Em período do processo de escolha de Conselheiros e Conselheiras Tutelares, no território nacional, torna-se necessário tecer considerações sobre o enfrentamento às violências na infância e os direitos violados das crianças e adolescentes. A eleição permite refletir sobre a atuação do Conselho Tutelar à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90 e a importância desse momento para toda a sociedade, sobretudo às crianças e adolescentes.
Conforme o Estatuto da Criança e Adolescente, a violação de direitos é toda e qualquer situação que ameace ou viole os direitos da criança ou do adolescente, em decorrência da ação ou omissão dos pais ou responsáveis, da sociedade ou do Estado, ou até mesmo em face da sua conduta. As violências são uma grave violação dos seus direitos fundamentais definidos no Estatuto. Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (Lei 8.069/90, Art.5).
Os enfrentamentos da violência e dos direitos violados às crianças e aos adolescentes representam um desafio ao Sistema de Garantia de Direitos, com ênfase no Conselho Tutelar, pois aludem mudanças culturais, econômicas, políticas e sociais no processo de defesa da vida. Nele, a atuação do Conselho Tutelar está relacionada à defesa da garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
Para refletir sobre direitos violados, ou prestes a serem violados é preciso considerar a infância e a adolescência como períodos decisivos do desenvolvimento humano e, por isso, precisam de condições especiais, para que cada etapa transcorra de modo integral. Por consequência, banalizar direitos violados e violências nos principais estágios de desenvolvimento é razoavelmente um embotamento de qualquer lógica protetiva, e, ainda reforça a exclusão e invisibilidade.
Em perspectiva da garantia de direitos, essas peculiaridades exigem um atendimento qualificado e uma abordagem distinta. Para tanto, torna-se importante a sustentação da proteção, pois além de ampliar a visão baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente, também contribui para o processo de visibilidade e de aplicação de medidas de proteção.
Ao Conselho Tutelar, esse caminho perpassa pela crítica responsável e demanda conhecimentos capazes de reparar concepções arraigadas ainda no código de menores[1], que tinha um caráter sancionatório e punitivo. O Estatuto da Criança e Adolescente trouxe à criança e ao adolescente a condição não mais de objeto de providências, e sim de sujeitos de direitos.
Cabe, desse modo, fundamentalmente, aos operadores e garantidores de direitos sustentar os princípios norteadores dos direitos da infância e juventude. E, ainda que se tenha passado de uma legislação punitiva para uma legislação protetiva, o Estado tem considerado timidamente a infância como prioridade absoluta. O grande desafio vai além de transpor as leis do papel para a efetividade. Coloca-se ao horizonte a transposição de uma cultura punitiva e penalizadora para um a cultura restaurativa, educadora e, em decorrência, humanizadora. E, nessa perspectiva apresentam-se como práticas catalisadoras de fatores de proteção e inibidoras de possíveis processos de banalização da violência.
Faz-se inteiramente necessária uma retomada crítica dos operadores de Direitos da Infância e Juventude, dos operadores da Educação e Proteção Social. Não obstante, deseja-se responsavelmente obter transformações e modificações efetivas na Infância e Juventude. Torna-se imperativo a projeção do superior interesse de adolescentes, através de possível ressignificações de processos, sem esquecer nossa história e para onde não devemos voltar.
A partir de profunda observação e de leituras sistemáticas do processo de Eichmann, Hannah Arendt (1999, p.32)[2] apresentou o mal como banal, sem raiz, ou profundidade podendo, contudo, ter consequências inimagináveis, por seu teor eficiente e sistemático (1999, pag. 38). Logo, o mal encontra guarida na ausência do bem. Este sim tem profundidade, necessitando de labor e muitíssimo empenho para seu desenvolvimento.
Embora com objetivos e circunstâncias diferentes, o que redunda em banalidade é o grau de naturalidade com que o agente de Estado enxerga o desdobramento de suas ações em nome de uma burocracia. É fundamental que se dê nome e rostos ao dito “estado”. São esses agentes que se encontram nos processos sociais da História. Talvez com ambivalências e segmentos muito diferentes. Ressalvadas diferenças históricas, pode-se utilizar as categorias construídas pela autora de banalização do mal, como um ato comum praticado por pessoas comuns, alienados em processos burocráticos, pode ser utilizada para descrever práticas de pessoas e instituições estatais na atualidade, como é o caso da prática de alguns conselhos tutelares. Esses sujeitos aparecem determinantemente nas práticas cotidianas de adolescentes.
Também há as ações permissivas e irresponsáveis de grande parte dos gestores que pautam relações meramente de poder, ou de possível ascensão social, em suas instituições. Apresentam-se inertes, como se estivessem fazendo o seu melhor dentro do campo do possível. Considerando o embotamento do pensar e do olhar, esses ficam ainda à margem da possibilidade de aquisição de novos sentidos e significados de sua real responsabilidade, ou responsabilização nos processos socializadores, protetivos e preventivos desses adolescentes.
O fenômeno da violência, na ótica da banalidade do mal instaura-se no estado, em seus agentes, em ações aparentemente triviais associadas à indiferença, à incapacidade de reflexão, de pensamentos críticos, de juízo de moral e à incapacidade de diálogo. Assim, romper com as concepções excludentes e efetivar os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes é uma possibilidade assertiva do Conselho Tutelar, por sua natureza. Para tanto, torna-se essencial a toda sociedade adquirir conhecimento sobre a importância do Conselho Tutelar.
E, individualmente, cada conselheiro e conselheira tutelar validar sua atuação no centro da legalidade e convalidar a lógica de articulação de trabalho coletivo e intersetorial, que corroboram com a boa comunicação, com a partilha de conhecimento conceitual e de fluxos de atendimentos. Garantir a qualidade de trabalho em rede e de ações preventivas, construir protocolos de atuação comprometidos com a proteção integral de crianças e de adolescentes, fomentar e estimular os processos de construção de ações e políticas de atendimento colocaria o Conselho Tutelar em patamar de extrema sensibilidade ao real enfrentamento às violências no campo da infância e juventude.
Janaína Lúcia Feijó é conselheira tutelar no município de Gravataí/RS, possui Licenciatura em Pedagogia com ênfase em Gestão – ULBRA/RS, Pós-Graduação em Gestão Estratégica em Políticas Públicas – UNICAMP/SP, Pós-Graduação Direito da Criança e do Adolescente – FMP/RS, Pós-Graduação em Pedagogia Social e Atuação do Conselheiro Tutelar – FMG.
[1] Código de Menores – uma das primeiras estruturas de proteção aos menores, em nosso sistema pátrio, foi produto de uma época culturalmente autoritária e patriarcal, portanto, não havia preocupação com o problema do menor em compreendê-lo e atendê-lo, mas sim com soluções paliativas, o principal objetivo do legislador era “tirar de circulação” aquilo que atrapalhava a ordem social. Disponível em: jusbrasil.com.br/artigos/155146196/codigo-de-menores-e-o-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em 05 Abr. 2019.
[2] ARENDT, Hannah, Eichmann In Jerusalém, New York, The Viking Press, 1965