Nestas últimas semanas, a peça publicitária do MDB no espaço partidário na TV, inundou o Rio Grande com o mote “MDB tem alma gaúcha”. O partido é pródigo em assumir ideias marqueteiras de fácil apelo sentimental – lembram a fase do coraçãozinho? – mas de pouca ou nenhuma sinalização programática que é o requerido para justificar a publicidade gratuita aos partidos políticos apresentarem aos eleitores.
Afinal, qual o corpo que essa alma assume? A lendária “alma” republicana farroupilha ou da imperial “leal e valorosa Porto Alegre”, ambas gaúchas. Do positivismo de Castilhos e Borges de Medeiros ou do liberalismo de Assis Brasil? Imagino que a ideia busque dialogar com esse sentimento etéreo, difuso, imortal que anima o gaúcho, mas pouco revela sobre o que fazer, coletivamente, diante da dura realidade e das contradições materiais e sociais da sociedade brasileira.
No regime ditatorial de 1964, o MDB assumiu-se como uma ampla frente política de resistência democrática. Superada essa fase pelas lutas sociais e nos parlamentos, exigia-se dos Partidos definição programática que fosse além da reconquista do voto direto e da plena liberdade de organização partidária e sindical.
No início dos anos 80, esperava-se dos Partidos “corpos e alma”. Ou seja, definições claras, fruto da análise e compreensão da história do país, de seu passado colonial e economia dependente, do comportamento e responsabilidades de suas classes sociais frente a esta história.
O MDB assumiu a condição de Partido, mas não optou pelo trabalhismo, pela social democracia e muito menos pelo socialismo. Rendeu-se, simplesmente, à ideologia dominante.
Dos partidos, espera-se coerência entre a teoria e a prática, entre as intenções e os gestos. Assim, sua identificação deve ser nítida, objetiva, conceitual. É a forma honesta e democrática que identifica e facilita a compreensão e a adesão aos partidos. Os conceitos firmam-se na prática histórica real e concreta dos Partidos e a verdadeira democracia deve absorvê-los sem preconceitos e/ou exclusões.
Os partidos capitalistas nunca se assumem plenamente. Apresentam-se como liberais, conservadores ou outros adjetivos, pois isto faz parte da disputa ideológica que a luta política carrega. Esconder, driblar, conciliar com tradições medievais (vide Inglaterra e outras monarquias com suas glamourosas realezas a preservar que nem todos nascem iguais) são práticas que estão presentes, em maior ou menor grau, conforme o processo histórico vivido pelos povos.
No Brasil, os progressistas do PP apresentam-se como “o verdadeiro partido conservador e de direita” do país, conforme declarações recentes de seus dirigentes nas aparições publicitárias na rádio e TV. São herdeiros da velha Arena da ditadura, sabemos, mas isso, na prática, significa mantê-la por outros métodos e discurso edulcorado? Na falta de exigências éticas aos partidos pelos tribunais eleitorais e pela mídia, vende-se, facilmente, “gato por lebre”.
Por coincidência, nessa mesma semana, tivemos, também, o ex-presidente da República sendo apresentado pelo presidente do PL como o homem forte dos liberais. Tão forte que substituirá o Partido na escolha da próxima candidatura presidencial. Para qualquer telespectador estupefato que assistiu essa contradição deve ter ficado mais confuso e desconfiado quando na seguinte publicidade aparece o próprio, o dito cujo, que neste momento solene, histórico, o programa que os liberais tem a oferecer ao país é “Deus, Pátria, Família e Liberdade”.
Com esse programa estaremos aptos a enfrentar as inundações e à seca, o desemprego, o salário mínimo, os juros de 11% do Banco Central, o subdesenvolvimento, o aquecimento global, a Previdência, a Educação e a Saúde públicas, etc e etc. Não há como não recordar o fundamentalismo obscurantista da “Tradição, Família e Propriedade” (TFP) clamando pelo golpe militar de 1964.
Perdoem a digressão, mas era impossível deixar de registrar o fato. E tem a ver com o tema que vinha tratando. O fenômeno da contradição, da incoerência é tão forte que a bancada federal do “Movimento Democrático” gaúcho é fiel defensora do ex-presidente e radical opositora do governo atual, no qual destacados dirigentes emedebistas ocupam ministérios.
O “Movimento”, há pouco, abandonou a identidade de Partido. Este é muito complicado. Tem que ter opinião parecida, coerência programática, unidade nacional, democracia interna para aferir vontades coletivas e respeito a decisões democraticamente alcançadas.
Por isso, o melhor mesmo é recorrer à alma, ao espírito, ir além dessas pequenas desavenças terrenas tipo como evitar inundações e não infernizar a vida de milhares de pessoas por sua incompetência e irresponsabilidade administrativas. Assim, fica mais fácil também estar em governos distintos, “acender uma vela para cada santo”, e ir lavando a alma, sem necessidade de coerência programática estratégica.
O “Movimento” e sua alma está presente nos governos municipais, estadual e nacional ainda que estejam orientados por projetos distintamente neoliberais e antineoliberais. Se a democracia requer a plena liberdade de organização política, isso pressupõe que os Partidos que expressam a vontade coletiva de milhões sejam, ao menos, coerentes no seu discurso e prática.
Não há, aqui, ingenuidade. Sabemos que o discurso enganoso, mistificador também faz parte da política. Mas o avanço histórico da humanidade necessita que busquemos, permanentemente, consciência e conhecimento científico.
Mudar esse quadro, aperfeiçoar a democracia brasileira passa, necessariamente, pelo fortalecimento dos Partidos Políticos como estruturas nacionais fortes, massivas e programáticas. Após a absurda liberalidade no registro de partidos (mais de 30 siglas partidárias), a exigência da cláusula de desempenho para acessar Fundo Partidário e Fundo Eleitoral e a possibilidade de formar Federações Partidárias com proximidade programática foram – e são – avanços importantes, positivos e estão melhorando esse quadro.
O maior atraso e péssima consequência para nossa incipiente democracia continua sendo o voto nominal. É o maior responsável pelo personalismo, corrupção e negação da função coletiva que o Partido precisa cumprir em sua coesão programática. Urge essa reforma do sistema eleitoral.
Nessa crise profunda de identidade política que vivem os Partidos no Brasil, aqui agravada pelo individualismo do voto nominal, um bom começo para enfrentá-la é ter consciência de que ela é mundial, fruto da falência do capitalismo neoliberal em escala internacional, que abandonou, também, os valores do liberalismo político do Estado de Bem Estar Social. As saídas possíveis serão fruto da compreensão teórica e da prática política coletiva que expresse a representação de milhões e não a falsa expectativa da anti-política, da barbárie, em torno de mitos ou espíritos salvadores da humanidade.
Porto Alegre, 24/06/2024
Raul Pont é Professor e Ex-Prefeito de Porto Alegre.