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O Golpe de 1964 e os Partidos Políticos | Raul Pont

O Golpe cívico-militar de 1964 que derrubou o governo João Goulart (PTB) encerrou um processo buscado e articulado pela direita no Brasil desde 1954. O suicidio de Getúlio Vargas e a vitória eleitoral de Juscelino Kubitschek (PSD) e João Goulart (PTB) na vice, em 1955, retardaram o movimento golpista. Em 1961, com a renúncia do Presidente Jânio Quadros (PDC/UDN), novamente os ministros militares tentaram impedir o rito constitucional questionando a posse do vice-presidente João Goulart (PTB) que havia sido eleito vice na chapa oponente a Jânio Quadros, situação prevista na lei eleitoral.

Raul Pont – Foto: Divulgação Facebook

A ação do Governador do RS, Leonel Brizola (PTB) e a formação do Movimento pela Legalidade frustraram a saída golpista. O Governador Brizola liderou uma rede de rádios e o forte apoio popular na capital gaúcha, na Brigada Militar (PM) e no movimento dos sargentos influenciaram decisivamente para a adesão do III Exército (hoje, Comando Militar do Sul), a legalidade forçando a manutenção do processo sucessório e o recuo parcial da maioria golpista nas Forças Armadas e no Congresso Nacional.

João Goulart assumiu o governo aceitando uma Reforma Constitucional que transformava o presidencialismo em um regime político parlamentarista de forma casuística, sem prever as mudanças que isso acarretaria na vida institucional do país. Após um ano de disputas e radicalizações crescentes, em 1963, um plebiscito nacional restabeleceu o presidencialismo.

Em 1964, ampliou-se o leque de forças golpistas. No plano externo, o imperialismo norte-americano praticava a Guerra Fria e não aceitava nenhum outro risco, como ocorrera com a Revolução Cubana (1959) e a crise dos mísseis soviéticos na ilha em 1962. O anticomunismo era a tônica da grande mídia nos noticiários e na luta político-ideológica através das Federações empresariais e dos institutos financiados pelos EUA para travar a disputa na mídia, nas universidades e escolas do país. As publicações do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES) eram distribuídas nas universidades, escolas e sindicatos fazendo a pregação anticomunista.

A Igreja Católica assumiu, também, uma postura anticomunista e contra o programa das Reformas de Base do governo trabalhista e é quem vai garantir mobilizações massivas de oposição através das marchas com Deus, Pátria e Familia. Em várias capitais formaram-se grupos religiosos profundamente conservadores e militantes como o Tradição, Família e Propriedade (TFP) que formava quadros e militância contra as Reformas.

No campo partidário e congressual, a UDN, PDC, PL, PRP e grande parte do PSD formavam um campo majoritário nos legislativos, com forte implantação social nos pequenos e médios municípios. Mais uma vez, as Forças Armadas servem de vanguarda da classe dominante, por sua organização, disciplina, armamento e pela influência,

crescente desde a 2ª Guerra Mundial, dos EUA na política de “alinhamento do país com o Ocidente”.

A novidade do Golpe de 1964 é que a expectativa de parte da classe dominante foi frustrada. A derrota das “Reformas” estatizantes e de cunho social não foi seguida da retomada dos processos eleitorais previstos e o poder devolvido aos “civis”. Ao contrário, o núcleo duro do Golpe formado no pensamento autoritário do Estado Novo (1937/1945), na ideia de eleições indiretas, Estado Forte e pouco apreço liberal tem uma visão de projeto próprio de país, que passava mais pelos quarteis do que pelas urnas.

Os expurgos nas Forças armadas, a dura repressão e intervenção nos sindicatos, as arbitrárias cassações de mandatos e a proscrição de entidades estudantis tornaram evidente o autoritarismo e o desprezo pela democracia que logo atingiu os Partidos Políticos.

O discurso pseudo liberal pró imperialista e de manutenção aparente do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas funcionando não ultrapassou o ano de 1965. O novo regime não aceita alguns resultados eleitorais nas eleições regionais previstas para este ano, em especial MG e RJ, e a resistência que se esboçava (apesar das centenas de cassações) nas Assembleias estaduais e Câmaras municipais. O governo golpista edita o Ato Institucional nº 2 que extinguiu os Partidos Políticos e obrigou os eleitos a aderir a um dos Partidos permitidos: ARENA e MDB.

Este novo golpe autoritário e anti-democrático dava uma estabilidade mínima pelo adesismo e temor ao regime, mas constituiu-se num prejuízo histórico para a construção da democracia brasileira. Já éramos vítimas do absolutismo colonial. No século do Império vivemos quase cem anos de escravidão e de dominio oligárquico que tornou o pais um simulacro de liberalismo politico. O mesmo podemos afirmar das primeiras décadas da República onde a ausência de liberdade de organização partidária e de representação proporcional, tornava as eleições um mero ritual de nomeação de oligarquias sem nenhuma expressão democrática.

Em 1964, o povo brasileiro vivia há apenas duas décadas uma experiência pluripartidária limitada, pois os partidos comunistas continuavam excluídos como alternativa política. Esse tempo mínimo de aprendizado político, de reconhecimento e identificação programática pelos cidadãos e cidadãs com seus interesses sociais e coletivos revela como essa prática é importante e insubstituível.

O quadro abaixo, reproduzindo os resultados eleitorais de 1945 a 1962, demonstra tendências de comportamento mas também revela uma das razões do golpe, do ataque ao processo constitucional legal, o caráter histórico e permanente da classe dominante brasileira contra a democracia e as conquistas históricas para alcançá-la: plena liberdade de organização político-partidária, direito de voto às mulheres, direito de voto aos analfabetos, ampliação do voto jovem, etc.

Os números são reveladores de que os programas políticos partidários, as práticas governamentais, a construção orgânica partidária e a relação com os sindicatos e os movimentos sociais começavam a identificar os Partidos com os vários setores da sociedade.

O Partido Social Democrático (PSD), herdeiro da máquina governamental (sem eleições) do Estado Novo e sua relação personalista e populista com Vargas, elegeu em 1945 maioria absoluta na Câmara. Em 1962, representava apenas 30% da Câmara Federal e um partido marcado pela flexibilidade programática e tendência conservadora.

A União Democrática Nacional (UDN) nasceu e firmou-se como um partido liberal, defensor do alinhamento com o capital internacional e principal opositor a qualquer tipo de reforma popular e/ou estatizante, mantém-se em torno de 25% do eleitorado no período, com forte tendência de radicalização política antidemocrática e antinacional.

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) é o que teve o crescimento mais acentuado no período, indo de menos de 10% em 1945 para mais de 25% em 1962, sendo o partido mais identificado com as Reformas de Base antes do Golpe. O trabalhismo apresentava mais quatro siglas dessa tendência em partidos regionais como o PTN, MTR e o PST.

O Partido Comunista do Brasil (PCB) chama atenção no gráfico pois alcançou, em 1945, 14 deputados, sendo o quarto partido mais votado e que vai ter suas bancadas na

Câmara    Federal    e    nos   estados    cassadas    em    um   processo   antidemocrático   e inconstitucional pelo Congresso e Judiciário, em típica ação vigente na Guerra Fria.

Mesmo mitigado, sem plena liberdade de organização partidária, foi período de grande aprendizado político do povo brasileiro e de maior incorporação de massas urbanas na vida política do país, apesar de terem sido apenas duas décadas do século XX.

A interrupção dessa experiência foi um dos maiores retrocessos políticos causados pelo regime golpista de 1964. Significou negar a vivência democrática, impedir a formação organizada da vontade de milhões em torno de objetivos comuns, sem o qual é impossível a construção de uma sociedade democrática.

Esse enorme prejuízo à sociedade brasileira nem sempre é ressaltado na dimensão exata do que causou às gerações que viveram as duas décadas seguintes ao golpe. Foram as gerações do silêncio, do medo à delação, do temor e do preconceito de ter opinião e do direito à expressão, da aversão ao debate e ao contraditório predominantes na ideologia das elites do país. Esses elementos não atingem apenas as classes oprimidas, mas se refletem também na indigência programática dos partidos da classe dominante pós-crise de representação social nos anos 1980.

A transição “lenta, gradual e segura” da ditadura foi garantida pelo grande acordo de conciliação entre o PDS e o PMDB e suas principais cisões, através do PFL e PSDB, no impedimento das “Eleições Diretas” e da “Anistia Ampla e Irrestrita” que abrigou golpistas e torturadores e que culminou no “Congresso Constituinte” de Deputados e Senadores e não em uma “Assembleia Constituinte exclusiva, livre e soberana”. Vivemos ainda este déficit democrático nas quatro décadas de democracia de baixa intensidade e que continua sendo um dos principais obstáculos às transformações profundas que o país precisa para romper a persistente desigualdade social.

A principal lição dessa experiência vivida é reconhecer a dívida democrática e institucional da Constituição de 1988: a democratização efetiva dos meios de comunicação; uma reforma política que fortaleça os partidos, e não o personalismo e o individualismo do voto nominal; uma proporcionalidade idêntica para todo o país na representação da cidadania; a paridade de gênero nas representações legislativas; o caráter nacional e a coerência programática dos partidos; o fim dos privilégios e das aposentadorias especiais nos parlamentos e nas instituições do judiciário.

Manter viva a memória histórica das lutas e impedir as saídas autoritárias nos mostram como a estrada da democracia é longa e como devemos trilhá-la. no futuro.

Raul Pont é Professor, ex-Prefeito de Porto Alegre e Membro do Diretório Nacional do PT.

Produzido para a edição especial Teoria e Debate, 60 anos do golpe militar.

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