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O tardio reconhecimento do protagonismo intelectual de Beatriz Nascimento | Débora Menezes Alcântara

 

Após quase três décadas de sua morte, a historiadora, ativista antirracista, feminista, poeta, roteirista, professora e pesquisadora Maria Beatriz Nascimento se tornou a primeira mulher negra brasileira a receber o título de doutora honoris causa post-mortem pelas Universidades Federal Fluminense (UFF) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nos dias 17 de março de 2022 e 28 de outubro de 2021, respetivamente.

Esse reconhecimento tardio da competência intelectual da pensadora negra, nascida em Aracaju, imigrante nordestina no Rio de Janeiro, pioneira na ressignificação do papel do quilombo no Brasil e uma das mais importantes militantes antirracistas do país merece um urgente exercício autocrítico do meio acadêmico e uma reflexão sobre quais tipos de referências e saberes esse espaço de produção de conhecimento procura privilegiar.

O título post-mortem dado à Beatriz Nascimento não apenas conota reparação, mas escancara, por outro lado, como a violência epistêmica se reproduz nas universidades brasileiras e pode culminar de forma trágica dentro e fora de seus contornos institucionais.

Esse título também não foi um fato ocasional. Foi, sim, fruto de uma trajetória coletiva de resistência, de gritos ecoados por sucessivas vozes que a violência epistêmica tentou calar, mas que em uníssono coro, brigaram (e ainda brigam) para que, a intelectuais como Beatriz, sejam instituídos os seus merecidos e devidos lugares.

A vasta pesquisa de Beatriz Nascimento sobre o quilombo, por exemplo, assumiu uma perspectiva inovadora, presente em muitos trabalhos publicados no circuito acadêmico sobre o tema, sem que os créditos lhe tenham sido devidamente atribuídos.

Acontece que os critérios oriundos da meritocracia epistemicida acadêmica estimulam vícios impregnantes sobre a deontologia da produção acadêmica e sobre os filtros no sistema de legitimação de publicações que excluem as vozes dos “não-titulados”. Beatriz Nascimento não teve a chance de se tornar mestre e doutora quando ainda estava viva.

No entanto, muito mais que diversos titulados, ela construiu na sua jornada acadêmica, cheia de percalços que qualquer mulher negra teria (e tem) numa sociedade lastreada pelo racismo patriarcal (termo que remete a nomeações de Lélia Gonzalez e Jurema Werneck), uma produção cuja proposta epistêmica é genuína e marcadora de um divisor de águas nos estudos sobre o quilombo no Brasil.

A maior parte dessa vasta investigação está resguardada no Arquivo Nacional, como fruto de uma luta de feministas negras e integrantes outros dos movimentos negros para que sua obra fosse reconhecida. Bethânia Nascimento Gomes, a filha de Beatriz, doou, em 1999, o acervo arquivístico da mãe, incluindo diversas anotações, correspondências trocadas com intelectuais contemporâneos, cadernos de campo e textos que ainda estavam em andamento. Tudo isso compõe o Fundo arquivístico Maria Beatriz Nascimento da Biblioteca do Arquivo Nacional, a qual foi batizada com o mesmo nome, como resultado de uma consulta pública.

Isso precisa ser anunciado, porque corresponde a uma simbologia muito importante: mesmo que ainda muito restritamente, o reconhecimento institucional não chega de forma genuína e gratuita, mas tem brechas escavadas justamente por essas vozes sucessivas, violentadas, mas insistentes e persistentes.

Outra simbologia que precisa também ser valorizada é a ação de Bethânia Nascimento Gomes apoiada e estimulada por outras mulheres alvos do silenciamento, na abertura dessas brechas: a filha representando gerações de mulheres pretas, na luta pela memória de outra mulher preta em espaços a elas ainda negados.

O silenciamento

A produção intelectual de Beatriz Nascimento, devido à sua potência, chegou a atravessar de alguma forma os filtros epistemicidas, tendo sido citada, ainda quando estava viva, por autores como Clóvis Moura (1992) e Carlos Hasenbalg ([1979] 2005). “Através de nossa amizade e longas conversas, Maria Beatriz Nascimento compartilhou comigo seu extenso conhecimento sobre o negro brasileiro. Sem a intermediação de livros, Maria Beatriz ensinou-me o significado existencial de ser negro e ser mulher no Brasil”, escreveu Hasenbalg no prefácio da primeira edição da publicação de sua tese de doutoramento, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (1979), defendida na Universidade da Califórnia, em 1978.

No entanto, a poderosa perspectiva da historiadora ainda não recebe a sua devida valorização que ultrapassasse meras referências de agradecimento.

Clóvis Moura incorporou em seus trabalhos observações sensíveis de Beatriz Nascimento, suscitadas em sua pesquisa de campo, a exemplo das características do Quilombo do Jabaquara, constituído já na fase final da abolição, em Santos (São Paulo). Esse quilombo, de acordo com Beatriz, foi formado, não como fruto de lutas genuinamente protagonizadas por homens escravizados através da fuga, mas como um agrupamento atrelado às peculiaridades da ideologia abolicionista. A autora mostrou, com esse caso, que o estudo sobre os agrupamentos que vieram a ser chamados de “quilombos” no Brasil se formaram em contingências complexas e mereciam um olhar atento.

E repetindo a prática das referências rasas a uma intelectual negra, Moura também deixa de demarcar de forma mais explícita e aprofundada as credenciais do protagonismo de Beatriz Nascimento.

Assim foi se adensando o dispositivo do “esquecimento”, até que fosse fissurado pelas vozes insistentes, persistentes e resistentes (entre elas, está em destaque a de Alex Ratts, autor de Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento); essas vozes alimentadas pela memória, pela ancoragem subversiva da ancestralidade; essas vozes que são capazes de ressuscitar os mortos e os colocar de volta, entre os vivos e sobreviventes, na arena das lutas pela (re)existência.

Mas antes de ser mobilizada da zona do esquecimento para a forma viva de sua vocalização através de gargantas outras, onde e como estaria Beatriz Nascimento se não tivesse sido interrompida, calada, assassinada?

As mortes de Beatriz

O dispositivo do silenciamento não somente se expressa na corrosão subjetiva das vocalizações, mas chega a se impor através da interrupção objetiva dos corpos portadores das vozes insubmissas e disruptivas.

Em 1995, um ano depois de ter iniciado mestrado em Comunicação na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação do professor Muniz Sodré, Beatriz foi interrompida pelo feminicídio, aos 52 anos, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, ao defender uma amiga de um companheiro violento. Sua morte trágica está entre as inumeráveis do feminicídio racista e faz parte da perpetuação da tragédia que acomete os corpos como os da intelectual: corpos femininos negros.

Esse episódio não pode ser visto como um fato isolado e desinteressado ao tema tratado até aqui. É, sim, um componente desse tal dispositivo genocida, que atravessa todos os espaços de sociabilidade montada a partir de colonialidades, às quais esse tal dispositivo serve. E os espaços de formação de conhecimento e interpretações do mundo (a Academia/Educação) são ambiências privilegiadas de reprodução do silenciamento seletivo, como bem examinou Sueli Carneiro (2005), através do epistemicídio.

Se nos circuitos acadêmicos hegemônicos havia diversas interposições racistas e patriarcais sobre a aparição de Beatriz Nascimento, nos espaços de mobilizações antirracistas e de proposições alternativas ao sistema vigente, ela representava um alvo privilegiado de uma outra face do dispositivo do silenciamento, desta vez, expressa pela Ditadura Militar.

Ao lado de Abdias Nascimento e outros expoentes dos movimentos negros no Brasil, Beatriz tornou-se um dos principais alvos de investigações e vigilância sobre as “associações” de militantes negros por parte do Serviço Nacional de Informação (SNI) da ditadura implantada com o golpe civil-militar de 1964.

A autora foi citada intensamente no relatório do SNI, sob o nome “Racismo Negro no Brasil”, expedido em 1978. Nos trechos referentes à Beatriz, no documento, há uma mostra de que a presença da autora em espaços de reunião acadêmica e militante estava sendo mapeada pela Ditadura. Beatriz Nascimento é identificada pelo SNI como uma militante “perigosa”, estimuladora de “posicionamentos ativos” e coletivos.

O corpo insubmisso e vocalizador de saberes disruptivos de Beatriz Nascimento foi interrompido pela misoginia e racismo; o legado de seu protagonismo intelectual e acadêmico, como a pioneira reconceitualização de quilombo, foi silenciado, pelo menos por um bom tempo, pelo racismo e patriarcado acadêmico. E a perseguição da tirania estatalizada, em uma de suas expressões históricas mais cruéis, tentou reprimir o pronunciamento de caminhos de libertação feitos pela intelectual negra, nordestina e migrante.

Beatriz vive

Já é uma lição explícita, para quem queira ver, que, a despeito das muitas mortes às quais são cotidianamente submetidos os insubordináveis à tirania, que a suas existências vivem na memória ancestral coletiva. Foi assim que Beatriz sobreviveu.

Não há dúvidas de que o título de doutora honoris causa dedicado à Beatriz Nascimento é um importante marco das lutas antirracistas e anti-misóginas mobilizadas por essa memória, esteio dos movimentos negros no Brasil.

Não é mera coincidência que após a instituição das políticas afirmativas conquistadas por essas lutas, na última década, crescem os estudos que buscam a obra de Beatriz como referência. Esses estudos vêm ganhando espaço nos ousados e disruptivos trabalhos de mestrado e doutorado, desafios assumidos, cada vez mais, por uma nova geração de pesquisadoras e pesquisadores, que pautam linhas de pesquisa de diversos núcleos acadêmicos feministas e de estudos etnicorraciais.

A “volta” aos trabalhos de Beatriz Nascimento já saem da fase de “esforço de reverência” a uma intelectual que merece ser lembrada para a concreta inserção do pensamento da historiadora nas modulações teóricas e empíricas das investigações acadêmicas.

Esse movimento anuncia o que tanto desejou o primeiro biógrafo e pesquisador de Beatriz, Alex Ratts em seu livro. Ratts denunciava o alijamento preconceituoso da bibliografia produzida por Beatriz e defendia o olhar atento sobre a produção intelectual dela.

Legado

Beatriz Nascimento protagonizou as fundações do Grupo de Trabalho André Rebouças, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 1974, assim como do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), em 1975. Os rastros de seus questionamentos feitos em diversos encontros, simpósios, conferências e outros eventos de cunho acadêmico compõem hoje caminhos investigativos dos estudos feministas e etnicorraciais.

Sem sombras de dúvidas, a investigação e reconstituição feitas por Beatriz Nascimento do “sentido” do que se convencionou “quilombo”, desde o empreendimento escravista colonial até o século XX, impactou profundamente, assim como o fez o quilombismo de Abdias Nascimento, nas ressemantizações desse conceito e cuja repercussão é crucial para a luta contemporânea que se autodenominou quilombola.

Beatriz Nascimento fez uma severa crítica à versão histórica contada a partir do olhar dos opressores, pontuando sempre que as documentações consultadas pelos escassos trabalhos realizados (até sua época) sobre os estabelecimentos humanos chamados quilombos eram basicamente produzidas pelos órgãos oficiais da repressão colonial e, depois, imperial, o que, para ela, são fontes de vieses integrantes da orquestração do racismo à brasileira.

Ela então empreendeu um longo e riquíssimo caminho de desconstruções desses vieses, imbuído de uma linguagem plural (desde uma linguagem acadêmica descolonizadora, à poética e fílmica, como o roteiro do documentário Ôrí, de 1989, dirigido por Raquel Gerber), tensionadora e subversiva da totalidade epistêmica erguida nos moldes “ilustrados”.

Em entrevista que compõe o documentário O negro da Senzala ao Soul, realizado pelo Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo, em 1977, Beatriz Nascimento resgata a afirmação do historiador José Honório Rodrigues, de que “a história do Brasil foi escrita por mãos brancas”, para defender uma história reescrita de um ponto de vista do próprio negro.

Beatriz Nascimento se graduou em História (1968-1972) e se especializou na UFRJ (1979-1981). Chegou a iniciar o mestrado em História na UFF e também em Comunicação na UFRJ.

Ela construiu um caminho sem volta na luta contra a tirania: a história do negro jamais poderá ser vista novamente como acontecimento limitado à história da fazenda ou da escravidão.

Mais do que isso, Beatriz Nascimento evidenciou o sujeito histórico negro como protagonista da história de luta pela libertação, de construção da liberdade (para além da liberdade liberal), eivada de significados e formas outras de viver e estar no mundo, que não a de matriz europeia. Os silenciamentos e deformações lideradas pela historiografia escrita por “mãos brancas” estão confrontados agora, de forma legítima, pela História protagonizada e ecoada por vozes negras, insubmissas.

Um pouco da obra de Beatriz Nascimento

Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso (revista Estudos Afro-Asiáticos); O conceito de quilombo e a resistência cultural negra (revista Afrodiáspora); Introdução ao conceito de quilombo (coletânea Negro e cultura no Brasil, 1987); O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: uma visão da história regional (Revista do Patrimônio – Iphan, em 1997).

A autora também publicou textos como Por uma história do homem negro, Revista de Cultura Vozes,1974; Negro e racismo, Revista de Cultura Vozes, 1974; A mulher negra no mercado de trabalho, Jornal Última Hora, 1976; Nossa democracia racial, Revista Isto É, 1977; Daquilo que se chama cultura, Jornal IDE, 1986; e A mulher negra e o amor, Jornal Maioria Falante, fevereiro – março – 1990.

 

Débora Menezes Alcântara é doutora em Ciência Política e pesquisadora do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cebrás), da UFMG.

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