-político do país. O clima era de ansiedade por modernização técnica. Nesse sentido, homens públicos como o almirante Alexandrino, ministro da marinha em 1906, e o barão do Rio Branco, na época ministro das Relações Exteriores, apoiavam a execução de um programa de renovação da frota, conhecido como política de “rumo ao mar”, cujo objetivo era reerguer a Marinha de Guerra brasileira, muito danificada depois do frustrado movimento dos oficiais contra Floriano Peixoto em 1893, a Revolta da Armada.
Essa renovação naval consistiu basicamente na compra de dois navios de modelo dreadnought fabricados na Inglaterra. Esses dois equipamentos, que estavam entre os mais poderosos do mundo, eram justamente os encouraçados Minas Gerais e São Paulo, incorporados em 1908 e 1910 respectivamente. A chegada dos dois navios foi motivo de festa e orgulho no país, e de desconfiança por parte de outras nações. Segundo o embaixador francês em exercício no Brasil na época, a compra de tais modelos tão sofisticados, que nem mesmo a França, o Japão ou a Rússia tinham, seria uma prova de megalomania por parte do governo brasileiro. Na verdade, o Brasil pretendia mostrar-se bem equipado frente aos países da América do Sul e ao mesmo tempo ser respeitado pelas nações européias.
Apesar desse investimento material, o pessoal que servia a bordo não estava contente com sua situação. Alguns documentos da época indicam que a Marinha funcionava com um sub-efetivo de praças, o que causava o acúmulo de trabalho para os marinheiros. Além disso, reclamava-se de má alimentação, da existência de superiores incompententes, da pouca formação dada aos marujos, do baixo soldo, dos anos de serviço obrigatórios, que podiam chegar a mais de 15. Mas a principal reclamação era quanto à aplicação de castigos físicos para punir os praças da Armada. Essa prática já havia sido abolida oficialmente no Brasil em 1889, com a proclamação da República, logo no terceiro decreto do governo provisório. Porém, seu uso continuava garantido pelo regulamento interno da Marinha, pelos Artigos de Guerra. O recurso aos castigos físicos era tido como uma forma de pena prática e eficaz, pois dispensava o tempo perdido num processo e também tinha efeitos inibidores com o restante da tripulação, que era obrigada a assistir aos rituais de punição. O instrumento usado podia ser uma vara de marmelo, mas também um chicote flexível ao qual os carrascos muitas vezes acrescentavam agulhas e pregos, para o castigo ser ainda mais dolorido.
O código da Marinha limitava os castigos a 25 golpes de chibata. No entanto, sabe-se que muitas vezes essa punição chegava a mais de 200 golpes. João Cândido e seus companheiros, que já se organizavam para a revolta, assistiram, no dia anterior ao levante, ao castigo de um colega, o marinheiro Marcelino Rodrigues, que recebeu cerca de 250 golpes de chibata. Tal castigo foi o fato desencadeador do movimento.
É preciso lembrar que a abolição da escravidão (1888) ainda era recente na época e que a República havia se constituído como regime capaz de trazer o progresso e a civilização ao Brasil. Sendo os praças da Armada na maioria negros e mulatos, como o próprio João Cândido, a prática da punição pelo uso da chibata lembrava os tempos da escravidão, não correspondendo às promessas republicanas. Além disso, João Cândido e seus colegas perceberam, por meio das viagens que faziam a serviço da Marinha Nacional, que os castigos físicos já não eram praticados nos outros países onde iam, na Europa e na América Latina, o que reforçou a justificativa para a revolta.
João Cândido Felisberto, filho de João Cândido Felisberto e Inácia Felisberto, nasceu no dia 24 de junho de 1880, em Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, hoje Encruzilhada do Sul. Era um dos oito filhos de um negro cativo numa grande propriedade daquele estado. Apoiado por sua família, ingressou no arsenal de guerra do Rio Grande do Sul, sendo transferido para a Escola de Aprendizes Marinheiros no Rio de Janeiro aos 14 anos e de lá para a Marinha de Guerra. Esse percurso significava para o jovem negro João Cândido uma forma de garantir seu sustento no Brasil do início do século XX, onde reinavam a informalidade e a condição precária do trabalho.
Durante seu percurso na Marinha, João Cândido, um protegido do próprio almirante Alexandrino de Alencar, que conhecia sua família no Rio Grande do Sul, tinha um bom relacionamento com seus superiores. Segundo seu depoimento ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro registrado em 1968, um ano antes de sua morte, João Cândido era bem visto pelos oficiais, que chegavam até a lhe pedir instruções. Era também prestigiado pelos colegas, sendo frequentemente designado para exercer uma função de liderança a bordo, até mesmo em suas viagens por outros países da Europa. Na Marinha, nunca sofrera castigos físicos, o que indica que tinha bom comportamento segundo os padrões da instituição. Todos esses fatores contribuíram para ser apontado como líder da revolta.
Na imprensa da época, as referências ao João Cândido almirante aparecem no jornal Correio da Manhã, um periódico bastante conhecido e que fazia oposição ao governo do marechal Hermes da Fonseca, o presidente no contexto da revolta. Sua celebridade era sentida em referências como a seguinte, publicada nesse mesmo periódico no dia 29 de novembro de 1911, ou seja, três dias após a redenção dos rebeldes: João Cândido em Terra? Circulou ontem, à noite, com grande insistência e principalmente na Avenida Central, que o ‘almirante’ João Cândido havia desembarcado. Dizia-se mesmo que estava preparada para ele uma manifestação, e a coisa foi ter à polícia.
Porém, se foi o jornal Correio da Manhã que introduziu a idéia do almirante João Cândido, rapidamente isso se popularizou, pelo menos no meio dos marinheiros. João Cândido reconhecia ser a liderança de uma revolução, segundo suas próprias palavras e, nessa medida, afirmava que havia uma inversão de poder, pelo menos nos dias em que durou a revolta. Marinheiros comuns tornaram-se comandantes, auxiliares e almirantes. Segundo recorda dona Zeelândia Cândido, uma das filhas do ex-marinheiro João Cândido, mesmo algum tempo depois do levante, os ex-marinheiros reuniam-se em festas em sua casa, onde cantavam: No tempo da revolta, João Cândido era almirante, Avelino imediato e Gregório comandante.
André Avelino e Manoel Gregório do Nascimento são os outros dois nomes indicados como lideranças da revolta, tendo comandado os encouraçados Deodoro e São Paulo, respectivamente. Outros nomes que aparecem como lideranças são os de Francisco Dias Martins, o possível líder dos rebeldes no cruzador Bahia, e Antônio Alves Lessa, também apontado como um dos comandantes do Deodoro. O líder João Cândido seria assim apoiado por outros marinheiros-comandantes, sinal de que se tratava de um movimento que, além de justo em suas reivindicações, era também muitíssimo organizado.
Ao lado de sua organização, os marinheiros eram igualmente elogiados pela perícia com que comandavam os complexos navios e pelo respeito à ordem e ao patrimônio da Marinha. Até a imprensa internacional noticiou o excelente desempenho de João Cândido e de seus companheiros no comando dos navios. Executavam manobras nunca vistas na baía de Guanabara, tendo sido apontados pelo New York Times como os melhores marinheiros do mundo. Os revoltosos foram igualmente elogiados por não terem causado nenhum dano ao equipamento, mantendo os cofres guardados por sentinelas e proibindo a bebida a bordo. Tinham noções de patrimônio e de ordem, aspectos elogiados pelos parlamentares na época, como Rui Barbosa, na época senador e um dos maiores defensores da anistia aos rebeldes, denunciando os massacres e práticas desrespeitosas da época.
O clima de vitória dos marinheiros foi ameaçado poucos dias depois da capitulação, com a publicação do artigo 8.400, que permitia a demissão de marinheiros vistos como inconvenientes à disciplina a bordo. Evidentemente, para não chamar a atenção, marinheiros conhecidos como João Cândido foram poupados por essas demissões. Os marinheiros iam sendo pouco a pouco esquecidos pela imprensa.
No início de dezembro, explodiu a rebelião do batalhão naval e o governo decretou estado de sítio. Não se falava mais no assunto. No entanto, em janeiro de 1911, o massacre na ilha das Cobras e o exílio pelo navio Satélite tornaram-se públicos.
O fato de ter deslocado o Minas Gerais custou a João Cândido a acusação de participar da revolta do Batalhão Naval. Porém, o marinheiro defende-se, dizendo que somente deslocou o navio Minas Gerais para protegê-lo dos choques entre os rebeldes e as forças do governo. Para João Cândido, o levante do Batalhão Naval não passou de uma rebelião criada pelo governo para desmoralizar os marinheiros rebelados em novembro. De qualquer forma, no desfecho dessa segunda revolta, João Cândido foi obrigado a viver o pesadelo da solitária na ilha das Cobras, sendo um dos únicos sobreviventes.
Ao sair da solitária na ilha das Cobras, João Cândido foi enviado para tratamento em hospital psiquiátrico. Mais tarde, ele afirmou que teria sido enviado a esse local para não depor nos processos que aconteciam na época. No fim de sua estadia no hospital psiquiátrico, João Cândido foi submetido ao Conselho de Guerra e excluído da Marinha por conclusão do tempo de serviço. Retornou então à vida civil, sempre perseguido pela Marinha. Tentou entrar na Marinha Mercante, mas encontrou muitos obstáculos. Experimentou então morar na Argentina e na Grécia. Recebeu também um convite para morar na Inglaterra, mas não conseguiu se adaptar fora do Brasil.
Sem outra alternativa, entrou no mercado da pesca na praça XV, no Rio de Janeiro, onde permaneceu até os 40 anos. Nessa altura, partiu para o Rio Grande do Sul para receber uma pensão de seu Estado, garantida pelo governo de Leonel Brizola, a qual iria receber até o fim da vida.
João Cândido não falava muito da revolta a seus filhos. Segundo dona Zeelândia e Candinho, seu filho caçula, era mais fácil escutar falar do levante na rua ou mesmo nas homenagens públicas feitas a ele. Mais eles sabiam que o grande sonho de João Cândido era voltar para a Marinha de Guerra, o que nunca viria a acontecer. Ele morreu em 1969, aos 89 anos, em decorrência de uma infecção no estômago.