Junho de 2013 paira como um espectro verde-amarelo sobre a sociedade brasileira. Muito já se discutiu acerca do fenômeno político-social que, com o estopim do Movimento Passe Livre (MPL), explodiu para além da redução das passagens do transporte urbano e, num piscar de olhos, tomou conta das principais cidades. O movimento, de viés estudantil, apesar da suspensão da elevação da tarifa em vários estados, prosseguiu com apoio maciço da classe média em procissões de civismo, intolerância e ressentimento. A pauta incorporou reivindicações. “Não era só pelos vinte centavos”.
Para o jornalista César Felício: “Um ponto de inflexão na crise de junho aconteceu no dia 13, quando a Polícia Militar reprimiu com violência a manifestação em São Paulo” (Valor Econômico, 02/06/2023). Em dias anteriores, os black blocs depredaram prédios. Daí em diante, a popularidade da presidenta Dilma Rousseff despencou e a instabilidade se instalou. A agenda “não” à majoração dos bilhetes de ônibus, metrôs e trens, na sequência, mirou as incontornáveis carências dos serviços públicos e os altos gastos com as obras para a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016).
O mal-estar foi canalizado pela Rede Globo para o tema da corrupção. As bandeiras originais foram sequestradas. O alvo migrou dos prefeitos e governadores para o Palácio do Planalto, o PT e a esquerda in totum. Propagou-se o vírus antipetista e antiesquerdista, fechando o doloroso ciclo do “mensalão” inaugurado em outro junho (2005), pelo deslocamento de decisões cruciais para fora de instâncias legítimas. O vírus autoritário infectou a população. A lacração dos políticos contaminou o metabolismo sistêmico, independente do teor ideológico – vitória do mercado contra a política.
As bizarrices com ares de “casa grande” passeando na “senzala”, tipo o casal indo para o local de uma protestação com o carrinho de bebê, a babá preta uniformizada e cães da raça Spitz, acharam em um boçal o porta-voz adequado dos rebeldes a favor das desigualdades sociais e culturais.
Aquele cínico voto de impeachment dedicado a um covarde torturador (coronel Ustra), pavimentou a ascensão do messias da Barra da Tijuca e guinchou as esperanças coletivas para um passadismo encarnado na ditadura militar, em vez de para uma utopia política com base no igualitarismo e na solidariedade. Levantou-se a tampa do esgoto para monstruosidades assumirem lides ministeriais.
“O establishment preferiu mentir, inclusive para si, que estava apoiando um candidato da direita normal. Todos fingiram não ver quem era Jair Bolsonaro”, acusa o sociólogo Celso Rocha de Barros, em PT: uma história. Às favas os escrúpulos, cantou o passarinho ao endossar o AI-5.
Benito Mussolini é paradigmático. A Fasci Italliani di Combattimento, fundada em 1919, tinha um feixe de hastes de madeira com um machado ao centro, símbolo do poder político da Roma antiga e, por extensão, do poder político da Roma moderna com Il Duce. O líder forjou de modo arbitrário os rituais, os gestos e os valores do Império Romano para enaltecer a “especificidade” do mito da romanidade, reatualizado pelo fascismo. Qualquer semelhança com o teatro de quinta categoria e atores medíocres na Terra brasilis, não é coincidência. A tragédia se repetiu como uma farsa.
Choveu no paraíso
A maioria dos analistas julga que junho de 2013 revelou duas crises: a do sistema de representação e a da impostura da meritocracia, que fabricou losers despeitados e winners arrogantes de poucas luzes. A revista Focus Brasil (08/06/2023) dedicou um número aos “Dez anos das Jornadas”.
A Lava Jato, nascida em março de 2014, não criou ex nihilo o ódio; aproveitou-se do caudal de estigmatização da atividade política e responsabilizou os detentores de cargos eletivos, funcionários públicos e empresários pelos malfeitos comprometedores do país do futuro, adiado. A exemplo dos veículos corporativos de comunicação, converteu a corrupção no problema fundamental de um país continental, com uma determinação tão estúpida que provocou 4 milhões de desempregados.
O primeiro mártir do lavajatismo foi o princípio da justiça hodierna, a presunção de inocência. O segundo, o respeito ao processo legal e à competência jurisdicional. O terceiro, a verdade, por condenações à revelia de provas materiais, baseadas apenas nas delações premiadas. O quarto, o julgamento imparcial, maculado no conluio do juízo, a promotoria e a mídia na prática do lawfare.
O quinto foi a indústria de engenharia, desmantelada para o regozijo das competidoras estrangeiras. O sexto, a dignidade da pátria, lesada pela articulação espúria às suas costas com o Departamento de Estado norte-americano, que culminou na prisão arbitrária de quem ponteava todas as projeções eleitorais. Outrora marco da abdicação de Dom Pedro I em favor do filho, para alguns a magna data da Independência do Brasil, o 7 de abril se transmutaria no triste dia da ignomínia do judiciário.
Então choveu no paraíso, parafraseando o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Éramos felizes e não sabíamos. Comprovou-se a tese de que a sublevação das massas se dá em conjunturas econômicas ascendentes, onde uma interrupção brusca impede novas conquistas das camadas oprimidas.
Entre o impeachment, a posse do vice golpista e o fim do governo neofascista, la porte de l’enfer rodiniana se abriu à lei patronal das terceirizações e à autonomia (em relação à soberania popular) do Banco Central, com a entrega da política monetária aos prepostos do rentismo financeiro.
Privatizou-se empresas estatais, devastou-se florestas, sucateou-se a educação, legalizou-se a aquisição de armas pelo narcotráfico e as milícias, abandonou-se a política de proteção às mulheres e se turbinou o feminicídio. Mais: se assistiu a incúria no enfrentamento da pandemia com estímulo à imunidade de rebanho, em detrimento da vacinação. O resultado cravou o genocídio de 700 mil vítimas. Em cada escaninho da administração central, o desmonte dos órgãos de controle do Estado e o assalto ao erário guiaram o leme do desgoverno, na pior aventura em 500 anos de extrativismo.
Entre 2003 e 2010, graças a iniciativas governamentais surgiram 15 milhões de vagas formais, mais do que o total de postos de trabalho nos mandatos de Sarney, Collor, Itamar e FHC juntos. Entre 2018 e 2022, em contrapartida, 62,5 milhões de pessoas ficaram abaixo da linha da pobreza e 17,9 milhões viviam na extrema pobreza (dados do IBGE). Arruinou-se a autoestima que a população demonstrava pela simples condição de ser brasileiro. Praças de metrópoles se tornaram campos de refugiados famintos, em barracas improvisadas por invisíveis. Eis uma pequena amostra do quanto são antagônicos os programas de gestão que contrapõem o progressismo ao hiperindividualismo.
As ondas do mar
Como as ondas do mar de Nazaré, em Portugal, o vagalhão do extremismo de direita produziu-se sob a superfície de correntes impulsionadas numa fenda submersa, capaz de formar um volume e condensar uma força extraordinária antes de quebrar na praia. Na política, aquela placa tectônica correspondeu à questão da moral e dos costumes com a qual o neoconservadorismo, em associação com o neofascismo, se apresentou à sociedade ao sustentar o colonialismo (racismo) e o patriarcado (sexismo), que servem de alicerces para a segregação e a manutenção da dominação capitalista.
O obscurantismo não é aliado do processo civilizacional, mas de exercícios de feitores cruéis. O desembargador do Tribunal de Justiça/SC, suspeito de manter em situação análoga a de escrava a trabalhadora (surda, muda, iletrada), sem salário ou convívio social, por duas décadas, trouxe à tona um passado que ainda governa o presente, a se confirmar a denúncia. Acabar com a escravatura foi fácil, difícil é arrancá-la do habitus das “elites” com sua cruel dialética de mando e de obediência.
Os abolicionistas avisaram: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”. Com o que a luta antineoliberalismo confunde-se, hoje, com a luta antirracismo (étnico, social, capacitista). Por isso, para o antropólogo Darcy Ribeiro, a transformação à brasileira será um socialismo moreno, ou não será socialismo. É hora de acertar as contas com 350 anos de martírio.
Vale salientar a denúncia do ex-agente do Ministério Público Federal (MPF) e ex-deputado pelo Paraná, Deltan Dallagnol, ao criticar o projeto de lei de combate às fake news com a alegação de que censuraria versículos bíblicos. O ex-procurador reportava-se a um anacronismo machista.
“Esposa obedeça ao seu marido, como você obedece ao Senhor. Pois o marido tem autoridade sobre a esposa, assim como Cristo tem autoridade sobre a Igreja. E o próprio Cristo é o Salvador da Igreja que é o Seu corpo. Portanto, assim como a Igreja é obediente a Cristo, assim também a esposa deve obedecer em tudo ao seu marido” (Efésios 5:21-6). Donde se depreende, diferentemente da interpretação patriarcalista do PowerPoint, que a luta contra o neoconservadorismo confunde-se com a luta contra o sexismo, e deverá ter as mulheres à frente. Por que temer os ideais igualitários?
Consuelo Dieguez, em O ovo da serpente, lembra que uma manifestação evangélica reuniu 40 mil pessoas no gramado da Esplanada, em Brasília, no 5 de junho do fatídico ano, véspera dos atos pelo passe livre, que romperam a tranquilidade da capital paulista. O ato teve por mote um repúdio às medidas de criminalização da homofobia, aprovadas na Câmara e remetidas para exame do Senado.
Na época, avaliava-se em 30% o exército “pela liberdade religiosa e pela família tradicional”. Mobilizado por igrejas que agem com ambição indisfarçável pelo poder político, os soldados da fé atacavam os inimigos de sempre: aborto, feminismo, casamento gay, ideologia de gênero. É um risco à democracia que os teocratas disponham de emissoras de rádio e televisão para a pregação de preconceitos, cooptação de fiéis e captura de votos simpáticos a bispos que mercantilizam deus.
Hasta la victoria
Exageros de linguagem sugerem um vínculo automático entre o “Ano da Serpente” e a assunção bolsonarista, critica Marcos Nobre no artigo “Como junho de 2013 levou a culpa pelos desastres do país” (Folha de São Paulo, 04/06/2023), mas não livram a cara dos que possuíam relevo no regime. No calor das mobilizações, a precipitação da mandatária-mor com a proposta de uma Constituinte exclusiva e de dirigentes com a acomodação ao emedebismo sinalizam um fracasso das lideranças, em uma sociedade erguida sobre pactos classistas pelo alto e subtraída por uma nobreza vira-lata.
Não obstante, se “até 2015, nenhuma força política foi capaz de oferecer direção e sentido hegemônicos à energia de junho”, é que se impôs uma falência mais potente: a da representação política clássica (com a objetividade do real subestimada) comparada à crise das direções (com a subjetividade do sujeito superestimada). A tentativa de reinventar a democracia com uma cidadania ativa, por intermédio do Plano PluriAnual Participativo (PPA Participativo), busca corrigir uma correlação adversa de forças a partir de uma “análise concreta da realidade concreta”, às antigas.
A antipolítica abalou as instituições do Estado de direito democrático, o que ficou sintetizado no desabafo que funcionou como um compêndio de ciência política: “Não me representam”. Quem captou a insatisfação com a “democracia realmente existente” foi a extrema direita, que aprendeu rápido o potencial das redes sociais e da internet. A tempestade seria perfeita se o vandalismo nas sedes dos três poderes, no último 8 de janeiro, tivesse configurado a distopia regressiva armada.
De acordo com o diretor do Instituto Fernando Henrique Cardoso, o intelecto-tucano Sérgio Fausto: “2013 não produziu mudança institucional positiva que melhorasse a qualidade do Estado brasileiro e da democracia”. Pena o cientista político não reconhecer a responsabilidade do PSDB na trama. O comportamento do mimado, mas derrotado, neto de Tancredo Neves foi a maçã no Jardim do Éden.
Na Espanha, as circunstâncias foram mais generosas. A ação dos “indignados” (2011) originou uma agremiação de esquerda (Podemos) que, em aliança com os herdeiros do PCE (Unidas), disputou a hegemonia com o PSOE, de centro-esquerda, num idílio de curta duração. Nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street (2011) emulou o Black Lives Matter (2013) e as campanhas (2016, 2020) pela candidatura de Bernie Sanders à presidência, subindo a régua da consciência e da luta de classes.
No Brasil, as mobilizações do polissêmico junho na quadra dos progressistas desembocaram: (a) nas ocupações de escolas secundaristas (2015, 2016), com a juventude posicionada ao lado das bandeiras emancipadoras e; (b) no reforço alcançado pelo movimento feminista com a demanda “Ele não” (2018), que impulsionou um protagonismo de vanguarda na eleição seguinte (2022).
O desafio do presidente Lula da Silva é reconstruir a nação e fornecer as condições para que, no plano econômico e político, a participação social desperte a confiança em uma democracia de longa duração, aberta às experimentações. A práxis por inovações supera as iniquidades e sepulta no esquecimento os desvarios de ontem. “Esse é o destino do mar”, no verso de Cecília Meireles.
Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.