“Os que lutam toda a vida são imprescindíveis.” – Bertold Brecht
O jornal Valor Econômico, no encarte das sextas-feiras (26/03/2021), publicou uma bela reportagem sobre o trabalho do Padre Júlio Lancellotti, Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Lancellotti lida com os “miseráveis descartáveis, pessoas destruídas, esfarrapadas, mães com crianças de colo, doentes, LGBTs, gente em idade de trabalhar, mas que perdeu completamente a esperança de conseguir um emprego, é um desalento”. Pessoas que só são lembradas pelas autoridades municipais quando estorvam o eugenismo racista, na acepção étnico-social, da paisagem urbana ou atrapalham o tráfego como o operário nos versos poéticos de Chico Buarque.
Pessoas que a primeira-dama da capital paulista, Bia Doria, aconselhou a não doar marmitas “porque gostam de ficar na rua”. As doações serviriam de estímulo (sic) à marginalização. Há 35 anos, com chuva ou sol, o sacerdote desmente o dito preconceituoso. Entre os preconceitos está o de que a maioria dos desabrigados é oriunda do Norte e Nordeste. Não é. “A maioria que dorme ao relento é do Sudeste”. Acrescenta, com base na experiência: “São muitos os problemas que levam alguém a abandonar tudo e viver ao léu… A ausência de vínculos familiares, a perda de entes queridos, o desemprego, a violência, a perda da autoestima, o alcoolismo, o uso de drogas e doenças mentais… A pessoa até chegar na rua paga um preço, há perdas, algumas irreparáveis”. Parafraseando Mario Quintana é preciso “pagar a pesada moeda”, antes de vagar como pedinte por aí.
Sobre dar ou não dinheiro aos que vivem em estado de vulnerabilidade, afirma que não há cartilha que ensine o que fazer. “Segue a pedagogia do olhar”, diz. “O importante é se despir de preconceitos e se aproximar, mas sem ingenuidade, e de fato se mostrar interessado, perguntar como se sentem. O principal é a qualificação humana para perceber o outro”. Significa procurar no olhar dos desvalidos a humanidade do ser, não a ostentação de ter como se desfilasse frente às vitrines iluminadas do shopping center.
A sociedade de consumo mergulha os precarizados no breu da invisibilidade e, em contrapartida, afunda na cegueira os que se perdem no labirinto das mercadorias que fomentam desejos de posse insaciáveis, angustiantes e geradores de alienação. “Perder a vista e a visibilidade é abandonar a claridade para entrar na escuridão do Hades (o deus do mundo inferior, o deus dos mortos): a caverna platônica, a metrópole contemporânea… onde os olhos ‘olham sem ver’ e os indivíduos não têm consciência de si”. A figura dos ofuscados pela penúria, carentes do brilho mercadológico que empresta status social, sacode as personas “do sonho narcótico do século – o consumo identificado à felicidade, o desenvolvimento técnico desacompanhado de recursos morais, os genocídios, as guerras”, denuncia com argúcia Susan Buck-Morss (A Dialética do Olhar, 2002).
Não raros, despertam agressivos do estupor. Volta e meia o noticiário revela atrocidades cometidas contra os que penam uma situação de rua. Ilustração do horror na n potência: “Grupo de jovens, ao final de uma festa em Brasília, ateou fogo em dois moradores (ops) de rua” (O Globo, 25/02/2012). Moradores? Possuem um teto, não é o caso.
A aversão que amiúde a classe média experimenta em face dos sem teto é uma reação instintiva à recusa inconsciente que, aqueles, sinalizam ao seu universo de sonhos. Sob as condições do capitalismo, segundo Walter Benjamin (Livro das Passagens, 1927-1940), os processos de urbanização e industrialização trouxeram um re-encantamento ao mundo social, através da reativação dos antigos poderes míticos. Poderes consubstanciados nas mercadorias expostas nos centros comerciais. O desencantamento, observado por Weber no princípio do século 20, pela hegemonia da razão e da ciência em detrimento da religião, haveria se desfeito com a produção em série de nouveautés. O sagrado deslocou-se para um consumismo ostentatório com a função de reestabelecer os adereços de distinção social que, no Ancien Régime, provinham de títulos de nobreza. Agora, do consumo.
O título de distinção de Lancellotti é o amor ao próximo. Todas as manhãs empurra um carrinho de supermercado, com mantimentos. A máscara, com filtros cor de rosa, para se proteger do vírus, foi presente do Consultório da Rua. O avental, com um santo estampado e o rosário no bolso: “Além da proteção, traz uma reflexão teológica, é vestimenta usada para servir o outro”. As refeições, servidas no pátio da paróquia São Miguel Arcanjo, atendiam com café matinal duzentos corpos famintos. Com a pandemia o número multiplicou-se por quatro, e os voluntários escassearam. Por ora as refeições ocorrem no Centro Comunitário São Martinho, em parceria com a Prefeitura. “Parece campo de refugiados.” Prova de que “a barbárie (a falta de civilização) acompanha como uma sombra a modernidade capitalista”, sublinha Michael Löwy (Critique Communiste, hiver 2000).
O café com leite, pão francês, suco, fruta e bolo para setecentos necessitados diários tem a trilha musical de uma flauta doce tocada por um morador de rua vindo de Osasco. Ouve-se, invariavelmente, a Romaria, de Renato Teixeira: “É de sonho e de pó / o destino de um só…” Para muitos será o único alimento na dura jornada que inicia. Um funcionário faz a contagem e acena com uma placa. “Me dá arrepios cada vez que escuto a voz dele, quando chega perto de setecentos então…” Dói nele a dor de outrem, como um punhal. Faz sessões de psicanálise: “Nem sempre consigo comparecer, mas gosto de conversar”. Pergunta: “Conhece São João de Deus? Foi precursor da humanização na psiquiatria.”
Formado em Teologia e Pedagogia, e sem tempo disponível para completar os estudos com um Doutoramento, Lancellotti acredita que a maior parte dos brasileiros não ultrapassa o segundo dos quatro períodos de desenvolvimento cognitivo formulados pelo psicólogo suiço Jean Piaget. A saber:
1) sensório-motor, de 0 a 2 anos, com inexistência de representações e imagens dos objetos do entorno da criança;
2) pré-operatório, de 2 a 7 anos, com uma visão egocêntrica do real que tem por referência o próprio eu;
3) operações concretas, de 7 a 11 anos, com declínio do egocentrismo intelectual e certa ascensão do pensamento lógico;
4) operações formais, 11 a 16 anos, quando o adolescente adquire condições de elaborar conceitos éticos como liberdade e justiça.
O grosso da população relacionaria-se com a realidade a partir de uma perspectiva pessoal, com símbolos e palavras restritos.“Vermelho? É de comunista. Rosa? É de menina.”
Arremata: “O fundamentalismo religioso, seja da Igreja Católica ou da Evangélica, têm infantilizado a fé. Deus não é todo-poderoso, Ele é misericordioso, amoroso. Solidariedade e compaixão não são dimensões religiosas, mas humanas. Tem ateu mais solidário do que religioso. A religião não é um fim em si, e nós estamos em um processo acelerado de desumanização”. A fonte de sua sabedoria remonta aos ensinamentos empáticos da Teologia da Libertação. Com 72 anos, vacinou-se com os em situação de rua com mais de 60, incluídos na lista de prioridade para a imunização. Enfim, em algo incluídos. Na internet, no ínterim, viralizava a campanha para que fosse o primeiro a ser imunizado em São Paulo, em consideração à relevância de seu trabalho pastoral. Não aceitou, por supuesto.
Opera sozinho as redes sociais em que participa, tendo mais de quinhentos mil seguidores. Com a eleição de Jair Bolsonaro, viu aumentar o volume de ameaças. “Depois da posse, em janeiro, é tiro na cabeça”. Um deputado com complexo de vira-lata, do Patriotas, atacou-o nas redes com o epíteto de cafetão da miséria para ver o estouro do gado, que também voltou-se contra o defensor dos fracos e oprimidos. As agressões não são novidade. Quando dirigia a Casa da Vida, entidade beneficente criada para amparar pequenos(as) portadores de HIV, em abandono ou em orfandade: “Um carro subiu na calçada para me atropelar. Uma médica me processou dizendo que um mosquito poderia morder uma criança doente e levar o vírus à residência dela”. À época no PT, Luíza Erundina apoiou-o: “Luíza foi muito amiga das crianças da Casa, especialmente de Daniel, um menino fraquinho, nem levantava. Ela foi ao enterro dele.” Com a propagação da Covid-19 não seria possível.
No início de 2021, ganhou as manchetes ao quebrar com marretadas blocos de pedras instalados sob um viaduto da cidade. A ação surtiu efeito. Os pedregulhos foram retirados e, na Câmara Municipal, apresentado um projeto que coíbe iniciativas de arquitetura hostis e higienistas para expulsar os indesejáveis de um local. Pena a moda não haver espraiado-se por outras metrópoles. Persiste nas administrações governamentais o viés do higienismo no Brasil, herdado de uma concepção saneadora de meados do séc. 19, com paralepípedos, cercados de cimento e repressão policial para impedir a instalação dos Irmãos de rua: expressão que São Francisco empregaria ao descrever o cenário desumano que as elites tentam esconder desde priscas eras. Cercas delimitam o espaço público.
É de lamentar que, ao final da mencionada reportagem, a repórter tenha se rendido à lógica da democracia de opinião midática à procura de diatribes políticas para lucrar com les scandales journalistiques. Questionado sobre a posição da Igreja sobre o aborto, respondeu: “Sou contra a morte do feto, mas também contra a morte social dos pobres. Não adianta defender a vida intrauterina e depois que a criança nasce não se importar mais”.
Sobre a decisão do Vaticano de tratar como pecado a união de pessoas do mesmo sexo e negar que padres possam abençoá-los, respondeu: “As mudanças não acontecem porque eu quero, são processos que se dão na história.” Ao ser perguntado por que não daria benção se é tão solidário ao segmento identitário LGBTQIA+, retrucou com paciência. “A gente sabe antes de entrar no jogo quais são as regras. O religioso estaria rompendo com uma disciplina que assumiu.” A democracia de opinião, que tolera e legítima quaisquer estultices, inclusive as que confrontam a ciência (a Terra é plana, antivacinação, superioridade de gênero e raça, as formigas transmitem o coronavírus…) não compreende, com efeito, que é a práxis cotidiana que explicita quem somos. Isso deveria fechar a matéria.
O Padre Júlio Lancellotti é um Cristão Socialista, da linha dos fundadores do cristianismo. Daqueles que Rosa Luxemburgo no ensaio “El Socialismo y las Iglesias” (Obras Escogidas, 1979) comparou com os melhores representantes do socialismo. Companheiro de passos caridosos e firmes na caminhada, com objetivos generosos na chegada, esse peregrino do Estado de Bem-Estar Social ilumina com sensibilidade e luz magnânimas a utopia civilizatória que alimenta nossa fé no futuro: um mundo igualitário e solidário. Ao seu lado sentimo-nos grandes, fortes, acolhidos, humanizados. Não duvidemos, aliás, que, movido pela humildade, abdique tanto da qualificação de bom cristão quanto de bom socialista, alegando que com sacrifício busca ser um simples servo de Deus e dos Irmãos de rua. Ecce homo que luta toda a vida é imprescindível. Amém! Até à vitória, sempre!
- Luiz Marques é professor de Ciência Política, UFRGS.
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