Não se trata apenas de um projeto econômico que disputa o volume de recursos ou a prioridade conferidos ao SUS, mas sim, um projeto que ataca os princípios da universalidade e da solidariedade que o fundam.
A associação da pandemia de Covid-19 com a ascensão da extrema-direita no Brasil expôs dramaticamente a dimensão da crise contemporânea. O paradigma neoliberal é responsável direto pelos impasses da sociedade atual, incluindo o enfrentamento às endemias, epidemias e pandemias como as que vivenciamos. Esse modelo ameaça a democracia, os direitos sociais, o meio ambiente e as vidas humanas e não humanas.
O neoliberalismo autoritário promove o desmantelamento de políticas universais e redistributivas e também a desestabilização da democracia, impondo o princípio da concorrência como organizador da sociedade.
A Constituição de 1988 consagrou a saúde como um direito da cidadania e um dever do Estado. Mesmo nos primeiros anos neoliberais no Brasil, a luta por recursos e políticas adequadas para o Sistema Único de Saúde (SUS) se orientou por essa garantia constitucional. Entretanto, a realidade se alterou no período do neoliberalismo autoritário. Não se trata apenas de um projeto econômico que disputa o volume de recursos ou a prioridade conferidos ao SUS, mas sim, um projeto que ataca os princípios da universalidade e da solidariedade que o fundam.
Isso ocorre com a desestabilização, se não reversão, do processo de democratização que proporcionou o surgimento do SUS. De um lado, o Estado deixa de ser o local do interesse público e da soberania popular. Nesse cenário, a concorrência econômica é utilizada, independentemente das demandas sociais por saúde, educação e assistência social, como justificativa para que o Estado atue exclusivamente na proteção da chamada economia de mercado. De outro lado, as pessoas são incentivadas a se enxergarem enquanto sujeitos econômicos que devem competir uns com os outros, alimentando os ressentimentos, a cultura de ódio que invadiu o nosso debate público e a corrosão de valores cívicos como o de solidariedade.
Uma das consequências das transformações estimuladas pelo neoliberalismo é o esvaziamento da adesão a um sistema público e universal de saúde. Pior, a destruição de políticas igualitárias passa a ter legitimidade que não tinha no passado. Pelo princípio da concorrência, inoculado na sociedade por meio do aparato midiático e cultural sustentado pelo grande capital, o neoliberalismo determina que os cuidados em saúde deveriam ser uma responsabilidade individual e que o Estado apenas deveria garantir o ambiente econômico favorável para que os sujeitos possam individualmente buscar o que precisam.
A defesa de uma liberdade individual mercantil organiza a moral neoliberal de tal forma que a sua reivindicação é utilizada para se opor às perspectivas éticas da saúde pública vinculadas às ideias de justiça social, do secularismo e da existência de uma esfera coletiva de deliberação moral. Para além de transformar a saúde em mercadoria, na pandemia de Covid-19, o neoliberalismo autoritário articulou desresponsabilização estatal, negacionismo e sua noção de liberdade individual para enfrentar o sanitarismo brasileiro. Ao dizer que “eu prefiro morrer do que perder a liberdade” (sic), posicionando-se contra a adoção do passaporte vacinal, o ex-presidente Bolsonaro expressou essa moralidade neoliberal.
Com tudo isso, o neoliberalismo não evita, mas aprofunda as situações de crise, de precariedade, de insegurança e de rupturas do nosso tecido social, gerando incapacidade de enfrentar epidemias e pandemias que ameaçam a vida. Com todos os ataques sofridos, o SUS e os valores sanitaristas salvaram vidas durante a pandemia de Covid-19. O SUS foi peça central na proteção dos brasileiros na pandemia. E continua a salvar vidas todos os dias!
É a moralidade do SUS – e a sua robustez, com seus princípios de solidariedade, universalidade, integralidade e soberania popular — que permite construir novas formas de vida não neoliberais e sustentáveis. Diante da crise atual, a defesa do SUS significa a luta contra a barbárie neoliberal.
Ana Pimentel é médica, deputada federal (PT-MG) e vice-líder da bancada do partido na Câmara dos Deputados.
Publicado também no Le Monde Diplomatique – Brasil