Fui à festa de aniversário dos 80 anos do Raul Pont. Ele é casado com minha colega Liliane Froemming e tive a alegria de estar com eles em datas significativas de suas vidas.
Raul é um leitor experimentado, não foi fácil selecionar um livro para lhe presentear, mas a sorte estava a meu favor: ninguém menos que Chico Buarque havia recém-lançado seu Bambino a Roma, as memórias ficcionais de alguns anos de sua infância naquela cidade.
O rosto do Raul se iluminou quando soube qual livro era. Não contei para ele, nem para a Lili, mas a minha intenção secreta era inspirá-lo a escrever as suas próprias memórias, da vida expressiva e rica que é a dele, e que ele, em certo momento da celebração, revisitou com entusiasmo e emoção.
Quando começou a falar, referiu a última comemoração de seu aniversário, ocorrida há dez anos, por ocasião de seus setenta, e lembrou de um marcador de livros que ganhou na ocasião.
Lembrou que aquele ano, uma década atrás, era 2014 e Dilma Roussef havia sido reeleita para um segundo mandato, confirmando a vitória da eleição da primeira mulher presidenta no país. Lembrou os quatro mandatos consecutivos do PT na presidência da república e na prefeitura de Porto Alegre, para dizer que “estávamos todos muito entusiasmados porque víamos a história realizar os nossos sonhos”.
E então, nesses últimos dez anos, disse, vimos a Presidenta deposta por um golpe, o presidente Lula preso por um processo fraudulento por quase seiscentos dias, e a partir daí o advento pleno do neoliberalismo em sua face mais sinistra, desnudado na barbárie que ele representa, com o fim da democracia, a guerra selvagem de todos contra todos, a negação do direito à organização dos trabalhadores e dos sindicatos. Refletiu que esses dez anos foram muito pesados, pois “pensávamos que sabíamos todas as respostas, todos os encaminhamentos, mas mudaram as perguntas e nós ainda estamos impactados e sobressaltados”.
Então ele fez um salto para o passado no seu discurso e contou, com sinceridade e bom humor, que veio do interior, de Uruguaiana. Era 1963, tinha 19 anos, e veio trabalhar no “pequeno, mas metido” Banco Riograndense de Expansão Econômica, com intuito de entrar na universidade. Foi morar numa pensão na rua Andrade Neves, a cinquenta metros da Cinelândia Gaúcha; na rua da Praia, havia o festival de vitrines, muitos cinemas e o footing. A plateia ria. Trabalhava na rua Uruguai e frequentava todo esse circuito; para ele, garantiu, era o melhor dos mundos, cheio de coisas que não havia na fronteira.
E foi então, disse ele, que encontrou a Ufrgs – universidade pública, ensino público – e, mais: o centro acadêmico. “Essas coisas mudam a vida da gente”, disse emocionado, e os amigos ecoaram “Ra-ul! Ra-ul!”
Com um mês de aula – continuou – veio o golpe militar. Começou a frequentar o Centro Acadêmico, mas com certa precaução, pois em Uruguaiana se falava que “lá tinha muito comunista, tinha que ter cuidado”. A plateia veio abaixo.
Avalia que nessa trajetória de sessenta anos “resistimos, enfrentamos a ditadura e, ao mesmo tempo, tínhamos que entender que ditadura era aquela, a quem ela servia, quem se beneficiava com ela, quem foi responsável por aquele período. E isso não se aprendia na sala de aula”.
Contou que os melhores professores estavam cassados, exilados, e a tarefa que se colocava era repensar a história do Brasil, repensar o comportamento das classes. Disse que a esquerda brasileira estava iludida, acreditando em teses que a prática concreta da História provou que não funcionavam. Disse: “Nós tivemos o topete de afrontar algumas teses do Partido Comunista, contra o Cavaleiro da Esperança, contra o comitê central do Partido Comunista Brasileiro.”
Situou seu agradecimento por essa experiência e luta como fruto do coletivo, de trabalhar sempre junto. Como foi, disse, a construção do Partido dos Trabalhadores, juntando os companheiros dos anos 70 e 80, alguns deles ali presentes, ou que enviaram seu registro em vídeo, quando apostaram na necessidade de ter uma articulação nacional, de encontrar uma nova geração, a partir dos anos 70, na universidade.
Universidade, ele disse, onde conheceu a Liliane, com quem, com mais alguns outros, teve o prazer e a satisfação de viver toda essa experiência.
E acrescentou que a “gloriosa Nova Proposta” deu origem à Peleia e à construção de um jornal, de um periódico, que não só resistisse, mas que começasse a desenvolver uma ofensiva contra uma ditadura que ainda estava muito viva, num período em que mataram o Herzog, o Manuel Fiel Filho. “Queríamos uma imprensa que colocasse na sociedade brasileira um ponto de vista dos trabalhadores, um ponto de vista dos socialistas, que nós queríamos enfrentar não apenas a ditadura, mas também o capitalismo”. Assim nasceu o “Em tempo”.
E continuou: “Para isso é fundamental uma luta conjunta. Está cada vez mais provado que esse enfrentamento é incontornável. A burguesia brasileira, a classe dominante deste país optou pela barbárie, por essas figuras que surgem de período em período, não só na América Latina, mas no mundo todo”.
Concluiu dizendo que é importante realizar a luta com o conjunto do campo popular, na pluralidade, na reprodução coletiva dos direitos das mulheres, da juventude, do conjunto dos movimentos antirracistas, feministas.
E disse que queria agradecer, pois os seus 80 se deviam a isso.
Ao longo daquele percurso pelos nossos ideais, pelas experiências de discussão e debate de ideias visando à construção do bem comum, pelo desfile da coragem e das lutas que se travaram nesse tempo histórico que também é o meu, fui sendo tomada por uma emoção juvenil, um nó na garganta, e logo as lágrimas rolavam soltas, numa torrente de alegria e identificação com aquele homem / guri de 80 anos, que conserva o idealismo dos anos sessenta/setenta, da nossa juventude, acrescido da experiência, da lucidez e da abertura para o que ainda não sabemos como pensar, encaminhar e lutar.
O lugar da universidade, do pensamento, da reflexão e do debate ficaram marcados em toda a sua trajetória. Ele começou o retrospecto de sua vida falando num marcador de livros que ganhou na comemoração de seu aniversário de setenta anos.
Na dobradura que enfeita o pacote de presente do Bambino a Roma, que escolhi para ele e comprei na Livraria Paralelo 30, veio embutido um lindo marcador de livros, com fundo cor de laranja, um pôr do sol estilizado e outras imagens icônicas de Porto Alegre, a cidade que ele adotou e que o acolheu de vez.
Lucy Linhares da Fontoura é psicanalista, membro da APPOA.
Artigo publicado originalmente na Revista Parêntese, nº 244, no Portal Matinal Jornalismo, que reproduzimos com a autorização da autora.
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