As festas de Carnaval em Salvador são famosas pela brincadeira de dançar nas ruas da cidade seguindo os blocos que desfilam cada um atrás do seu trio elétrico. Entretanto, e de forma diferente do que é costume em quase todo o Brasil, a brincadeira não sai de graça. Para ocupar um lugar no cortejo é preciso comprar o abadá, a fantasia que dá acesso ao espaço logo atrás da frevioca, o carro onde a banda toca animando a festa. Quem não paga, não brinca.
Em outubro passado, Lula foi eleito para animar um outro tipo de brincadeira, bem mais importante que a folia carnavalesca. Como ele próprio resumiu: cuidar do povo, tão sofrido e maltratado pelo governo anterior. Cuidar é realizar obras e serviços que são fundamentais para a imensa maioria que carece de moradia, saneamento, transporte, saúde, educação e assistência. Nesse bloco, todos podem entrar e brincar com qualquer fantasia. Não há abadá.
Mas então quem paga os músicos e demais artistas que animam a festa? O governo, empregando os recursos da arrecadação de impostos e da dívida pública. As duas formas de financiamento têm uma grande diferença, já que a dívida tem um custo na forma dos juros pagos a investidores que “emprestam” para o governo. Problema: o Brasil é um dos países onde esses juros são os mais altos do mundo, razão do debate acirrado sobre o porquê dessa situação surgida às vésperas do Carnaval de 2023.
Além de pagar projetos, programas e investimentos do governo, a dívida tem outra importante função.
É através dela que o Banco Central faz a política monetária, aumentando ou diminuindo a circulação de moeda e fixando a taxa de referência para os juros de toda a economia. Assim, juros baixos reduzem a despesa do governo e tornam o financiamento mais barato, possibilitando que as empresas e pessoas possam gastar mais e investir em novos negócios e oportunidades. Quando os juros sobem, sobe o gasto financeiro e o governo é obrigado a cortar recursos das suas políticas; os investimentos diminuem e a economia reduz seu crescimento ou entra em recessão.
Os juros da dívida também são usados pelo Banco Central como meio de diminuir a inflação até uma meta decidida pelo governo. Guedes e Bolsonaro a fixaram em 3,25%. Entretanto, em razão da crise mundial da Covid-19 e da guerra na Ucrânia, a inflação cresceu muito entre janeiro de 2021 e abril de 2022, chegando a 12,13%. Já que a política de metas usa como arma exclusivamente o nível dos juros, na tentativa de atingir a meta estabelecida, foi feito um aumento forte e continuado dos mesmos, que estavam em 2% então e alcançaram 13,25% em julho de 2022. A inflação seguiu sua trajetória de queda continuada até chegar aos 5,77% de hoje. Entrementes, os juros continuaram subindo até 13,75% em agosto de 2022, onde permanecem. Como consequência dessa alta, a dívida bruta do governo subiu de 57,2% do PIB (3,9 trilhões) com Dilma para 73,5% (7,2 trilhões) deixados por Bolsonaro e Guedes.
Lula vem perguntando desde antes de assumir a presidência por que os juros não foram reduzidos com a queda da inflação? Se foi possível convencer o Congresso a aprovar a PEC da transição para viabilizar a volta do Bolsa Família, o aumento do salário mínimo e despesas com saúde e educação, por que o Banco Central não faz a sua parte liberando recursos hoje consumidos nos enormes pagamentos de juros?
Acontece que há quem ganhe com esses juros elevados: pessoas que têm dinheiro para aplicar em fundos financeiros que passam a render mais, os ricos que compram títulos do governo para seus investimentos. E há uma chusma de economistas “do mercado” e comentaristas na imprensa que só se informam com esses economistas, alegando a inflação fora da meta como razão para manter juros altos. Com a taxa atual, a dívida pública representa mais da metade do gasto do orçamento da União, custo do pagamento de juros e da recompra de títulos vencidos, o que só beneficia a elite do dinheiro.
Mas qual a razão de o Banco Central favorecer esses interesses? Há muitos anos, no Brasil, os diretores do Banco Central são sempre pessoas oriundas do mercado financeiro, diretores de bancos e fundos e assessores econômicos. Ora, os bancos e seus clientes são como aqueles blocos do carnaval soteropolitano, vivem de cobrar seu abadá, com a diferença de que nada fazem para animar a folia. Ainda mais, neste caso, o pagamento acaba com a diversão e a farra, pois retira recursos do governo que poderiam pagar a dança da melhora da vida do povo. Assim, é mais que necessário apoiar a determinação de Lula de enfrentar o Banco Central e sua predileção pelos ricos. (Artigo publicado originalmente no GRIFO Nº 33 de março de 2023)
Via Terapia Política