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O OLHAR ESTRANGEIRO | Luiz Marques

Eu caminhava as ruas de uma grande cidade

os acontecimentos nunca me encontravam

Em vão dobrava as esquinas

lia os jornais”.

– João Cabral de Melo Neto

Conhecemos a importância do olhar estrangeiro desde as famosas Lettres Persanes (1721), de Montesquieu, onde o filósofo imaginou a visita de dois amigos persas a Paris, os quais enviavam cartas para a Pérsia descrevendo o que viam na capital francesa. Montesquieu fez dessas narrativas uma crítica radical (pela raiz) à sociedade sob o reinado de Luís XIV. Mostrou a hipocrisia da Cidade Luz no âmbito dos costumes, das instituições políticas e os abusos da Igreja e do Estado: os alicerces de sustentação do Ancien Régime.

O livro deixou evidente o quanto eram relativos os valores de cada cultura. O que julgamos exótico em outra cultura pode ser visto por outrem, em sentido reverso, como exótico em nossos hábitos, na maneira de vestir, de sentar à mesa das refeições, do gosto alimentar, da higiene pessoal, etc. A obra, escrita com um pseudônimo para burlar a repressão, foi um best-seller do século XVIII e uma porta aberta ao Iluminismo, capaz de desmontar os estereótipos banais. Mantém a atualidade, com o permanente convite à autorreflexão. No cotidiano vivemos situações em que, muitas vezes, deparamo-nos com situações de estranheza em face do que foge à rotina. Nesses momentos incorporamos os persas, colocados na posição de penetras abduzidos para um ambiente desconhecido.

Senti-me fora do lugar noutro dia ao conversar com uma jovem amiga que na pré-adolescência, nos anos 90, estudou na França. Pasmo, ouvi-a afirmar que jamais sofreu bullying na École Flaubert Internationale. “Uma menina poderia aparecer com um turbante na cabeça ou uma burca, ser manca ou magérrima não importava. A diferença era sagrada, não provocava reações de hostilidade…” Isso soou marciano aos meus ouvidos. Arrematou: “Sofri bullying na volta ao Brasil… era gordinha, me chamavam de geleia no pátio da escola e, na educação física, desajeitada… uma coisa inimaginável na França”. A comparação revelava o contraste de duas culturas. Eu pertencia àquela que naturalizava as zombarias. Zombarias impingidas ao papel de mártires no calvário educacional.

O relato, duzentos anos passados da Revolução Francesa, mostrava o enraizamento do ideário republicano nas atitudes dos colegas escolares, se a experiência narrada corresponde a uma verdade structurel, e não a uma denegação ou a um caso excepcional. Em termos gramscianos, um ciclo revolucionário só acaba no momento em que os valores do novo sistema social introduzem-se na forma como a vida social se reproduz structurellement. O ciclo iniciado com Georges Danton e Maximillien Robespierre, no caso, estava fechado. No ínterim deixou trinta mil citoyens decapitados pelo instrumento do Dr. Guillotin.

Tive também um choque cultural ao ler o depoimento do jornalista Gleen Greenwald, estreante na revista Carta Capital (24/03/2021) e detentor de um Prêmio Pulitzer no currículo, por revelar os planos secretos de espionagem da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Uma passagem luzia na lúcida fala de Greenwald, quando ele contou a surpresa ao descobrir que: “A Lava Jato era uma fraude, uma conspiração para destruir o PT… Eu me sentia traído, como alguém que queria acreditar no processo”. Até aí eu acompanhava o raciocínio sem solavancos abruptos no entendimento. Eis que…

Na sequência, ele comentou do estupor ao saber das: “Conversas entre Dallagnol e Moro, planejando e conspirando quase todos os dias… Nos EUA é completamente proibido algo desse tipo… É impensável que um juiz fale, inclusive coisas triviais, com um lado sem a presença da outra parte… Ele seria retirado do processo na hora, se descoberto… Não acreditava que a corrupção da Lava Jato fosse tão grave”. Meu queixo caiu. Ora, ora. Os americanófilos de Curitiba que, com o vezo do governante pária, eram capazes de bater continência à bandeira estadunidense e trair a pátria para atender os interesses do irmão do Norte, não agiam de acordo com normas jurídicas vigentes acima da linha do Equador. O comportamento criminoso, aqui, era familiar. A reprovação, lá, despertava o assombro. Dito diferente, fazia irromper o inquiridor olhar estrangeiro das missivas dos persas.

É preciso adquirir e internalizar esse olhar para decodificar os preconceitos que nos contaminaram com o vírus da ingenuidade e/ou da cumplicidade, frente à violação do espírito republicano e dos direitos humanos. Só assim é possível desvendar e enfrentar a realidade social, que deve ser encarada como uma interrogação a ser dissecada, e não como uma solução a merecer deferência, pelos que se recusam endossar o teto do senso comum em sua atividade intelectual. Sem a crítica condenamo-nos à estúpida repetição.

Andei muitos caminhos / abri muitas veredas”. Como nos versos do poeta espanhol Antônio Machado, os acontecimentos aguardam nossos passos. Há que encontrar nas ruas (de João Cabral e do Zé Povinho) os acontecimentos que nos afastam do futuro e arremessam-nos para uma nova obscurantista Idade Média. As condições são:

a) o respeito à diferença e à diversidade;

b) o respeito à noção de igualdade política e social e;

c) o respeito aos dispositivos constitucionais e legais nos processos judiciais.

Para os antigos gregos o pensamento nasceria do espanto, ponto de partida da compreensão epistemológica (conhecimento). Não conseguiríamos perceber as mazelas que nos cercam sem admiratio. Hoje, na recrudescente tragédia da pandemia, mais que nunca é necessário afiar o olhar estrangeiro. A leitura dos periódicos publicados em outros países contribui para o discernimento. Veja-se: The New York Times (EUA), Le Monde (França), Corriere Della Sera (Itália), The Guardian (Inglaterra), Der Spiegel (Alemanha), Clarín (Argentina), todos críticos aos procedimentos do governo brasileiro na doença pandêmica. Sucede que, no pântano do bolsonarismo, os indivíduos perderam a capacidade de espantar-se. Estão confinados em bolhas tóxicas, que se bastam. O mundo que se exploda.

O núcleo duro bolsonarista age qual os macacos do provérbio japonês, mas sem a sapiência dos três símios. Cobrem os olhos (mizaru) para não ver o genocídio que elegeram. Tampam as orelhas (kikazaru) para não ouvir o som dos panelaços nos pronunciamentos insossos do facínora que chamam de mito (sic). Tapam a boca (iwazaru) para não ter de falar sobre as mentiras deslavadas do miliciano sobre a lavagem de dinheiro das rachadinhas. Tudo dá razão aos democratas que desistiram de argumentar com fascistas. Vacina Já!

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