Nos últimos anos o direito brasileiro caminhou por inúmeras penumbras e atalhos. Sob o pretexto de combater a corrupção, uma casta jurídico-política se apresentou à população como detentora de um monopólio moral cuja missão seria higienizar o Estado e a política no país.
A Operação Lava Jato foi saudada por muitos como um fato excepcional, e, como tal, não tardou em normalizar procedimentos jurídicos de um verdadeiro estado de exceção. Em sua cruzada messiânica a República de Curitiba se pôs acima da lei, e quem age acima da lei corre o risco de atuar como um “fora da lei”.
Desde então tornou-se corriqueiro assistir no Brasil a vazamentos seletivos com apoio da grande imprensa, conduções coercitivas com anuência do Ministério Público, delações premiadas com o respaldo do STF, falsos crimes de responsabilidade com cumplicidade do Congresso, injustas condenações sem provas com o endosso de lideranças e partidos políticos, além da substituição da presunção de inocência pela tese do domínio do fato com o resguardo das Forças Armadas.
Em nome de Deus, da família e da propriedade figuras dantescas promoveram o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, a absolvição do sádico Aécio Neves e a ascensão do cínico Michel Temer. O ódio, a intolerância, a vingança e o ressentimento assumiram o lugar do bom senso e da razoabilidade em um tecido social já marcado pelo individualismo hedonista e pelo darwinismo social, parteiros do ultraneoliberalismo, tudo bem temperado pelo avanço de movimentos sociais conservadores.
Por meio de métodos jurídico-políticos no mínimo heterodoxos, para não dizer heréticos, as normas e as instituições brasileiras foram derretidas e se converteram em uma geleia geral. Dessa lama e desse limbo emergiram, de um lado, desencanto e apatia, e, de outro lado, violência e polarização. Em suma: o caos permanente, a ração perfeita para a assunção de Bolsonaro. Nunca é demais ressaltar: em certa medida, o lavajatismo é uma das causas do bolsonarismo, e não o contrário.
Esse processo feriu de morte a rotina democrática do país, prova disso foi a realização de um momento político e eleitoral marcado pela interdição do principal candidato, por assassinatos, atentados, violências simbólicas perpetradas por fake news nas redes sociais e violências materiais reiteradas por milicianos nas ruas.
O sequestro das jornadas de junho em 2013, a criminalização do projeto social-desenvolvimentista em 2014, as manifestações pró-impeachment em 2015, o início do desmonte dos direitos sociais e trabalhistas em 2016 e a ofensiva contra direitos civis e liberdades individuais em 2017 culminaram no resultado eleitoral de 2018, em tudo adverso à democracia e ao campo progressista brasileiro. Ao negar ou negligenciar essa contundente experiência histórica dos últimos anos, a esquerda brasileira segue praticando uma espécie de auto-ilusão contra si mesma.
Para, legitimamente, se defender do autoritarismo sem perder o espírito democrático, a esquerda brasileira acaba cometendo o equívoco de tentar se defender da crise da Nova República tentando se valer, paradoxalmente, dos instrumentos da Nova República em crise.
As recentes e importantes revelações trazidas à tona pelo bom jornalismo investigativo do site The Intercept Brasil tem criado um ambiente de euforia entre certas hostes do campo progressista. Na contramão de todos os acontecimentos acima descritos, alguns voltam a contar com uma suposta boa ação da mídia, do judiciário e de frações das classes médias que já demonstraram seu profundo desapego por valores democráticos e republicanos. Os iludidos que ontem contavam votos parlamentares contra o impechment hoje voltam a fazer contas hipotéticas acerca de possíveis votos do STF contra a Lava Jato e/ou a favor da liberdade de Lula. Erraram ontem, errarão hoje.
A presente análise não busca praticar o pessimismo como passatempo e nem tampouco o determinismo estático como hobby. É evidente que o cenário sofre transformações e pode em algum momento ser alterado. Mas a conjuntura impõe a necessidade de análises realistas e pragmáticas, mesmo que as vezes soem como banho de água fria.
As reportagens da #VazaJato, ao menos tal como publicizadas até o presente momento, só serão capazes de mudar a correlação de forças política se mobilizarem a população, pois todos os demais atores de algum modo foram protagonistas do desarranjo institucional que nos trouxe até aqui.
Isso significa que a #VazaJato só surtirá um efeito estruturalmente favorável se, no conteúdo, explicitar algo maior do que o que foi revelado até aqui, como um relação explícita com a Globo, com os EUA, conversas sobre o que fazer com os valores recuperados pela Operação, moralismos que assustem o “cidadão de bem”, ou, se, na forma, surgirem com áudios ou vídeos que deem voz e vida aos atores envolvidos a ponto de mobilizar paixões e indignações.
Do modo como estão, confirmam e aprofundam as denúncias sobre os ilícitos da Lava Jato, mas o que significa esse arrepio das leis para uma opinião pública que já passou por todas as ilegalidades dos últimos anos, inclusive apoiando alguma delas?
Isso significa que a #VazaJato seja desimportante? É claro que não, mas as suas consequências precisam ser avaliadas sem delírios. Há efeitos bastante positivos, ela desmoraliza o juiz-investigador Sérgio Moro internacionalmente, fere sua unanimidade hegemônica nacionalmente, interdita seu pacote anti-crime regressista e atrapalha suas pretensões de ser alçado ao STF. Sua queda de popularidade o retira do Olimpo e o coloca na vala comum da política da polarização, o obrigando a estreitar laços com a extrema-direita bolsonarista, de quem deixa de ser fiador para se tornar devedor.
E isso nos leva a observar efeitos colaterais que também podem ser problemáticos. A Operação Lava Jato desmoralizou os partidos e os políticos, já as revelações da #VazaJato podem deslegitimar o conjunto do Judiciário, do MP e do STF. Nesse cenário que forças restarão para arbitrar a contenda? Um bolsonarismo cada vez mais próximo de sua extrema-direita orgânica, um parlamentarismo de ocasião cada vez mais avizinhado das reformas neoliberais ou as fardas das alas das Forças Armadas que podem ficar incomodadas com alguns gestos do presidente. Nenhuma dessas hipóteses deixará o campo progressista mais próximo da reorganização da democracia plena ou da liberdade de Lula. Pelo contrário.
A euforia que tem tomado conta da esquerda diante dos capítulos da #VazaJato parece muito mais vizinha do desespero e do “riso-pânico” do que de alguma estratégia capaz de tirar o país do abismo em que se encontra. A satisfação com a revelação de esquemas e escândalos pode alimentar a catarse cotidiana de grupos de WhatsApp, mas não oferecerá soluções capazes de mudar o roteiro da trajetória trilhada até aqui. Quem participou do golpe não recuará diante desse acontecimento, por mais relevante que ele seja.
A sucessão de derrotas dos últimos anos deveria ter efeito pedagógico. A gramática política brasileira, infelizmente, não é mais aquela pactuada durante a feitura da Carta Cidadã de 1988. Não se vence um golpe político dessa magnitude pela tentativa nostálgica de retorno ao passado, não se enfrenta as contradições da conciliação de classe e a emergência de um protofascismo apostando no retorno voluntário de garantismos jurídicos e adjacências.
Publicado originalmente no GGN: https://jornalggn.com.br/artigos/o-autoengano-da-esquerda-diante-das-revelacoes-da-vazajato-por-william-nozaki/
William Nozaki – Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
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