Byung-Chul Han é um sul-coreano que leciona na Universidade de Artes, de Berlim. Ganhou projeção com a publicação de vários ensaios curtos sobre temas contemporâneos. Em Infocracia: digitalização e a crise da democracia, esboça uma descrição do poder sob o regime de informação e processamento de algoritmos com inteligência artificial para controlar a sociedade, a economia e a política. Infokratie é a distopia do “capitalismo de informação que se desenvolve em capitalismo da vigilância e que degrada os seres humanos em gado, em animais de consumo e dados”. Ponto.
Michel Foucault, em Vigiar e punir, estudou o regramento disciplinar sobre os corpos. Interessava-lhe a “biopolítica” voltada à domesticação corporal e somática para adequar as idiossincrasias aos regulamentos. O processo iniciava na isolação espacial até chegar à submissão total. A “sociedade de espetáculo” teatralizou símbolos e cerimônias nas ações de dominação, A “sociedade panóptica” neoliberal ordena dados para direcionar as condutas e o consumo, sem que as pessoas percebam. Na transição, o corpus foi absorvido pela indústria da beleza como objeto da estética e do fitness.
Byung-Chul Han foca nas redes comunicacionais ininterruptas. Em vez do isolamento para reeducar presos, as conexões telemáticas que se transmutam em controle. “Quanto mais geramos dados, quanto mais intensivamente nos comunicamos, mais a vigilância fica eficiente”. O curioso é que os indivíduos não se sentem ou não se importam em ser vigiados, devassados em suas opiniões e em gostos íntimos. Acreditam-se livres. Ilusão. Individualidades não usufruem a liberdade para circular; as informações, sim. Nosso presídio tem a forma da liberdade, da comunicação, da comunidade.
As mídias eletrônicas destruíram a cultura livresca do iluminismo, produzindo uma midiocracia que contribuiu para a erosão da esfera pública horizontal. Com o discurso vertical, eclipsou os cidadãos críticos e, no lugar, pôs os consumidores passivos sem muita iniciativa própria (os “vidiotas”). O entretenimento engolfou a razão. A própria dinâmica dos debates políticos obedeceu ao estilo dos programas de auditório. Quem quer ser milionário? Performances substituíram o conteúdo. A política se resumiu em esquetes de persuasão das massas. O que se saía melhor no palco, vencia.
A história da dominação tem sido a sequência de diferentes tipos de tela. A prima parede de Platão, no Mito da caverna, simulava a realidade; a “teletela” de George Orwell, em 1984, estampava as aglomerações em rituais de servilismo; a TV matinal condicionava as almas para o trabalho; Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, por via do divertimento instrumentalizava a subordinação. Na era infocrática, o smartphone é a caverna digitalizada onde restamos confinados, com cara de bobo.
O regime disciplinar dispunha apenas de informações demográficas necessárias ao exercício da biopolítica. O regime de informação tem acesso a psicográficos para implantação da psicopolítica, na qual a racionalidade se vê substituída pelos signos da afetividade. Afetos mobilizam mais o inconsciente que um argumento fundamentado. Por aí, o comportamento eleitoral e o consumismo é manipulado. A infocracia mina a dinâmica democrática que pressupõe a autonomia e a liberdade de escolha. A propaganda em mídias forjava o poder; as informações asseguram um pleno domínio.
A empresa britânica Cambridge Analytica se jacta de possuir os psicogramas de todos (todos!) os estadunidenses adultos. “Fomos decisivos na vitória de Donald Trump”. Anúncios obscurantistas poluem o ambiente interativo e bestializam a sociedade. Não por acaso, mas com um script à la Olavo de Carvalho para levar ao paroxismo a virulência. Extremistas da direita classificam as páginas da internet de infowars (guerra de informação) e se autodefinem como os guerreiros da informação (infowarrior): sem açúcar, mas com afeto. “Pós-verdade” é a palavra de nosso tempo.
Os memes revelam que as trocas internéticas privilegiam num crescendo as imagens. Interpelam com rapidez, enquanto os textos são lentos. A mídia viral debocha da coerência lógica explanativa. A democracia representativa é prolixa e cansativa. A democracia digital, vibrante. Celulares são parlamentos móveis, polemizam a qualquer hora. Não, não se parece com as antigas ágoras gregas. Enxames digitais não formam coletivos responsáveis para intervir na Pólis. A comunicabilidade algorítmica nas mídias sociais nada tem de democrática. As informações se propagam sem cruzar pela praça pública. São produzidas em espaços privados e se endereçam a outros espaços privados, fragmentariamente, aos solavancos. Os followers são adestrados por influencers. Bovinamente.
Byung-Chul Han conclui, daí, que influenciadores e seguidores “não são capazes de ação política”. Equívoco desmentido na invasão do Capitólio pela turba trumpista, em Washington; e na terrorista depredação da sede dos poderes republicanos pela malta bolsonarista, em Brasília. O correto seria dizer que são incapazes de uma ação política racional construída a partir de um discursus (em latim, andar ao redor) para a concertação de ideias publicizadas. Arena recusada pelos pseudo patriotas, cujo habitat natural são as redes sociais e não as estruturas institucionais da democracia tradicional, sustentada na escuta do outro e na ponderação de novos pontos de vista para fechar consensos.
Ocorreu uma desfatualização do mundo. A narrativação prevalece. A hiperpersonalização narcísica acionada pelos algoritmos para reforçar preferências, continuamente, dinamita os alicerces do livre arbítrio. A professora do Barnard College, de New York, Cathy O’Neil, em Algoritmos de destruição em massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia, batizou tais modelos nocivos de “Armas de Destruição Matemáticas (ADMs)”. A sociabilidade se desintegra. Tribos carentes de identidade ideológica, assediadas pela digitalização da extrema-direita, mergulham no solipsismo. Sem um “nós” para tecer as alteridades e formatar uma comunidade autêntica, a civilização desmancha no ar. O sonho dos infocráticos é uma sociedade administrada somente por intermédio dos dados, – sem a política. Com o status quo congelado.
Citada apenas de passagem pelo pop star, as sacadas de Infocracia são um produto da formidável obra sobre os novos tempos, Capitalismo de vigilância, de Shoshana Zuboff. Para a professora da Havard Business School a renovação da democracia exige de nós “um sentimento de indignação, uma sensibilidade para perceber o que nos está sendo tomado; o que está em jogo é a expectativa dos seres humanos de ser senhor de sua própria vida e de sua própria experiência”. O presidente Lula está certo em galvanizar as nações e a opinião pública internacional para o combate às fake news. Para revigorar o Estado de direito democrático, há que legislar forte sobre as Big Techs.
A crise da verdade anda junto com a crise da democracia, pavimentando o neofascismo. A crença na facticidade foi perdida, como se observou no negacionismo durante a pandemia. As teorias da conspiração pintaram o contraditório com tintas delirantes, normalizadas por psiquês influenciáveis. Na crise da verdade, perde-se o mundo comum, a linguagem comum. A verdade é um regulador social, um prumo orientador da sociedade. O niilismo, em curso, desconstrói a coesão social.
Não é que todos viraram mentirosos. Estes, sabem a diferença entre a mentira e a verdade. É que uma e outra, agora, configuram narrativas de mesmo valor. Desapareceu a distinção. A praga da desinformação devora a facticidade do real. Aquele que é imune aos fatos e à realidade, constitui um perigo maior à verdade do que o que mente. Falar merda não é se opor à verdade, mas ser indiferente à verdade. A crise de veracidade estremece a crença nos fatos concretos. A “novilíngua” (newspeak) orwelliana bate à porta da contemporaneidade. Aliás, já entrou e se acomodou na sala. A democracia é o remédio para curar a alienante doença do homo demens. Quem vai, quem vem.
Michel Foucault, ao final da vida, pensava em quão importante é a “coragem da verdade”, com suporte nos princípios que guiam a democracia: isegoria, que é o direito de todos se expressarem livremente; e parrhesia, a obrigação de ser verdadeiro, o que excede o direito constitucional de tomar a palavra para se manifestar. Politicamente, o que age para promover o bem da comunidade humana celebra a franqueza, em público. Sócrates foi o parresiasta, por excelência, ao preferir a morte a abdicar da verdade em prol da justiça e das leis. Esse é o desafio dos democratas e dos socialistas: falar a verdade sobre as desigualdades de classe, de gênero e de raça; a hecatombe climática, o risco de guerra nuclear e o difícil labirinto da democracia. Até o sol raiar, amanhã.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.