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O desafio de um programa transformador | Raul Pont

A conjuntura em que ocorrem as eleições de 2020 é dominada pela pandemia que adquiriu contornos mundiais em sua expansão e letalidade. Seu caráter fulminante decorre da ausência de tratamento, seja a vacina que previne, sejam remédios eficazes que a curem.     

No Brasil, a irresponsabilidade do governo Bolsonaro, a fragilização do sistema público de saúde e a brutal desigualdade social e regional nos conduzem ao topo do genocídio no planeta. Vamos disputar com os EUA, país sem um sistema público e universal de saúde, em número de óbitos causados pelo vírus. No Brasil, a ausência de planejamento e ação do Ministério da Saúde para uma política nacional de combate ao Covid-19,  ao desestimular o isolamento social e não investir em saúde e em uma política de renda básica, torna-se uma ação criminosa deliberada.

Sem planejamento, sem controle previsível, o isolamento social exigido no combate ao vírus fica à mercê dos Estados e municípios e põe em risco o próprio calendário eleitoral e abre um debate crucial. Prorrogar mandatos é inconstitucional e um grande prejuízo para a democracia no país, mas as entidades de representação dos municípios – em várias regiões – começam a abraçar e propagandear a saída pela prorrogação dos mandatos até 2022.

Precisamos estar atentos e combater essa hipótese em defesa do calendário democrático previsto. O processo eleitoral já está prejudicado pelo autoritarismo governamental reinante com o desprestígio aos partidos políticos e ataques permanentes à democracia. Não há, também, espaço disponível na grande mídia para o  fortalecimento dos Partidos, dos programas e projetos que representam como instrumentos insubstituíveis para a formação de vontades coletivas no sistema democrático.

Mesmo na hipótese de um adiamento do prazo – única alternativa aceitável – o processo eleitoral de 2020 será difícil e exigirá de nós enorme capacidade de superação dessa conjuntura adversa. De um lado, a crise sanitária, de outro, um governo antidemocrático, autoritário, entreguista, ultra-neoliberal cada vez mais rejeitado pela população, mas que sobrevive e tem bases sociais de sustentação nos grandes bancos que vivem do rentismo financeiro, da agro-exportação que defende a primarização do país, da grande mídia que restringe sua crítica ao grotesco comportamento de Bolsonaro mas defende a política econômica do ministro Guedes e das Forças Armadas ainda dominadas pelo maniqueísmo da Guerra Fria sem nenhuma sustentação do que ocorre no mundo real. Ao contrário, há crise entre as principais potências, fortalecimento de medidas protecionistas e nacionalistas de direita, crise no interior dos grandes blocos como é o caso da União Européia, o que exigiria uma política externa multipolar, antibélica, pragmática e oposta ao servilismo atual ao imperialismo norteamericano.

Outros elementos a agregar na avaliação conjuntural

Se o desafio é apresentar um programa transformador, que sinalize esperança e reconstrução de força política no país, a análise tem que incorporar o debate feito no Partido e na esquerda brasileira sobre a experiência vivida com o golpe parlamentar-midiático-judicial que retirou a presidenta Dilma do governo e os resultados eleitorais de 2016 e 2018.

Esse diagnóstico envolve uma visão crítica e autocrítica sobre a política de alianças praticada no governo federal no mandatos Lula e Dilma e que se estenderam como orientação de fato nos Estados e municípios.

Isso incorpora o conjunto de ações e políticas públicas positivas que foram realizadas pelos governos mas que não tiveram protagonismo pelos beneficiados e, assim, pouca ou nula elevação de consciência e organização políticas como fruto desses  direitos e/ou conquistas alcançadas.

A avaliação tem que incorporar, também, o debate sobre equívocos graves cometidos como a rendição programática e ideológica à pressão dos adversários na condução da política econômica após a vitória eleitoral dramática alcançada no quarto mandato em 2014. Era evidente que a política de austeridade de Joaquim Levy não seria de uma rápida tática para estabilizar a crise fiscal e retomar o crescimento. Transformou-se no agravamento da crise, no desemprego acelerado, na perda de base social importante para o governo e uma derrota ideológica à cartilha neoliberal de como retomar o crescimento.

Esse comportamento está intimamente vinculado à política de alianças e à composição governamental que vínhamos praticando e ampliando, a cada mandato, em detrimento de buscar fortalecer mecanismos de legitimação e sustentação popular aos nossos governos, através de experiências de democracia direta e participativa.

O preço pago foi altíssimo. A Operação Lava Jato, a versão midiática do “governo mais corrupto da história”, do “partido que quebrou o país”, prevaleceu  como verdade dominante. A mesma mídia que defendia, hipócrita e ferrenhamente, a austeridade, o Estado mínimo, o fim da “gastança” social e a política rentista dos banqueiros, debitou na conta do governo petista o que foi posto em prática por seus diletos tecnocratas na política econômica cuja consequência direta para milhões tinha nome: o desemprego em massa.

Se somarmos a isso a exacerbação midiática do tema da corrupção, a cumplicidade dos órgãos da justiça com a parcialidade e a fabricação de provas da Operação Lava Jato, a ilegalidade crescente na produção massiva de “fake news” financiadas por empresários via caixa 2 e a traição golpista do PMDB através de Eduardo Cunha e Michel Temer, estamos com o cenário pronto que explica as principais razões da profunda derrota eleitoral que sofremos em 2016 e 2018.

A necessidade histórica da luta anti-capitalista e a nossa herança de construção democrática, inovadora e singular com o direito de tendências, proporcionalidade e igualdade de gênero nas direções  partidárias, a defesa da participação multiétnica e de juventude, garantiram a resistência e a sobrevivência apesar de todo o massacre sofrido durante anos, rotulados de organização criminosa pela mídia.

A heróica vigília durante todo o período de prisão de Lula, a presença permanente em todas as lutas sociais e o enraizamento e capilaridade nacional nos permitiram continuar no tabuleiro político e retomar iniciativas.

Temos claro, no entanto, que nesta conjuntura onde ainda persistem os preconceitos e o antipetismo construído nas versões midiáticas,  há um novo cenário político. Desde o atual quadro partidário brasileiro às mudanças ocorridas no mundo, há um horizonte muito distinto daquele vivido nos anos 90 que culminaram com a chegada à presidência da República em 2002.

A atualização programática anticapitalista em tempos de pandemia

A escolha de Porto Alegre pelos organizadores do primeiro Fórum Social Mundial (jan. 2001) não foi aleatória. A razão da escolha estava na radicalidade da experiência de governo na capital e no Rio Grande do Sul baseada na democracia participativa.

Se o objetivo do Fórum era confrontar Davos e o neoliberalismo dominante, o melhor símbolo deveria ser a democracia participativa, a participação direta da população na definição das políticas públicas e do orçamento municipal.

O Orçamento Participativo (O.P.) tornou-se um ponto de programa consensual dos que defendiam que “outro mundo seria possível”. A experiência demonstrava que além da democratização da decisão sobre os gastos e políticas públicas, ali se ensaiavam novas formas de participação e deliberação que iam além da burocratizada e elitizada democracia representativa. Na prática concreta vivia-se, nas reuniões e fóruns regionais, e nos espaços temáticos que se foram criando, a experiência inovadora que apontava como possível a construção de uma nova institucionalidade a desafiar os programas partidários da esquerda.

A conquista da presidência da República e a política de alianças adotada, buscando governabilidade via alianças congressuais e coalizões governamentais com o centro e até a centro-direita foi solapando, de fato, que essa proposta permanecesse e fosse defendida, inclusive, noutra perspectiva de sustentação político-social. No primeiro mandato de Lula ensaiou-se uma experiência de participação popular via a estrutura dos conselhos temáticos já existentes e que por legislação  estão capilarizados nos Estados e municípios, inclusive, com funções de fiscalização e controle e que continuam existindo, com experiências variadas de participação popular mas sem avançar no sentido da deliberação.

Apesar de alguns processos positivos de participação popular nos encontros setoriais (saúde, educação, habitação popular, etc.) a experiência foi sendo abandonada e substituída pela tradicional negociação congressual e pelo fortalecimento das famigeradas e corruptoras “emendas parlamentares”.

A constituição de uma frente de esquerda que ampliasse e sustentasse, junto com movimentos sociais e sindicais, uma experiência desse tipo sequer foi tentada.

O realismo da relação de forças no Congresso e nas Assembleias e o pragmatismo governamental levou-nos a abandonar uma prática política que nos educaria, nos exigiria enfrentar a crise teórica e programática da esquerda mundial no séc. XX, no campo da representação política e na gestão pública.

Vimos ruir ou estagnar as experiências burocráticas e autoritárias dos Partidos únicos e/ou o afastamento crescente dos partidos de esquerda nos governos de uma perspectiva socialista, pela manutenção de práticas capitalistas e de acumulação de capital que reforçou a subordinação à lógica capitalista.

A rendição ideológica e programática ao neoliberalismo fez com que a maioria das experiências de governo no campo da esquerda aceitasse e até praticasse as políticas de privatização de empresas públicas, de bancos, das áreas de serviço essenciais como água, energia elétrica, portos, aeroportos, telecomunicações, transporte público, saúde, educação, etc. Não avançamos – nas experiências da esquerda mundial – em novas formas de gestão pública desses setores com participação dos trabalhadores e com controle público dos usuários. Da mesma forma, há um atraso histórico na elaboração teórica e nas experiências de uma nova institucionalidade política. Não vamos avançar nessas formulações se não colocarmos em prática experiências vivas com o protagonismo da participação popular. Sem aceitar esse desafio, vamos continuar, simplesmente, reproduzindo instituições seculares criadas e organizadas para manter relações de dominação de classe e domesticar, pelas vantagens e privilégios,  seus oponentes como ocorre hoje nos parlamentos e nas instituições do Estado capitalista.

Neste momento, que queremos superar derrotas eleitorais e políticas, numa conjuntura de gravíssima crise sanitária que expõe todas as mazelas e contradições do capitalismo, de profunda crise econômica no país agravada pelas medidas praticadas pelo governo Bolsonaro e uma ausência de valores éticos e morais com descrédito nas instituições, necessitamos um programa eleitoral que, também, responda às reivindicações imediatas e sentidas pela população. Mas, principalmente, um programa eleitoral que combine isso com a luta anticapitalista. Mesmo nos limites da disputa municipal, é possível e, para nós, obrigatório que as campanhas eleitorais assumam também a propaganda educativa dos valores da igualdade social, da solidariedade, do coletivo, do planejamento superando o mercado. Por isso, a campanha eleitoral não pode abdicar dos temas da reforma política, do combate a brutal desigualdade social, da defesa de uma estratégia de desenvolvimento com o planejamento do Estado, das lutas pela igualdade e enfrentamento a todas as formas de discriminação combinadas com o anti capitalismo.

Um eixo central nos programas eleitorais municipais

O eixo estruturador dos programas municipais deve estar assentado na democracia participativa, nas experiências positivas que já realizamos. Seu fundamento é a participação popular através de formas diretas que se adequam a cada realidade (no Brasil temos o município de SP com 11 milhões de habitantes e há várias capitais e cidades com mais de um milhão de habitantes e a maioria dos municípios com menos de 10 mil habitantes) por regiões, por paróquias, por distritos e/ou zonais e a estrutura existente dos Conselhos Municipais temáticos, inclusive com funções legais previstas nas várias legislações (conselhos de saúde, educação, transporte, moradia, assistência social, etc.). Essa variedade enorme entre os municípios encerra, também, uma imensa diversidade de história, experiências e lutas sociais mas são todos entes  jurídicos semelhantes perante à União.

Nossos programas devem garantir que as políticas e os gastos públicos orçamentários sejam decididos diretamente pela população conjuntamente com o governo que deve propiciar as condições materiais e as informações e dados orçamentários, os limites dos novos investimentos, comprometendo-se em apresentar nas Câmaras Municipais o resultado fiel desses processos e a garantia de sua consecução. O Orçamento Participativo pode e deve criar outros mecanismos de consulta e protagonismo através de congressos, conferências, plebiscitos que venham ampliar o acesso à informação e a participação das comunidades.

As ferramentas digitais existentes hoje permitem estender isso de forma infinita. No Brasil, já há campanha orquestrada pela direita de transformar o celular num mecanismo de participação direta que substitua o Parlamento por um processo plebiscitário permanente. Ao menos é o que transmite a proposta que circula nas redes sem uma autoria clara e identificada.

Para nós esses  mecanismos não podem eliminar a participação presencial onde se exerce a formação da cidadania, onde se dá a educação política e compreensão do funcionamento, do papel e das competências do Estado em seus vários níveis, onde se aprende a debater e a decidir com solidariedade, prioridade e soberania popular sobre o orçamento público.

A questão central, o divisor de águas da nossa experiência com outras de consulta ou ouvidorias que se apresentam como semelhante é o caráter deliberativo, vinculante, da soberania da decisão sobre o serviço e/ou a obra definida pela comunidade e o respeito e cumprimento pelo Executivo. Esta é a essência da experiência de Orçamento Participativo que praticamos.

Um programa de prioridades sociais

A campanha eleitoral será, necessariamente, nacionalizada. Ou seja, no debate, nos panfletos, nas reuniões públicas, nas redes sociais, no rádio e TV,  os temas nacionais estarão presentes pois os municípios dependem deles diretamente: o sistema tributário e a partilha federativa dos recursos, a legislação autoritária sobre os gastos públicos e a política de austeridade neoliberal, o financiamento das grandes obras públicas nas áreas de saneamento e habitação popular, o papel do Estado e do planejamento como indutores de desenvolvimento, a reforma política exigida para substituir o caráter corruptor, anacrônico e anti-democrático do atual sistema eleitoral, a brutal desigualdade social e a liquidação em curso das conquistas e direitos sociais da Constituição Federal de 1988.

Precisamos, também, responder às competências municipais específicas e algumas com obrigatoriedade orçamentária como as áreas da educação infantil e fundamental e o sistema de saúde. As políticas de assistência social, habitação popular e mobilidade certamente vão variar muito de acordo com a dimensão dos municípios, mas o que distinguirá uma política petista, uma política de esquerda nessas áreas será a profunda democratização de suas decisões através dos Conselhos Municipais, articulados com os mecanismos gerais de decisão orçamentária no Orçamento Participativo.

O que distingue, também, nossas políticas públicas não é só a forma em que se realizam ou o cumprimento além dos mínimos constitucionais e das leis orgânicas.

Não basta, por exemplo, garantir os recursos materiais da educação. O importante, também, é engajar professores, alunos e comunidade escolar no debate sobre o conteúdo pedagógico do ensino-aprendizagem, no combate aos índices  de evasão e repetência, na formação permanente e continuada dos docentes, na formação da cidadania e no estímulo à cultura e ao esporte às crianças e adolescentes. Uma escola cidadã  que prepare para a democracia.

O que distingue, também, uma administração petista é a defesa e a luta para que os serviços essenciais como a água, o saneamento, a mobilidade, aenergia, a comunicação tenham caráter público e não sirvam à acumulação privada do capital.

O município pode ser um importante indutor do desenvolvimento econômico sustentável no estímulo à formação de cooperativas, de incubadoras empresariais e tecnológicas, de crédito e/ou microcrédito para investimentos locais, de compras coletivas e direcionadas nas escolas, hospitais e refeitórios públicos,  nas políticas de apoio e extensão técnica para pequenos produtores e na capacitação gerencial de micro e pequenas empresas, na organização e apoio às cooperativas de recicladores de resíduos e outras iniciativas adequadas às características e ao meio ambiente de cada município.

Por menor que seja o município, o planejamento, a ocupação do solo urbano, a exploração de recursos naturais são elementos sujeitos ao poder regulador municipal, às vezes concorrente com o Estado e a União, mas não pode abdicar de fazer valer no município a racionalidade, o combate à especulação e destruição do meio ambiente, em suas variadas hipóteses.

Pensar e elaborar uma base comum programática para os mais de 5.500 municípios brasileiros, profundamente diferentes em suas condições de população,  socioeconômicas, meio ambiente e de formação histórico cultural é impossível, mas o que importa é o método e uma estratégia comum que o partido deve orientar. Nesse sentido, o esforço desta contribuição é assentar esta estratégia comum na concepção de radicalização democrática popular, com partidos aliados e movimentos sociais, através da participação popular direta e organizada na busca de nova governabilidade e legitimidade baseadas na democracia participativa.

Somos favoráveis que esse esforço e essa política seja defendida pelo nosso Partido como algo inseparável da formação de uma Frente de Esquerda orgânica, permanente e que tenha um programa comum com base na democracia participativa.

Essa proposta não é incompatível com os legislativos municipais que existem hoje, mas estabelece outra forma na sua relação com o Executivo e, com sua prática, nos permite retomar um debate com base real para propormos profundas mudanças na institucionalidade representativa atual.

Raul Pont é membro do DN/PT

                                                               

                                                                                  

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