O governo Trump se encerra nos EUA com um ato de violência antidemocrática que sintetiza um mandato marcado pelo extremismo político e pela polarização social. Depois de o presidente derrotado colocar o processo eleitoral sob suspeita e de insistir na hipótese de fraude nas urnas, o discurso para uma multidão em frente à Casa Branca incitou uma verdadeira barbárie promovida por supremacistas e extremistas culminando na invasão do Capitólio.
O presidente americano mobilizou seus apoiadores para uma reação que tinha como objetivo subverter o resultado das eleições para permanecer no poder de ilegal. Nas palavras de Joe Biden, “isso não foi um protesto, foi uma insurreição”. A clara tentativa de golpe não era completamente imprevisível, nos últimos anos parte significativa do Partido Republicano e Donald Trump apostaram no descrédito das instituições e na deslegitimação da democracia americana.
A escalada de violências políticas e policiais se agudizou com a crise e o caos provocados pela pandemia. A reação do movimento negro, de um lado, com o Black Lives Matter, e a contra-reação de supremacistas brancos, de outro lado, com grupos como o QAnon inflamaram o cenário político doméstico norte-americano. A derrota dos republicanos em alguns de seus redutos mais tradicionais, como a Geórgia, foi o estopim para o incêndio em Washington.
O episódio, sem precedentes na democracia contemporânea, remonta aos piores momentos da história dos EUA, como a fase de violências às vésperas da Guerra Civil no século XIX ou como o período de resistências contra a segregação racial no século XX.
Esse é o resultado de uma inflexão mais ampla, nos últimos anos o poder americano deixou de reconhecer os princípios éticos da democracia, dos direitos humanos e da paz como valores universais, o seu velho projeto messiânico de conversão dos povos à cultura ocidental como forma de manutenção de sua hegemonia foi sendo paulatinamente substituído por um projeto baseado no realismo ofensivo, na posição de força e no uso irrestrito da violência em defesa dos interesses do império.
A sustentação desse giro na política externa só foi possível alimentando o nacionalismo e o protecionismo. Na política interna a nova orientação estratégica se ancorou no revanchismo e na xenofobia de uma parcela do população marcada pelo ressentimento, pelo ódio e pelo desejo de restauração do velho sonho americano em crise.
Nesse cenário, a invasão do Congresso americano se inscreve na nova onda de neoconservadorismo e de neofascismo que assola as democracias liberais ao redor do mundo, ainda que parte desses grupos esteja sofrendo derrotas eleitorais nada indica que esses movimentos estejam próximo do seu fim. Pelo contrário, o mais provável é que sigam alimentando tensões e conflitos nos próximos anos, estressando governos eleitos e instituições democráticas.
No caso dos EUA, o evento assombrou também pelo despreparo da polícia local em dispersar a multidão, explicitando a diferença de tratamento entre manifestantes brancos e manifestações do movimento negro marcadas por um grau muito mais acentuado de violência policial. O estrago só não foi maior dada a inabilidade de Trump em articular sua tentativa de golpe ao apoio das Forças Armadas. Esses elementos demonstram como o “monopólio estatal legítimo do uso da força” é componente fundamental para se minimizar os riscos de desordem e atentados antidemocráticos.
Por todos esses motivos é impossível olhar os acontecimentos sem levar em conta o que tem acontecido no Brasil. Ao atrelar a política externa brasileira não apenas à estratégia do Estado americano, mas também aos interesses particulares do governo trumpista o país se reservou o papel menor de aliado de um Donald Trump em decadência.
Como se sabe, não só o presidente Bolsonaro foi dos últimos a reconhecer a vitória de Joe Biden, como no calor dos acontecimentos recentes Jair Bolsonaro se recusou a comentar o ocorrido afirmando: “vocês sabem que eu sou ligado ao Trump. Então vocês já sabem qual é a minha resposta”. Mais ainda, o presidente brasileiro reiterou, sem provas, a hipótese de fraude eleitoral nos EUA e ameaçou: “se tivermos voto eletrônico no Brasil em 2022, vai ser a mesma coisa”.
Essa declaração se inscreve no conjunto de crimes de responsabilidade e atentados perpetrados sistematicamente por Bolsonaro contra a democracia brasileira. Com um agravante, se nos EUA o golpe foi contido ou ao menos não foi amplificado pela falta de presença de militares e policiais, no Brasil a situação é bastante diferente nesse tópico. Como se sabe, Bolsonaro conta com o apoio de um “oligopólio público-privado ilegítimo do uso da força”, tendo entre seus apoiadores militares, policiais, milicianos e uma orda de autoritários. O que nos coloca diante de uma questão sensível, qual seja:
Quando cedo (2022?) ou tarde (2026?) Bolsonaro contestar o resultado das urnas, como já afirmou explicitamente que o fará, quando recusar sua derrota eleitoral e resistir a entregar a presidência, as Forças Armadas brasileiras não poderão agir em defesa da democracia, considerando que estão organicamente atreladas ao governo? As Polícias Militares estaduais quererão reagir em favor da democracia, dado que estão ideologicamente vinculadas ao bolsonarismo? Tudo bem temperado por milícias exigindo cédula de votação impressa, pois esse é o recibo que as permite comprovar o voto de cabresto nos candidatos indicados por essas máfias.
Não se deve subestimar quem ameaça submeter a democracia à violência. Por isso urge que os fardados se retirem desse governo e que os civis encarem a necessidade de impeachment desse presidente que já declarou que não pode fazer nada pelo Brasil.
Willian Nozaki é Professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).