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O general, o médico e o magistrado | Luiz Marques

O rol das relações de um democrata exclui os seduzidos pelos instintos primitivos do neofascismo. Aqueles que reivindicavam o novo iluminismo. Mas adotaram discursos obscurantistas contra a ciência e o conhecimento. Tomavam vacinas na tenra infância (sarampo, caxumba, poliomelite). Agora, disseminam narrativas negacionistas. Pregavam políticas em prol da comunidade. Num passe de mágica, encarnaram a antipolítica para votar em um covarde admirador de torturadores. Impossível entrever nos desbotados afetos que migraram, do liberalismo para a extrema direita, a indignação em face das desigualdades que condenavam a cada retorno dos passeios turísticos ao Primeiro Mundo. Pena nunca se perguntarem por que do atraso das nações latino-americanas.

Emburreceram? Escondiam-se atrás de um título vazio, sem o respaldo acadêmico conferido pela apresentação da tese de doutorado para uma banca de especialistas atestar o quilate da contribuição, em determinado campo do saber. Bastou-lhes a Lei do Império promulgada por Dom Pedro I, em 11 de agosto de 1827, que declarou “doutores” os bacharéis em Direito e Medicina, na Terra brasilis. A etiqueta burocrática compensou a perda de prestígio com o fim das divisas nobiliárquicas (duque, marquês, conde, visconde, barão), dada a igualdade formal entre os indivíduos estabelecida na República. Um subterfúgio para manter a “distinção” junto aos comuns, conforme o estudo clássico de Pierre Bourdieu. A aparência acobertou mentes prenhes de preconceitos medievais e limitações cognitivas. A respeitabilidade adveio da renda e do consumo. Não da educação ou da cultura.

Os cidadãos de bem

Três figuras sucintas, aos moldes dos “tipos ideais” weberianos, ajudam a entender os “cidadãos de bem” que buscam um verniz de razoabilidade na sala de jantar, sem reavaliar suas opções a partir das manifestações de 2013, as quais empurraram a classe média para as ruas. A primeira é de fácil identificação; a segunda talvez desperte a atenção dos leitores de encartes; a terceira pertence (ou pertencia) ao círculo de convivência do autor. São tipos que exprimem estados de espírito presentes em seus pares delirantes: a subestimação do real, a soberba no trato com os semelhantes e a visão parcial sobre os problemas a enfrentar. Nenhum voltou a sorrir, em 2023. Os pés de barro do “mito” tirou-lhes o humor. Como na fábula de La Fontaine, em A mula com orgulho de sua genealogia, “para alguma coisa serve a infelicidade, nem que seja para baixar a crista dos vaidosos”.

1) O general que serviu ao palhaço sociopata e, ao assumir o posto ministerial no novo governo, preservou no cargo duas centenas de militares ligados à administração anterior, pisou na bola. Por efeito de um corporativismo avesso às exigências da conjuntura, não exonerou ninguém do antigo corpo funcional da pasta. Resultado: a chefia escorreu-lhe entre os dedos. Os irados subordinados seguiram leais ao retrocesso que aparelhou e converteu o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) na guarda pretoriana do tiranete, não da institucionalidade. Importa ressaltar a subestimação da alta patente sobre a guerra de valores travada entre a democracia política e social, e o neofascismo.

2) O médico escrevente que amenizou o papel da política armamentista, ao dissociá-la do aumento do número das vítimas de violência contra as mulheres (feminicídio), os negros (racismo) e os grupos lgbtqia+ (sexismo), cometeu uma desonestidade intelectual. Em sui causa, o nexo entre a distribuição de armas pelas autoridades federais e a elevação dos atos de barbárie foi eclipsado. Seu levantamento estatístico estancou em 2018. Por conveniência, o “doutor” ignorou os cachorros soltos no último quadriênio da nação. Exerceu a liberdade individual para propagar fake news, no jornal em que publica dissonâncias similares às bulas de remédio. Importa esclarecer que se investiu de soberba para expor desinformações que abrigassem a necropolítica em uma pele de cordeiro.

3) O magistrado que assistiu a “imunização de rebanho”, ao arrepio do bom senso que alertava para a multidão de óbitos evitáveis, abdicou do juízo. Com sua anuência ou apatia política, o Brasil foi o terceiro país com maior número de mortos na pandemia, embora seja o sétimo em população. A conta não bate, nota-se. O negacionismo cobrou um preço alto em vidas insubstituíveis, de lares devastados pela saudade. O juiz relevou elos da famiglia com as milícias cariocas e os bolsões nazi internacionais, a ponto de esquecer sua filiação judaica. Idem, sobre a corrupção na educação e na saúde, a devastação do meio ambiente e as milionárias joias sauditas surrupiadas da União. Com frieza, aguentou a troca da ração das emas por restos de comida, no Palácio do Planalto. Aceitou inclusive o candidato à reeleição ser derrotado, sem perder a compostura. A tudo resignou-se.

No entanto, quando da falsificação do cartão de vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo mandatário e apaniguados, via organização criminosa, sentiu vergonha da nau de insensatos. Ao receber a mensagem do Zé Gotinha, no WhatsApp, sobre a necessidade do imunizante para viajar, o representante da magistratura agiu como Cleópatra, a rainha do Egito que eliminou o mensageiro ao receber uma notícia desagradável. Então, para o cúmulo do ridículo, por impulso, o juiz cancelou nas redes digitais – quem? Os “anjos tortos” à gauche do espectro político! Depois, novamente se refugiou na antipolítica, “fechando-se em copas”. Seria de rir, se não fosse para chorar tal desatino. Importa frisar a instabilidade emocional de quem tem por ofício julgar com total imparcialidade.

Amanhã será outro dia

Deplorável o cortejo verde-oliva que abdicou da Constituição como critério para compor o bloco dos guardiões do Estado democrático de direito. Imoral a categoria de profissionais insatisfeitos com o “Mais Médicos” em municípios abandonados, para garantir uma reserva de mercado. Triste a procissão da toga que não metabolizou a cruzada lavajatista, após contribuir para o desmonte do país com a ascensão de ineptos ao núcleo de poder. Eis aí a prova de que Carlos Drummond de Andrade estava errado. No meio do caminho não havia uma pedra, senão uma enorme pedreira.

A situação evoca a fórmula anticolonialista do poeta-presidente do Senegal (1960-1980), Léopold Senghor: “se a razão é helênica, a emoção é negra”. Traduzindo, o general que oculta o ditador, o médico que esconde o monstro e o magistrado que disfarça o bandido sob a “civilização ocidental” são peças da razão discursiva, isto é, da ideologia das metrópoles. O não-europeu ontem e o não-estadunidense hoje são “o outro”, aprisionado em um estereótipo lúdico-corpóreo contraposto à ciência, à moral e à civilidade. Trata-se de um estratagema construído para calar a voz dos habitantes originários, que se estende para todo o universo do trabalho na sociedade capitalista.

A metáfora perpassa o imaginário nacional desde que Sérgio Buarque de Holanda formulou a noção de “homem cordial”, na década de 1930. Formulação reinterpretada de maneira coloquial por Nelson Rodrigues ao falar do “complexo de vira-lata”, remanescente do período colonial, na infausta ocasião em que a seleção brasileira de futebol deixou escapar a Copa do Mundo (1950) para a “Suiça da América Latina”, o Uruguai. Pior, no Maracanã, com 200 mil torcedores pasmos nas arquibancadas. O trauma reabriu a chaga correspondente a 350 anos de escravidão. A sensação do déjà-vu, em que as massas assistem o desenrolar da história como espectadores é uma constante.

Esse é o desafio das forças políticas da emoção (partidos de esquerda, movimentos sociais, centrais sindicais) na luta pela autodeterminação da coletividade durante o processo de emancipação do jugo do capitalismo. A coabitação de experimentações ilustradas pela Economia Solidária e pelos tentáculos da Central Única das Favelas (CUFA), presente em todos os estados do Oiapoque ao Chuí e em 15 países do planeta, invoca a “revolução pacífica” de Lula da Silva e a “grande recusa” de Herbert Marcuse. A síntese de energias transformadoras deve entrelaçar as contradições entre o capital e o trabalho e a participação do leque de segmentos sociais oprimidos e explorados pela lógica da dominação. O aceno a uma nova ordem social encerra o longo período de sofrimento.

Não obstante, existe ainda uma ilação a tirar das atitudes simbólicas condensadas no general, no médico e no magistrado. A isenção do imposto de renda para os vencimentos até R$ 5 mil, não é suficiente para sensibilizar a classe média que, de resto, situa-se em um patamar superior. Haverá que qualificar os serviços públicos fundamentais, o que implica no aumento indireto (não nominal) de proventos no bolso dos assalariados. Mecanismo que vai gerar condições objetivas e subjetivas para a sociabilidade plural e transversal nos espaços públicos. Uma questão essencial à hegemonia.

A arrogância das finanças no controle da impolítica monetária, com a maior taxa de juros do globo terrestre, é uma extensão do colonialismo tardio, sob a pressão de um ciclo liberal-econômico já nos estertores. Urge uma frente popular com capacidade de atração sobre a classe média, que ora comporta-se como uma viúva da razão. A roda da esperança movimenta-se como no poema Notícia da manhã, de Thiago de Mello: “E de repente a manhã, / manhã é céu derramado, / é claridão, claridão / foi transformando a cidade / numa praça imensa praça / e dentro da praça o povo / o povo inteiro cantando / dentro do povo o menino / me levando pela mão”. É hora de avançar, juntos.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio grande do Sul.

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