O ex-diplomata e ex-agente secreto britânico Alastair Crooke publicou contundente artigo a partir da invasão da região de Kursk, na Rússia, por tropas da Ucrânia. (v. Brasil 247, “O modo ocidental de fazer guerra – controlar a narrativa supera a realidade”, 28/08/2024; originalmente publicado em inglês no site Strategic Culture, “The western way of war – owning the narrative trumps reality”, 26/08/2024).
Digo “a partir” porque a análise de Crooke vai muito além do fato em si, no campo de batalha. A partir deste, ele se dirige a outro campo de batalha, que alega ser mais importante do que o primeiro: o das narrativas criadas e impostas ao público leitor/espectador, em seus diferentes níveis, por governos e mídias .
Em primeiro lugar, caracterizemos o analista, pois Alastair Crooke não é um personagem qualquer. Hoje com 75 anos, Crooke nasceu na Irlanda. Trabalhou no sistema financeiro britânico, até entrar no serviço secreto do Reino Unido, MI6, onde permaneceu durante mais de 30 anos, sob a camuflagem de ser um diplomata. Atuou na Irlanda do Norte, África do Sul, Colômbia, Paquistão e Oriente Médio. Na sequência, tornou-se diplomata dentro da União Europeia. Entre suas funções desempenhou papel relevante conseguindo armas para os jihadistas lutarem contra os soviéticos no Afeganistão.
No Oriente Médio, como um dos enviados da União Europeia, atuou a partir da Embaixada Britânica em Tel Aviv, procurando estabelecer pontes entre grupos islâmicos, como o Hamas e o Hezbollah, e as forças israelenses, com quem, afirma-se, tinha bom relacionamento..
Depois de condecorado pelo governo britânico em 2004, com a medalha da Ordem de São Miguel e São Jorge, estabeleceu-se em Beirute. Fundou e dirige o site Conflicts Forum, onde defende esforços de aproximação entre o Mundo Islâmico e o Ocidente. Alega estar sendo censurado em plataformas como o Facebook e outras do Ocidente, sob acusação de “fazer o jogo” de Vladimir Putin, coisa que nega. Desconheço e não me cabe aqui discutir as motivações pessoais de sua labiríntica trajetória, de que citei apenas resumidíssimo resumo. Interessa a análise que faz da situação das duas guerras entre Rússia e Ucrânia, a do campo de batalha propriamente dito e a do mundo narrativo e de informação.
A principal tese subjacente no artigo de Crooke é a de que não foi a Ucrânia que invadiu Kursk, mas sim a OTAN através da Ucrânia. Esta tese rima com a de que a guerra da Ucrânia, do ponto de vista Ocidental, é uma “proxy war”, uma “guerra terceirizada” entre os Estados Unidos e seus aliados, e a Rússia. A outra tese é a de que o objetivo da invasão foi tanto o de avançar no terreno russo quanto – ou mais – o de criar um novo glóbulo narrativo que animasse uma contenda que vinha sendo perdida pelo Ocidente no campo simbólico.
A partir daqui desenvolvo meu próprio raciocínio, embora lastreado pelas informações mais amplas do que as minhas que constam no artigo de Crooke, que podem ser verificados pela leitura dele.
Desde sempre esta guerra teve um impulso a partir do governo dos Estados Unidos, da OTAN, de seus aliados geopolíticos (União Europeia, Reino Unido, Japão, os quatro outros países do grupo das Cinco Irmãs e mais alguns anexos) e da mídia cooptada ou conivente) no sentido de criarem uma narrativa pró-Ucrânia.
Devia-se apresentá-la não só como merecedora da vitória, como Davi contra Golias, mas como a vencedora, desde o início. Devia-se apresentar a Rússia como de joelhos diante das sanções econômicas, e Putin como à beira da queda política e pessoal (a mídia conivente inundou-se de matérias aludindo a doenças dele). A esmagadora maioria da mídia ocidental comprou e vendeu esta perspectiva, assim como comprara e vendera, no passado, a falsa tese das armas químicas de Saddam Hussein no Iraque.
Não funcionou. Apesar de alguns contratempos iniciais, a invasão consolidou o domínio russo sobre grandes áreas do Donbass. As sanções econômicas prejudicaram mais os tutelados europeus pela OTAN do que a própria Russia. Putin nem fraquejou, nem se abalou, nem caiu. Ao contrário, a pressão do Ocidente jogou-o nos braços da China, que o recebeu de bom grado, conseguindo, em troca, o apoio de um dos dois maiores arsenais de armas nucleares do planeta.
No campo de batalha a contra-ofensiva ucraniana de 2023 fracassou. Apesar do esforço titânico da mídia mainstream ocidental, propalando supostas vantagens ucranianas, estas se provavam cada vez mais irreais e inconsistentes. A confiança dos aliados ocidentais dos Estados Unidos e da OTAN começou a definhar. A pressão sobre a Rússia provou-se uma contra-bomba de efeito moral: inflação crescente na Europa, desindustrialização na Alemanha, preços da energia na estratosfera, com o corte do fornecimento russo, alimentos muito mais caros, fármacos e insumos agrícolas idem… recessão!
Os ataques de drones ucranianos contra alvos russos, incluindo Moscou, pareciam picadas de mosquito num elefante. Incomodavam, mas não furavam a pele do inimigo. Para reanimar o espírito guerreiro na mídia, nos aliados e na opinião pública belicista, era necessário um fato novo, inusitado. E ele veio: a surpreendente invasão de Kursk.
Pelo pouco que se pode saber numa guerra onde a informação precisa é escassa, nenhum objetivo militar de maior porte foi alcançado. Forças russas não se deslocaram do Donbass ucraniano para reforçar a defesa em Kursk. A central nuclear da região, que poderia ser um objetivo interessante, continua em poder dos russos. A capital regional, idem. Apesar de pego de surpresa, Putin não se abalou nem tremeu. E promete mais do que a recuperação do território ocupado: promete vingança.
No plano retórico, porém, a situação é outra. O combalido governo de Kiev demonstrou poder de iniciativa. Na mídia mainstream, a Rússia e Putin ficaram “acuados”. Criou-se uma onda favorável a reanimar a disposição de aliados já recalcitrantes em apoiar militar e financeiramente o ralo sem fundo que o governo de Kiev está cada vez mais parecendo ser.
Vai dar certo? Depende. Talvez um paralelo histórico nos ajude a decifrar hipotéticas respostas a esta pergunta. E aqui se ressalta uma outra dimensão do ataque em Kursk: a simbólica.
Kursk foi o terreno da batalha decisiva na Frente Leste da Segunda Guerra Mundial. Nela o conflito se decidiu, mais do que em Stalingrado, mais do que na Normandia.
A batalha durou do começo de julho ao fim de agosto de1943. Segundo vários especialistas, foi a maior batalha da história humana. Outros, mais modestos, a definem como uma das maiores batalhas. Todos, em todo caso, a descrevem como a maior batalha de blindados que já houve no mundo.
No total foram utilizados mais de dez mil blindados nela, sendo que metade deles foi danificada ou destruída. As perdas humanas passaram do milhão, tanto quanto pode se estimar, pois os dados são imprecisos, sobretudo do lado alemão, que maquiava seus números. As perdas soviéticas foram gigantescas, mas a vitória foi esmagadora.
O exército alemão teve a iniciativa. Kursk era o que militarmente se chama de um “saliente”: um enclave soviético em meio a um território tomado pelo inimigo. A ofensiva alemã tinha por objetivo aniquilar este enclave.
Politicamente, o objetivo de Hitler era parecido com o da OTAN/Kiev: retomar a ofensiva depois do fracasso de Stalingrado, demonstrar aos aliados que a Wehrmacht ainda era capaz de tomar a iniciativa, fossem esses aliados o Japão e a Itália, fossem seus simpatizantes nos territórios anexados, como a Áustria, ou ocupados, como na Croácia, na Romênia e na… Ucrânia, além de outros.
Nada deu certo. O enclave resistiu até a chegada de reforços. Os nazistas tiveram que recuar, e a partir daí, na Frente Leste, a iniciativa foi do Exército Vermelho, até a tomada de Berlim, quase dois anos depois.
Dois fatores externos ajudaram os soviéticos. Diante da hesitação de alguns de seus generais, Hitler decidiu retardar o ataque ao enclave. Também pesou na sua decisão o desejo de que os novos blindados fabricados na Alemanha, tecnicamente superiores aos antigos e aos soviéticos, chegassem à frente de batalha. Curiosamente esta superioridade técnica, que seria uma vantagem para os alemães, revelou-se contraproducente, assim como na frente da aviação. A mudança inovadora dos aparelhos dificultava a fabricação de peças de reposição. Enquanto isto, os soviéticos continuavam produzindo os mesmos tanques T-34 de sempre, com pequenas modificações, sobretudo na torre do canhão, dando-lhes maior versatilidade.
A segunda vantagem veio através dos aliados ocidentais. Ao mesmo tempo em que a Wehrmacht iniciava o ataque ao enclave soviético, aqueles, depois de baterem os alemães no norte da África, desembarcavam na Sicília, criando a Frente Sul na Europa. Hitler se viu forçado a ordenar o deslocamento de tropas da Frente Leste para a península italiana, enfraquecendo mais ainda o derrotado exército alemão diante do avanço soviético.
A batalha de Kursk, de 81anos atrás, lança uma sombra lúgubre sobre a iniciativa de Kiev. O paralelo é inequívoco, com as forças ucranianas portando, entre outros, armamento alemão, e com vários de seus militares decorando seus uniformes com penduricalhos nazistas.
Ao invés de colocar uma espada no peito de Putin, a invasão de Kursk pode ter posto um espinho no coração de patriotismo russo, o que pode ser fatal para Kiev.
PS – Desnecessário, mas pertinente lembrar que o autor destas linhas não nutre a menor simpatia por Putin, nem pela invasão da Ucrânia. Mas também não tem o menor entusiasmo por esta guerra estúpida, muito menos pela OTAN, nem por seu títere em Kiev a também não pelos neo-nazis que infestam as forças armadas ucranianas. Salvo em raríssimas ocasiões, e esta não é uma delas, uma mesa de negociação é sempre melhor do que um campo de batalha.
Flávio Aguiar é jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP.