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O continente insubmisso | Pedro Tierra

“Uma flor nasceu na rua!

Passem longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

(…) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.” 

A Flor e a Náusea. Drummond

Nas ruas acendeu-se uma flor de fogo. Uma chama. Bolívia e Chile registraram nos últimos dias demonstrações magníficas da resistência dos povos da América Latina contra o neoliberalismo. Trarão consigo de uma maneira ou de outra consequências históricas relevantes no futuro imediato e  no longo prazo, para suas próprias sociedades e para o conjunto do continente: ainda que não seja percebida em toda a sua extensão pelos próprios protagonistas, trata-se da ressureição da política como a mais elevada forma de ação coletiva para a transformação social.

Mesmo reagindo aos instrumentos formais do fazer político – os partidos – no caso do Chile, os cidadãos e cidadãs, sobretudo os jovens, buscam encontrar novos espaços capazes de superar o desgaste das estruturas tradicionais para pactuar seus objetivos e organizar sua ação contra a necropolítica imposta pelo neoliberalismo aos povos do continente.

As maiorias do bloco “indígena, nacional, popular”  como o define Álvaro Garcia Linera, ex-vice presidente da república, se levantam na Bolívia para responder  de forma cabal e insofismável – e por meios democráticos – aos golpistas de 2019: um ano depois o povo boliviano resgata o poder sequestrado por aventureiros alimentados pelos Estados Unidos e pelo governo Bolsonaro, utilizando-se da OEA como instrumento legitimador, pelas mãos do uruguaio Luis Almagro, atual Secretário-Geral do organismo.

A Bolívia retomará seu caminho de construção da soberania, inclusão social, desenvolvimento sustentável e diversidade cultural com democracia. O MAS com a candidatura de Lucho Arce (55,1% dos votos) impôs uma derrota à direita de Carlos Mesa (28,8% dos votos), à extrema-direita Luis Fernando Camacho (14% dos votos) e desmoralizando o Secretário Geral da OEA, principal fiador da armação que serviu de pretexto para desferir o golpe de 2019 e afastar o presidente Evo Morales.

Ao confirmar sua adesão massiva à continuidade do projeto democrático e popular representado pelo MAS, o povo boliviano sugere a Almagro o caminho para preservar o mínimo de credibilidade da instituição que preside: a porta de saída. A renúncia com um pedido de desculpas.

Registro um paradoxo curioso: as maiorias indígenas da Bolívia recorrem aos instrumentos da democracia liberal –  a mais vistosa e duradoura invenção política do capitalismo – para enfrentar e derrotar os interesses imediatos desses mesmos capitalistas, herdeiros dos colonizadores, que nesse momento da história se despedem dos antigos princípios liberais para abraçar a barbárie neofascista como o arranjo político mais eficaz para assegurar a continuidade do processo de acumulação.

No Chile, foi necessária uma rebelião popular em outubro de 2019 para expor a fratura social derivada da concentração da riqueza, a falência do modelo neoliberal ancorado na constituição de 1980, imposta pela ditadura sanguinária de Pinochet e não superada pelos governos da Concertación.

No domingo, 26 de outubro, cerca de 78% dos cidadãos e cidadãs chancelaram o apruebo, sepultando a carta neoliberal privatista e geradora de desigualdades que desobriga o Estado de atender aos direitos básicos de Educação, Saúde e Previdência. Porcentagem equivalente, 79% dos chilenos, se pronunciaram por uma constituinte exclusiva e paritária. O movimento introduz um fator inédito na história das democracias: contará com 50% de representação masculina e 50% de representação de mulheres, o que traz consigo um potencial considerável para as lutas contra o patriarcalismo e a violência machista incrustados no convívio quotidiano dos nossos povos.

As esquerdas chilenas renovadas – como vimos, não necessariamente partidárias, no sentido clássico – se mostraram capazes de restabelecer seus vínculos históricos com a base assalariada da sociedade e sensibilizar particularmente os jovens protagonistas das batalhas em torno do direito à educação e os “jubilados” lançados na penúria e à própria sorte pelo neoliberalismo. E mobilizou-os contra esse modelo que tenta abolir por todos os meios qualquer laço de solidariedade social e entre as gerações.

Com os resultados inequívocos do plebiscito, as esquerdas renovadas conseguiram legitimar sua agenda diante da sociedade chilena, aquela que vive fora dos limites confortáveis de Las Condes, Vitacura, Providência… E desafiar o establishment partidário a encontrar novos caminhos para legitimar-se frente aos setores sociais que buscam representar. A sociedade chilena, por esmagadora maioria decidiu discutir o fundamento do pacto neoliberal: a constituição herdada da ditadura e convocar uma Assembleia Constituinte prevista para janeiro de 2021.

Optou por uma Constituinte exclusiva, enxuta, com 155 membros. Que será dissolvida quando seus trabalhos se encerrarem. E seus integrantes não poderão concorrer a mandatos nas eleições seguintes. Uma forma de prevenir a prevalência de interesses exclusivistas desta ou daquela liderança individual.

No entanto, como diria Paulo Guedes, o ministro da economia de Bolsonaro, que concebe a política como uma luta entre gângsters, durante as negociações que resultaram no acordo para convocar o plebiscito, a direita chilena deixou uma ou duas granadas no bolso dos interlocutores: alcançar maioria de 66% para aprovar o texto, a não participação dos políticos profissionais…

Aparentemente a direita perdeu a batalha simbólica. Numa situação de defensiva, digamos, ideológica buscará tirar proveito do seu próprio conservadorismo para consolidar o discurso nos setores privilegiados da sociedade e da circunstância de, neste momento, estar à frente do poder de Estado.

Para os segmentos populares, abre-se uma nova etapa depois dessa vitória maiúscula, mas não menos desafiadora. Eles  deverão enfrenta-la devendo responder simultaneamente a um duplo objetivo: à oportunidade histórica de reinventar um novo pacto para o país que supere a tragédia social provocada pelo neoliberalismo e reconstruir seus instrumentos institucionais para  adequá-los às disputas políticas do século XXI, emolduradas pelas chamadas “guerras híbridas” que fazem do subcontinente um campo de disputa sensível entre os interesses das grandes potências, leia-se Estados Unidos e China.

Ambas as vitórias, sem dúvida condicionadas pelo ambiente de pesado conservadorismo que prevalece na América do Sul, a exceção fica por conta do retorno do peronismo na Argentina liderado por Alberto Fernández e Cristina Kirchner, representam um alento às lutas dos setores populares do continente por retomar, em outras circunstâncias muito mais adversas, o fio das experiências anteriores lideradas por Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré Vasquez, Pepe Mujica, Evo Morales, Bachelet, Rafael Correa e Dilma Rousseff. Todas elas marcadas por políticas de inclusão social e afirmação da soberania.

A seu modo, uma e outra lançam um desafio à imaginação política das esquerdas brasileiras: como reatar seus laços com a base social que pretendem representar e como promover a transição geracional para recuperar a sintonia com o sentido da história, reconstruir a unidade em torno do programa anti-neoliberal, de reconstrução nacional e transformação da sociedade brasileira.

Pedro Tierra é poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo.

  

  

  

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