Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República em outubro do ano passado com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. O que se apresentava como uma bandeira nacionalista-conservadora, com sua referência a pátria e a religião, escondia em seu interior um programa econômico profundamente entreguista, além de, tanto o candidato majoritário quanto seu vice, terem um histórico de discursos contra tudo que nosso país é e representa. Do ódio sistematicamente expresso contra os povos que constituíram nossa nação, com ataques, ofensas e ameaças contra indígenas, negros, quilombolas; o desrespeito constante contra as mulheres, maioria da nossa população, assim como minorias, seja à população LGBT, seja aos grupos religiosos não-cristãos; chegando a promessas de alienação dos nossos bens naturais, como a defesa de que a Amazônia seja entregue a estrangeiros para ser explorada.
O que poderia parecer simples falsidade ou contradição essa semana ganhou algo de coerência. Para isso, é necessário observar a segunda parte do slogan, “Deus acima de todos”. A primeira vista pode nos remeter a figura mística de um Demiurgo criador, cultuado em diversas religiões. Porém, hoje, já podemos concluir que não era essa a entidade a qual Bolsonaro se referia. Para o atual mandatário e sua trupe, Deus é os Estados Unidos e o messias é Donald Trump, aos quais todos devemos obediência. Só assim para entender o tamanho grau de submissão expressa na viagem diplomática dos últimos dias que deve ter feito corar até os entreguistas de outrora como Fernando Henrique Cardoso.
De visita não-divulgada na agenda oficial à CIA (cujo histórico de espionagem e sabotagem contra o Brasil e nossas empresas, como a Petrobrás, vem de décadas até episódios recentes), ao discurso do “deputado-filho-chanceler-honorário” Eduardo Bolsonaro ofendendo brasileiros que vivem no exterior, cessão a vários pedidos dos EUA sem garantia de contrapartidas (dispensa de vistos, abandono do tratamento diferenciado na OMC…), a ida do presidente ao vizinho do norte foi a expressão mais acabada do “complexo de vira-latas”, como bem descreveu o jornalista Kennedy Alencar.
Não que essa atitude seja surpresa. O chanceler Ernesto Araujo, uma versão mais triste de Policarpo Quaresma (este, ao menos, buscava alguma coerência em meio aos seus devaneios), já tinha expresso de forma contundente qual o papel do Brasil no mundo. Participando da aula magna do Instituto Rio Branco, onde estão sendo treinados nossos futuros diplomatas, Araujo demarcou de forma clara sua diferença em relação aos governos que o antecederam. Entre outras diatribes, atacou a política levada a cabo por Lula de buscar maior aproximação comercial com União Europeia, China e América Latina (países onde vivem em torno de 2,3 bilhões de pessoas e cujas economias somam US$ 36,6 trilhões), defendendo que nosso maior foco deveria ser os EUA (327 milhões de habitantes e PIB US$ 20,8 trilhões), sob a justificativa de defesa da civilização cristã-ocidental.
Porém Deus escreve certo por linhas tortas e tamanha devoção de nosso cavaleiro templário não lhe trouxe a recompensa esperada na vida terrena. De acordo com a jornalista Patrícia Campos Mello, o chanceler deu um chilique na frente de outros ministros por ter sido excluído da reunião privada entre os dois presidentes que contou com a participação do filho-deputado Eduardo Bolsonaro. Felizmente, Paulo “posto Ipiranga” Guedes estava lá para acalmar o inconsolável chanceler.
Seria de grande valia a Araujo nessa hora lembrar de Porfirio Díaz. Presidente do México por um longo período entre final do século XIX e início do século XX, Díaz fez de seu país um aliado subalterno da potência norte-americana. Já ao final de sua carreira, observando todos os prejuízos que essa escolha havia trazido para si e sua nação, lançou a célebre frase “Pobre México. Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”.
Iuri Faria Codas é bacharel em Relações Internacionais e militante da Democracia Socialista