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O passado dura muito tempo: Reflexão a partir do livro de Achille Mbembe | Luiz Marques

Em Políticas da inimizade, Achille Mbembe vaticina: “O racismo destemido e galhardo será doravante a nossa roupagem e, por causa dela, a rebelião surda contra a sociedade se tornará cada vez mais aberta e veemente”. Óbitos em portas de supermercados, abordagens policiais, operações nas favelas, fiscalização seletiva de jovens periféricos em praias de “bacanas” evidenciam o racismo redivivo contra negros na sociedade brasileira. O título do texto, na tela, é uma paráfrase reversa da autobiografia de Louis Althusser, O futuro dura muito tempo.

A lata de sardinha

A extinção do Ministério da Igualdade Racial (MIR) pelo governicho do golpista Michel Temer, confirmada no desgoverno neofascista de Jair Bolsonaro testemunha a investida do supremacismo na institucionalidade e no cotidiano, de um jeito desaforado e cruel. A mídia corporativa reduz a criação de pastas ministeriais às negociações entre governantes eleitos e partidos políticos, na busca de base parlamentar – Eureka! A conotação pejorativa avessa à política acompanha o noticiário sobre o troca-troca, rotulado de mercantilista e imoral. Para lembrar o conto As armas secretas, de Julio Cortázar: “É curioso acharem que abrir uma lata de sardinha é abrir até o infinito a mesma lata de sardinhas”. A carapuça cabe no loquaz Jornal Nacional.

O procedimento é posto sob suspeição e criminalizado para constranger os atores políticos e, em especial, agremiações de esquerda. Além de ignorar a proeminência simbólica do MIR e os efeitos deseducativos nas relações sociais pelo seu cancelamento, em uma nação com 350 anos de tradição escravagista, a mídia desconhece com soberba provinciana o funcionamento da democracia real nos Estados de direito democrático, no mundo. Seu olhar oblíquo e dissimulado confunde o céu e a terra no espelho embaçado, do forjado populismo lavajatista.

Os meios de comunicação enxergam na redução do número dos ministérios um feito virtuoso para reverenciar os “ajustes fiscais”. Sob o prisma de um “Estado mínimo”, a intenção de investir em equipamentos públicos significa despesas dispendiosas e ineficazes, por definição. A avaliação não obedece nenhum critério sociopolítico, mas contábil. Não importa que tire de pauta temas cruciais para uma governabilidade legítima, qual o antirracismo.

Com a elisão no organograma oficial do Estado de exceção, sobram para os pedidos de socorro às “Delegacias de Combate à Intolerância”, que englobam além do racismo os crimes de preconceito religioso e contra as pessoas com deficiência ou visibilidade trans. Os centros de atendimento para as garantias constitucionais dão suporte ao ativismo condensado no Dia Internacional da Síndrome de Down (21/03), no Dia Internacional de Combate à LGBTfobia (17/05), no Dia Internacional do Orgulho Gay (28/06) e, recentemente, no Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra (20/11). Sob o viés conservador, sequer uma delegacia “ecumênica” deveria existir para não inspirar novas demandas igualitárias e emancipatórias. A moda pega.

Ódio como política

O governador de São Paulo se nega a equipar a polícia militar com câmeras corporais para coibir a violência dos agentes, sob pretexto de que o custo seria caro para as receitas estaduais – não é o único a tergiversar. Age para contemplar a visão das “elites” brancas e racistas, ao afagar as ilusões do extremismo para quem o colonialismo (racismo, sexismo) compõe a natureza da brasilidade. Nas entrelinhas, lê-se que a sorte de negros e mulheres não concerne ao Estado apesar de a letalidade policial haver disparado, com o mandatário bolsonarista.

A posição do governador paulista contraria o parecer de especialistas e levantamentos estatísticos. Inscreve-se no contexto da necropolítica. A morte está no script dos servidores que atuam na ponta do “contrato social” (vida, segurança, propriedade). A sua função militarizada condiciona o habitus da aporofobia de cor. A propagação do medo é funcional para manter as comunidades sob cabresto. Celebra a truculência aos direitos humanos e os afetos tóxicos do neofascismo, para justificar a narrativa sobre as “classes perigosas”. Câmeras corporais qualificariam os boletins de ocorrência e melhorariam a imagem da corporação por reunir dados que, analisados, auxiliariam na programação de uma política abrangente, integradora e não discriminatória.

“As vítimas endêmicas da violência urbana são jovens negros e pobres das periferias, bem como mulheres. Genocídio do negro, feminicídio e etnocídio são as marcas de uma sociedade bélica, ainda que astuta o suficiente para se declarar respeitosa das diferenças e racialmente democrática. Há décadas a gestão da segurança pública aposta na militarização da vida e na estratégia da guerra. Quanto mais o Estado é violento, mais o quadro social se apresenta como de crise causada pela criminalidade e mais se autoriza o investimento em ações extralegais” (no limite, as milícias), frisa Edson Teles, no artigo “A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção”, em O ódio como política, livro organizado por Esther Solano.

Em Juiz de Fora (MG), a administração da prefeita Margarida Salomão projeta uma experiência de relevo para o PT (Partido dos Trabalhadores). Segundo informa a secretária de Segurança Urbana e Cidadania, Letícia Delgado, advogada, com doutoramento sobre o papel da municipalidade na segurança pública: “A violência policial é perversa, esgarça o Estado com a violência institucional. As premissas de intervenção passam pela pactuação social, a segurança cidadã, a observância das atribuições municipais e a construção e o fortalecimento da identidade da guarda municipal” (Fundação Perseu Abramo, 11/12/2023). Pesquisas acadêmicas ajudam uma práxis administrativa transparente, cidadã. Daí a agenda conectada sobre uma “segurança pública integrada”. A história estende a mão ao cotidiano, quando faz a integração de ações.

A desumanização

Enquanto discriminadores e discriminados não alcançarem o reconhecimento mútuo, não há chance de produzir uma conciliação. O extermínio de indígenas e o tráfico de escravos a partir da chegada dos europeus na ilha de Guanahani (1492, Bahamas) e Porto Seguro (1500, Bahia) deixou sequelas. O desprezo pelos sacrificados, objetiva e subjetivamente, é reproduzido pela racionalidade do capitalismo neoliberal. Sem cerimônia, os excluídos veem o eclipse de seu violado “direito a ter direitos” no circuito da produção. A definição de Claude Lefort, em A invenção democrática, de que a democracia é “um processo cumulativo de valores civilizatórios” rasga a gramática de mando e obediência do velho colonialismo, reiterada no neoliberalismo.

Se alguma vez houve um mundo unicolor, nunca mais se repetirá. O destino da humanidade está no pluralismo. “Uma das consequências dessa nova condição é a reativação, para muitos, da fantasia do aniquilamento”, alerta Achille Mbembe. A fantasia é compartilhada pela Ku Klux Klan (KKK, na sigla), a organização terrorista conhecida por perseguir e matar negros e – pouco comentado – judeus nos Estados Unidos. O devaneio eugenista é reatualizado pelo premiê israelense Benjamin Netanyahu, com bombardeios eternos sobre a Faixa de Gaza. A África do Sul acusa formalmente Israel de genocídio na Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia. O Brasil recrimina as práticas exterminadoras. A moral do Sul Global critica crimes que evocam o Massacre de Cholula (1519) na conquista espanhola do Império Asteca, por Hernán Cortés.

Para o pensador camaronês, na própria metafísica subjaz a concepção aniquiladora das políticas racialistas. Ao colocar o Ocidente no lugar do “Ser” e, metaforicamente, rebaixar o que está aquém ao patamar de um simples “ente”, Heidegger faz o universal ganhar o estatuto do colonizador. Seu comportamento põe em marcha ideais eurocêntricos na mensuração dos seres e das coisas. A onto-história perdoa a infâmia colonialista. A destruição do planeta e da humanidade é interpretada à luz da purificação pelo fogo, com o renascer do desejo ariano.

Em grupos primitivos, a antropofagia implica comer a carne de inimigos tombados na batalha, para introjetar sua coragem. Hoje, inimigos são estigmatizados e desumanizados como se não houvesse nada admirável e digno na alteridade, que nos convoca. A desfiguração e a invisibilização são indissociáveis da lógica contemporânea do ódio. O paroxismo racialista se repete em Porto Alegre onde, desconfortável com a aglomeração de motoboys à espera de serviço defronte ao seu prédio, em bairro de classe média, um homem branco atacou o entregador preto com faca. A Polícia Militar foi chamada e prendeu a vítima em vez de o agressor (ops).

O Brasil e a África

“A ideia do negro bárbaro é uma invenção europeia”, diz Aimé Césaire, em Discurso sobre o colonialismo, lançado originalmente na França em 1950 e tornado a bíblia dos anticolonialistas. Esse manifesto, citado por Frantz Fanon, foi a fonte de inspiração do movimento Panteras Negras. No Brasil, vivemos agora um “Estado em movimento” liderado pelo presidente Lula, que refundou o MIR (Ministério da Igualdade Racial) em janeiro de 2023. Os acordos nas áreas estratégicas da educação, cultura e memória recém assinados pela ministra Anielle Franco no 37° Encontro da União Africana, na Etiópia, enriquecem a alma lanhada da nação e reforçam a implementação da Lei 10.639 que trata do ensino da história e cultura africanas e afro-brasileiras. Não há futuro sem passado. O presente do país incuba ambos – hora da dialética.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS; ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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