Democracia Socialista

“O nosso país só foi salvo pela revolução do 25 de Abril” | Mariana Mortágua

Na sessão solene das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, Mariana Mortágua criticou “os saudosistas que vivem para a mentira” e contrapôs que “reclamar o futuro é construir o progresso a favor da comunidade e distribuir todos os seus frutos”.

Mariana Mortágua na sessão solene dos 50 anos do 25 de Abril. Foto de José Sena Goulão/Lusa

Numa intervenção em que citou Antero de Quental e Tolentino de Mendonça, a coordenadora do Bloco de Esquerda falou de um país vergado “à tristeza, à emigração forçada, à maldita guerra e à secundarização das mulheres” e que “só foi salvo pela revolução do 25 de Abril”. Aos saudosistas que “saídos do armário ao fim de 50 anos” culpam a democracia e a Constituição pela pobreza que persistiu, pelas promessas não cumpridas e pela “corrupção que grassa nas privatizações, nas portas giratórias, no financiamento dos próprios partidos da oligarquia”, respondeu que “são perigosos porque vivem para a mentira”.

“O orgulho de Portugal é esse salto assombroso que nos abriu ao século XX. Foi o nosso momento fundador”, prosseguiu Mariana Mortágua, recusando que este dia “seja uma consolação para um tempo encerrado” e deixando em nome do Bloco “um alerta sobre o presente para um manifesto pelo futuro”. E esse futuro que propõe “é a sociedade que se organiza em torno do bem estar, para garantir condições materiais, sociais para que todos possam viver em segurança e prosperar.

Leia aqui a intervenção completa de Mariana Mortágua na sessão solene das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril:

Há cento e cinquenta anos, um dos grandes poetas de Portugal, Antero de Quental, afirmava que as causas da nossa decadência eram, em primeiro lugar, o fanatismo religioso que tinha criado a Inquisição e enxovalhado a educação; em segundo lugar, o império inviável; e em terceiro lugar, o absolutismo que silenciou a nação.

Essa tripla condenação levou, nas suas palavras, a um “adormecimento sonambulesco”, e esse adormecimento conduziu à mais longa ditadura da Europa, orquestrada por uma oligarquia que sempre primou pelo parasitismo. Ora festejando o ouro do Brasil, ora cavalgando os cabedais de África, ora recebendo as mordomias garantidas pela mão protetora de Salazar.

E assim se vergou um país à tristeza, à emigração forçada, à maldita guerra e à secundarização das mulheres. O nosso país só foi salvo pela revolução do 25 de Abril.

Dizem-nos agora alguns, saídos do armário ao fim de 50 anos, que a revolução foi supérflua e um exagero, que afinal a chibata sempre educa, a masmorra moraliza e o lápis azul ilustra.

As carpideiras do salazarismo não são perigosas pela nostalgia desse passado: não será reconstruído nenhum império, o Tarrafal fechou para sempre e o Aljube e Peniche são agora museus que devem ser visitados.

Os saudosistas são perigosos porque culpam a democracia e a Constituição pela pobreza que persistiu, pelo amargo das promessas não cumpridas e pela corrupção que grassa nas privatizações, nas portas giratórias, no financiamento dos próprios partidos da oligarquia. Os saudosistas são perigosos porque vivem para a mentira.  

Saibam então que nenhuma mentira ocultará que, para Portugal, Abril foi o começo. Abril foi a torrente de alegria, a beleza de vencer o fascismo. Abril é a vida cheia contra o sonambulismo e a maldita guerra.

O orgulho de Portugal é esse salto assombroso que nos abriu ao século XX. Foi o nosso momento fundador.

Portugal fez-se grande quando as mulheres ocuparam os palácios para neles fazerem as creches para os seus filhos, quando trabalhou as terras abandonadas para pôr pão na mesa, quando tirou as crianças dos campos e das fábricas e as pôs na escola, quando no país mais analfabeto da Europa o povo escreveu a sua própria história e finalmente gritou que a miséria não é virtude nem folclore, é exploração.

Nesse dia, em que o medo mudou de lugar, Portugal engrandeceu e ficou do tamanho de todos os sonhos.

Temos uma gratidão infinita para com quem fez este tempo. Evocamos Catarina Eufémia e Salgueiro Maia, Maria Lamas e Amílcar Cabral, porque temos orgulho na nossa história.

Mas recusamos que este dia seja uma consolação para um tempo encerrado.

O que trago aqui, em nome do Bloco de Esquerda, num abraço com todas e todos os democratas, é um alerta sobre o presente para um manifesto pelo futuro.

O que nos assombra chama-se capitalismo. É o poder que transforma tecnologias em ameaças, que sacrifica imigrantes para beneficiar os que exploram a sua ilegalização, que destrói o planeta de amanhã em nome dos dividendos de hoje.

É o capitalismo que faz da casa um ativo financeiro e um lugar inatingível, que ataca a democracia com discursos de ódio, que chama mérito à injustiça social, que nos impõe a caricatura individualista de nós mesmos e nos reduz à condição de consumidor ou de contribuinte para assim nos proibir de imaginar o futuro coletivo, porque esse ao mercado pertence.

Ora, a liberdade é também e só o é plenamente, na definição dos nossos objetivos comuns. A nossa liberdade começa onde começa a liberdade dos outros.

É sobre isso este dia de hoje. Não uma consolação, mas a inspiração para um tempo aberto. Ousamos imaginar esse futuro.

O futuro é a sociedade que se organiza em torno do bem estar, para garantir condições materiais, sociais para que todos possam viver em segurança e prosperar.

O futuro é garantir trabalho digno. É libertar a criatividade e ter tempo para viver. Por isso, contra a exploração que se moderniza mas que não se ameniza, afirmamos o direito ao salário e ao descanso.

O futuro é decidir os objetivos sociais do esforço comum, e por isso, contra a mão invisível que dilacera o que é de todos, afirmamos a planificação ecológica.  

O futuro é aproveitar cada um dos avanços tecnológicos e científicos já alcançados, é libertar esta força imparável e direcioná-la para fins que nos dizem respeito a todos.

O futuro será inteligência artificial e serão bibliotecas, serão redes de comunicação e serão sempre teatros, dança, cinema e todas as artes.

Será automação e será mais tempo para o trabalho que realiza e desafia.

Serão as tecnologias de produção descentralizada de energia limpa e será agricultura que respeita o saber ancestral e garante alimentos de qualidade.

Será a biologia molecular e o cuidado profissional.

Será a comunidade humana com máquinas que não substituem o conhecimento, a solidariedade e a empatia.

Reclamar o futuro é, portanto, construir o progresso a favor da comunidade e distribuir todos os seus frutos. Contra o medo e os rancores existenciais, afirmamos a certeza de que aqui cabe o mundo todo, todos temos o direito a viver em condições iguais e a ter o que precisamos para uma vida boa.

Vida boa, sim, com tempo livre, respeito por cada um, fins coletivos, sonhos em comum, o imaginário descolonizado: ou seja, tudo o que nos aproxima da liberdade.

Cito Tolentino de Mendonça para afirmar a nossa inteira dedicação a essa “tarefa apaixonante e sempre inacabada de plasmar uma comunidade aberta e justa, de mulheres e homens livres, onde todos são necessários, onde todos se sentem – e efetivamente são – corresponsáveis pelo incessante trânsito que liga a multiplicidade das raízes à composição ampla e esperançosa do futuro.

Portugal é e será, por isso, uma viagem que fazemos juntos. E uma grande viagem é como um grande amor.”

Nos 50 anos do 25 Abril, este é o nosso manifesto pelo futuro.

Viva o futuro, viva a liberdade, viva o 25 de Abril!

Via Esquerda.net