Em princípio dos anos sessenta Cuba vivenciou um rico debate sobre a transição ao socialismo. Neste processo, em síntese, Che Guevara se oporá aqueles que defendiam a aplicação do modelo soviético em Cuba.
A recente publicação dos Cadernos de Che revela com nitidez o alcance da crítica de Guevara, que chegou a vaticinar que a política econômica aplicada na União Soviética levaria a reconstrução do capitalismo. Logo após isso, ocorreu o debate em que se contrapunham os defensores da ortodoxia doutrinária soviética e aqueles que, na senda de Che, defendiam um marxismo crítico, aberto à realidade dos povos da América Latina, da África e da Ásia.
A Revista “Pensamiento Critico”, inaugurada em 1967, foi o principal instrumento de expressão desta aposta num marxismo renovado. Na publicação, colaboram intelectuais como Carlos Fernando Martinez Heredia, Carlos Tablada e Aurélio Alonso, entre outros. Em 1971, “Pensamiento Critico” foi fechada e alguns de seus colaboradores foram impedidos de seguir lecionando na Universidade de Havana. Tem início um período de estreitamento dos espaços de debate e de cópia do modelo econômico-institucional soviético.
Em fins dos anos oitenta, Fidel Castro chamou uma campanha de “retificação dos erros e das tendências negativas”. Em 1991, o fim do socialismo realmente existente na União Soviética e seu impacto sobre Cuba recolocará na pauta o debate sobre o projeto socialista cubano. Hoje, por ocasião da realização do 6º Congresso do PC as discussões ganharam força e visibilidade renovadas.
Vamos publicar três entrevistas com Aurélio Alonso, sociólogo e subdiretor da Casa de las Américas. Começamos hoje, com a publicada no site cubano La Ventana, em 2008. Em breve você poderá conferir a segunda, que foi publicada no site Nodo Sur em janeiro de 2010; e a terceira, do jornal “Pagina 12” de agosto de 2010.
Essas entrevistas permitem compreender os dilemas da Revolução Cubana desde a tradição de “Pensamiento Critico”, desde a ótica de uma militância comprometida com o projeto socialista cubano, engajada na defesa e na luta pela reinvenção do socialismo, por construir a democracia socialista.
A seleção se a tradução são de Lúcio Costa. Boa leitura.
O LABIRINTO CUBANO
Fonte: site La Ventana, Casa de las Americas
EM UMA ENTREVISTA PARA O JORNAL MEXICANO LA JORNADA, VOCÊ FALA EM REINVENTAR O SOCIALISMO. QUE SIGNIFICA PARA AURÉLIO ALONSO REINVENTAR O SOCIALISMO EM CUBA?
A primeira vez que eu usei esta expressão foi no Chile em 2003 quando, disse que o futuro do mundo deve ser socialista, mas havia que reinventar o socialismo, não somente em Cuba, mas também nos projetos de socialismo que nascem atualmente na América Latina no marco de sociedade que estão buscando mudanças radicais e revolucionárias, como é o caso da Venezuela, Bolívia e Equador.
Estes países têm que reinventar, não podem assumir nenhum esquema anterior, nem o modelo soviético nem o atual modelo chinês que é muito controverso dado ao alto compromisso alcançado com o mercado nesta sociedade, o qual a gerado muita incerteza em determinados setores quando ao rumo futuro. Para levar adiante estas experiências socialistas de hoje há que pensar em reinventar. Esta se tornou uma palavra chave!
Nosso socialismo também deve ser reinventado, desde um olhar critico a experiência do sistema no século XX. Por exemplo, no terreno econômico devemos disser que uma economia esta muito estatizada E e que temos de chegar a uma economia mais flexível na qual o Estado não perca sua capacidade econômica, ou seja, nem o controle integral do aparato econômico nacional nem o protagonismo do empresariado como investidor principal nos setores estratégicos. Deve haver espaços a outras formas de propriedade como, por exemplo, as cooperativas e uma maior presença da economia familiar. Da mesma forma, não devemos excluir outras possibilidades nas quais nem temos ainda pensado. Os esquemas atentam contra a imaginação.
Tudo isso deve ser feito de forma balanceada, de modo que nenhuma das formas não socializadas ou menos socializadas imponha uma norma de mercado as formas econômicas socializadas. Buscar uma configuração que proveja eficiência, mas não em termos de uma economia de mercado, mas sim com uma concepção nova da eficiência orientada a tornar sustentável o sistema em seu conjunto.
Agora que caminho haveria que tomar? Que tempo pode demorar? Como pode ser feito? Estas são perguntas mais concretas que exigem respostas mais concretas e, respostas concretas implicam a utilização de muitas variáveis que não estão ao meu alcance. Todavia, não tenho dúvidas quanto a necessidade de romper com a identificação do estatal com o socializado ou socialistas. Com certeza, haveria muitas outras questões a tratar.
AO UTILIZARES A EXPRESSÃO “REINVENTAR O SOCIALISMO” NÃO HÁ UMA IDÉIA IMPLÍCITA DE FRACASSO?
Com certeza. Há duas coisas: temos o significado do fracasso do modelo anterior, mas temos te não perder de vista as contribuições reais daquele modelo. Começando pela União Soviética que de um império mais feudal que capitalista, sustentado pelo mujique (camponês) se converteu em menos de um século na segunda potencia mundial. Nem tudo foi fracasso naquela economia, da qual se podem extrair experiências importantes, mas sempre tendo em conta que o conjunto do modelo não se susteve tanto, no terreno econômico quanto, no político. No político porque o socialismo, que é o único regime mundial aonde a sustentabilidade depende da democracia, não foi capaz de criar esta democracia.
O capitalismo pode viver sem democracia. Preste atenção que aonde primeiro se implanta o modelo neoliberal na América Latina é no regime de Pinochet, o capitalismo usa os mecanismos de institucionalização política que lhe são convenientes e rentáveis em cada lugar sem escrúpulo algum. Inclusive, aplica padrões autoritários e, as vezes de matiz fascista, ao amparo desta institucional idade que chama de democrática por sustentar-se em regimes eleitorais e de alternância governamental.
Ao capitalismo não lhe interessa criar uma verdadeira democracia, mas ao socialismo sim. Isto foi o que faltou em Moscou, aonde nem sequer havia um verdadeiro poder popular, o que talvez houvesse permitido ao governo soviético assumir um conjunto de reformas muito mais radical orientado a manter o sistema socialista. Isso não ocorreu porque não havia um poder popular, desde o nível comunitário até os mais altos níveis do Estado o povo não possuía nenhum poder na tomada de decisões.
QUAIS FORAM OS PROBLEMAS DO PROJETO CUBANO?
Creio que devemos partir do reconhecimento que construímos um projeto demasiado estatizado, muito burocratizado e com um nível muito limitado de participação popular na tomada de decisões. Isto pode definir em grandes traços o problema, mas este tem muitas facetas pontuais e institucionais. A Assembléia Nacional, por exemplo, é composta de uma maneira eleitoralmente muito democrática, mas os eleitos têm um poder muito limitado para tomar qualquer decisão – se reúne somente duas vezes por ano e vota questões que já foram tratadas. As votações unânimes dão a dimensão da falta de consistência de sua gestão.
A DEMOCRACIA CUBANA DEVE SER REFUNDADA?
Refundar não é palavra. Refundar significa tornar a fundar com um novo desenho liquidando toda experiência anterior. Eu creio que há que transformar criticamente, ter uma posição mais critica por parte dos atores políticos, em todos os níveis de poder, para a organização do poder. O papel do Partido, em meu juízo, deveria ser alterado; o partido não pode dirigir o Estado, é o povo que deve dirigir o Estado. Marti usava umas palavras que sempre me impressionaram; ele falava de um partido para formar a república não para dirigir a republica. Para Marti o partido deve ter um papel mais ético, mais de vanguarda.
Isso nos leva a analise do que são coisas distintas um partido-vanguarda e um partido-poder. Se nos montamos a uma estrutura de poder estamos rebaixando o papel da vanguarda; e se nosso propósito é articular a garantia, a reprodução e o aperfeiçoamento da vanguarda dentro do projeto, nossa aspiração não pode ser traduzida no exercício do poder justificado por razões de eficiência ou de qualquer dispositivo que retire do povo a responsabilidade pela tomada de decisões.
Não são idéias antagônicas, mas tão pouco coincidentes, inclusive podem contrapor-se em algumas questões porque exercer o poder dá origem a interesses corporativos, então acabas querendo estar no Partido para poder exercer o poder. É uma dinâmica de interesses e compromissos de acordo ao papel que jogam as instituições.
QUE MUDANÇAS ESTRUTURAIS MAIS URGENTES NECESSITA A ECONOMIA CUBANA PARA UMA RECUPERAÇÃO DE SUAS FORÇAS PRODUTIVAS?
Em primeiro lugar, devemos dirigir nossa atenção para a subsistência. Sempre rechaçamos a aplicação de um modelo de subsistência, mas os principais gastos do país seguem sendo combustíveis e alimentos. Nunca poderemos chegar a auto-suficiência, mas não podemos despender 50% ou 60% das importações com estes itens. Neste país há muita terra sem cultivar. Daí, a histórica famosa de que Raul em sua viagem a Camaguey só via matos de marabu. Neste terreno, evidentemente há um problema estrutural a exigir uma mudança estrutural.
Cerca de 30% dos produtores agrícolas hoje garantem mais de 60% da produção de alimentos, e estes são os produtores privados e as cooperativas com maior autonomia na tomada de suas decisões. São os menos sufocados com o problema da entrega de bens e produtos pelo Estado, com escolha de cultivos por parte do Estado, pelos preços que impõe o Estado. Eu não sou um especialista nestes temas, mas há muita gente que tem escrito sobre isso e expresso pontos de vista como estes.
Creio que haveria que por um pouco mais de atenção as criticas. Há que gerar mudanças na agricultura que possam garantir um maior auto-abastecimento. Eu penso, que o socialismo do século XX foi tão estatista em todas partes que hoje temos dificuldade em adotar outras formas de propriedade como, as cooperativas e as privadas.
CONSIDERAR A NEGAÇÃO DO MERCADO COMO UMA NEGAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO?
Veja o mercado não é o capital, mas o capital criou o mercado. As economias de mercado avançam até que o capital é destruído. Deve buscar-se a desconexão entre mercado e capital bem como, mecanismos de redução do mercado como dispositivo de condução da economia. Eu não acredito no “socialismo de mercado”. Tu não poder dirigir a economia socialista através do mercado. A economia socialista deve ser dirigida de maneira global por uma institucional idade social representativa dos interesses da população que controle ao mercado.
O mercado deve ser utilizado para construir uma lógica de eficiência sem comprometer o projeto social. Uma ficiencia não determinada pelas leis de mercado, mas sim por uma lógica construída baseada nos interesses superiores da sociedade, dento da qual o mercado exista com seus mecanismos, assegurados interesses globais do projeto. O mercado de que falo não pode converter-se em uma concessão ao lucro privado em detrimento do interesse da sociedade, mas sim deve estar subordinado a ela.
DESDE QUE RAUL ASSUMIU A PRESIDÊNCIA DO PAÍS SE FALA EM MUDANÇAS. DIGA-NOS, EM QUE BASICAMENTE PODEMOS DIFERENCIAR A PERSONALIDADE DE RAUL E FIDEL?
Fidel é o estadista mais brilhante do século XX. Foi o chefe de Estado que demonstrou maior capacidade para garantir a subsistência social em condições as mais adversas possíveis e manter um consenso para o sistema. As revoluções geram personalidades; agora mesmo, no Equador ninguém sabia quem era Correa até dois anos atrás e no, entanto, ele adquiriu uma impressionante estatura de estadista. Raúl não é Fidel. Acredito que Raúl tem status de estadista como tiveram Che, Dorticos e Carlos Rafael Rodríguez. Esta é uma opinião muito pessoal. Diria inclusive que Raul sob alguns aspectos tem vantagens em relação a Fidel: creio que Raul é melhor administrador e muita gente acredita nisto em Cuba. Ele teve um papel decisivo em muitas das reformas que foram implementadas nos anos noventa e que serviram para conter a queda da economia cubana.
ESTÁ PRÓXIMO O FINAL DO LABIRINTO CUBANO DEPOIS DA QUEDA DO MURO?
Não sabemos aonde está o final do labirinto, nem sequer a saída do labirinto já está clara. A saída tem sido um processo de reinserção que deve muito a política de resistência, mas também as mudanças que estão ocorrendo na América Latina e a crise do sistema imperialista. Estamos numa época de grandes incertezas, não podemos ainda definir os caminhos destes projetos e como vão enfrentar-se com o imperialismo. Um imperialismo que costumamos definir como agonizante, mas que mesmo em sua agonia não ficará de braços cruzados. Seguramente vão repetir-se agressões armadas, “cruzadas” e invasões.
Desta forma, o principal aliado que vão ter os povos da América Latina será a resistência dos invadidos. Quanto a Cuba, devemos pensar que a situação de fortaleza sitiada pode durar 100 anos mais. O sitio é um componente de nosso labirinto.