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O “Triângulo das Bermudas” através do qual Cuba navega (II) | Roberto Regalado

Apresentação

No segundo artigo da série, Roberto Regalado, assinala a questão dos impasses da economia cubana. Analisa a política dos Estados Unidos em relação a Cuba como estratégia global do imperialismo. Trata dos conflitos políticos mundiais e dos ciclos de luta nacional e popular na América Latina.

Publicação original: https://www.alainet.org/es/articulo/211907

Tradução: Lucio Costa

Boa Leitura.

Alguns dos problemas de Cuba têm a ver com o que poderíamos ter feito e não fizemos, como o que podemos e não fazemos hoje, com nossos próprios recursos, por mais que sejam poucos. Roberto Regalado – 21/04/2021

Embora se comprometa permanentemente a redobrar seus esforços para isso, o socialismo cubano não aproveita todos os seus próprios recursos humanos e materiais para o desenvolvimento de suas forças produtivas. No primeiro artigo desta série, [1] o merecido reconhecimento foi dado a seus sucessos em pesquisa científica e desenvolvimento. Diferente é o resultado da produção agrícola, industrial e de outros setores da economia, a respeito do qual vem à mente a imagem de uma cozinha que funciona com o que aqui chamamos de “gás de rua”. Quando o “gás vai embora”, de repente, os queimadores se apagam. A economia cubana “fechou” repentinamente quando as relações comerciais, cooperação e colaboração com a União Soviética e outros membros do CAME cessaram, e novamente “fechou“, não tudo, mas uma grande parte dela, quando foram drasticamente reduzidas as relações com a Venezuela e outros membros da ALBA-TCP, e com outros países latino-americanos com governos de esquerda ou progressistas, por derrubada, derrota ou traição, conforme o caso, de oito desses dez governos, e a intensificação do cerco aos dois restantes.

As perguntas são: Cuba encontrará ajuda solidária em algum outro país ou grupo de países comparável ao que recebeu dessas duas fontes externas? Será que Cuba poderá desta vez criar sua própria “fábrica de biogás” para manter “seus fogões” acesos com independência, ou menos dependência, de fontes externas? Não seria razoável pensar que, se o bloqueio fosse levantado, os Estados Unidos poderiam ser nosso novo “principal fornecedor”, em virtude das relações econômicas e comerciais que se estabeleceriam, inclusive o turismo de massa?

A esquiva decolagem econômica de Cuba se deve a um conjunto de fatores, entre os quais se destacam: sua pequena massa territorial e escassez de recursos naturais; o subdesenvolvimento derivado do passado colonial e neocolonial; destruição causada por fenômenos meteorológicos; a injustiça e desigualdade da ordem econômica internacional; o colapso do bloco eurasiano do pós-guerra nucleado em torno da URSS; [2] a situação que atravessa a Revolução Bolivariana na Venezuela; a mudança do mapa político continental adverso à esquerda e ao progressismo; e, é claro, o impedimento mais prejudicial de todos, o bloqueio genocida unilateral e extraterritorial dos EUA.

Esses fatores, e outros que poderiam se somar, têm um elemento comum: Cuba não pode ignorá-los. Uma parte deles está fora de seu controle (por exemplo, sua pequena massa de terra), outra parte só pode ter uma solução de longo prazo (por exemplo, superar o subdesenvolvimento), e a terceira parte depende de sua interação com outros atores (por exemplo, normalizar as relações com o Estados Unidos). No entanto, nem todos os problemas de Cuba se enquadram nessas categorias. Há uma quarta categoria que abrange tanto o que poderíamos ter feito e não fizemos, e o que podemos fazer hoje e não fazer,

Entre 1960 e 1972, Cuba recebeu armas, petróleo e créditos da União Soviética para se defender das agressões, neutralizar os efeitos do bloqueio norte-americano e realizar seus primeiros exercícios de tentativa e erro com base no desenvolvimento econômico. De 1972 a 1985, Cuba manteve uma relação muito favorável com a URSS e outros membros do CAME. Ademais, entre 2004 y 2016, estabelece uma relação mutuamente vantajosa com a Venezuela — que foi decisiva para remontar o pior do período especial — e com outras nações latino-americanas governadas pela esquerda ou pelo progressismo, ao tempo que multiplicou e intensificou os intercâmbios comerciais com a República Popular da China. No entanto, não aproveitou nem a primeira nem a segunda dessas duas etapas para lançar as bases do desenvolvimento econômico e social em sua própria base.

Não é inconcebível que ocorra a cessação do bloqueio dos Estados Unidos a Cuba, se levarmos em conta que ocorreram dois processos de normalização das relações entre os dois países, um no governo de Gerald Ford (1974-1977) e a de James Carter (1977-1981), e a outra durante o segundo mandato de Barack Obama (2009-2013-2017). O levantamento do bloqueio pode ser a panaceia para os males da economia cubana? Esta pergunta nos obriga a nos colocarmos outras perguntas: pode o cumprimento dos objetivos históricos da Revolução Cubana depender de o governo dos Estados Unidos “decidir” ou “não decidir” levantar o bloqueio, seja por seu próprio interesse? pela pressão internacional ou pela combinação destes e/ou outros elementos? E se o bloqueio nunca cessar? Seria impossível para a Revolução Cubana cumprir seus objetivos? Ela seria forçada a desistir deles? A cessação do bloqueio implicaria o fim das tentativas de destruí-lo? Os Estados Unidos não continuam a hostilizar a China, com a qual estabeleceram relações diplomáticas em 1º de janeiro de 1979? Eles não continuam a perseguir a Rússia, que se tornou um país capitalista em 25 de dezembro de 1991? A melhora nas relações dos Estados Unidos com Cuba no governo Obama, e sua reversão pelo governo Trump, não indicam que a política daquele país em relação à nossa não necessariamente manterá uma linha estável?

Por todos os problemas levantados, é necessário estabelecer a diferença entre o nosso direito e o nosso dever de lutar contra o bloqueio, e as nossas expectativas sobre o que podemos e não devemos esperar do levantamento do bloqueio.

 O contexto regional da disputa Cuba-EUA

Para os Estados Unidos, a Revolução Cubana é, ao mesmo tempo, um obstáculo à sua ambição anexionista histórica, um desafio geopolítico na região que considera seu “quintal natural” e uma questão de política interna amplamente manipulada por organizações contrarrevolucionárias “cubano-americanas”, criada e promovida no interesse dos setores ultrarreacionários dos grupos de poder daquela nação. Esses três elementos desempenham papéis determinantes na política dos Estados Unidos em relação a Cuba em um sentido geral e, é claro, regem a posição dos Estados Unidos em qualquer processo de normalização das relações bilaterais já desenvolvido ou a desenvolver.

O triunfo da Revolução Cubana, em 1º de janeiro de 1959, tornou-se um obstáculo para a consolidação da dominação continental pelos Estados Unidos em um momento em que este país acreditava ter as condições ideais para isso. O desfecho da Segunda Guerra Mundial – em virtude da qual se tornou a principal potência imperialista do planeta – e a eclosão da Guerra Fria – utilizada para instaurar ditaduras militares e governos civis autoritários dóceis aos seus ditames – permitiram-lhe impor a sua hegemonia no mundo e no continente. Uma dessas ações, a derrubada do presidente Jacob Arbenz em 1954, que acabou com a Revolução da Guatemala de 1944, foi usada pelos Estados Unidos para impor à OEA o “direito de interferência” e suprimir o “princípio da não intervenção”, que havia sido incorporada em sua Carta sob a influência da então ainda recente criação da ONU. Foi o culminar de um longo e complicado processo de construção de um sistema de dominação continental, iniciado com a Primeira Conferência Internacional das Repúblicas Americanas em 1889-1890.

Nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, a expansão e consolidação do domínio dos Estados Unidos sobre a América Latina ocorreram mais rapidamente nas esferas política e militar do que na econômica. Isso porque a prioridade era reconstruir a capacidade produtiva de seus aliados no Velho Continente, em linha com a guerra fria e a “contenção do comunismo”. A exportação de capitais e mercadorias concentra-se nisso. Portanto, embora aproveite sua recém-descoberta supremacia mundial para estender e fortalecer seu domínio continental, os recursos disponíveis para esse esforço eram limitados.

Dois fatores abrem as portas para a penetração econômica dos Estados Unidos na América Latina no final dos anos 1950. Um é o avanço da reconstrução industrial da Europa Ocidental, que força os Estados Unidos a reorientar e diversificar suas relações econômicas internacionais. O outro é a queda da demanda mundial por produtos primários, que cresceu durante a guerra e no início do pós-guerra, que desfere o golpe final nos projetos de desenvolvimento que a América Latina empreendeu a partir da Primeira Guerra Mundial e se intensificou durante a grande Depressão. Conclui-se que, por um lado, os Estados Unidos já estão em condições de assumir plenamente o papel de potência neocolonial hegemônica na América Latina, deixada vaga pela Grã-Bretanha desde 1929, e, por outro, que as frustradas elites nativas estejam mais inclinadas a aceitar a nova penetração forânea.

Quando os Estados Unidos acreditaram ter superado todos os obstáculos que impediam a realização do sonho de seus “pais fundadores” de expandir seu domínio a todos os confins do continente, a Revolução Cubana surgiu como um obstáculo formidável para suas ambições. A demonstração de que um povo latino-americano e caribenho poderia escrever sua própria história foi o catalisador para um renovado aumento das lutas populares na região. A partir desse momento, as prioridades da política dos Estados Unidos para a América Latina seriam destruir o processo revolucionário cubano e aniquilar as forças políticas e sociais que em outros países iniciam uma nova etapa da luta popular.

O repertório dos Estados Unidos de ações de isolamento e bloqueio contra Cuba canalizadas pela OEA esgotou-se com relativa rapidez: em 1959 houve a “reafirmação do apoio coletivo à democracia representativa”; em 1960 a Declaração de San José; em 1962, a expulsão de Cuba do Sistema Interamericano; e em 1964 a ruptura coletiva das relações diplomáticas, consulares e comerciais. As ações da força são de dois tipos: ações destinadas a produzir uma derrubada imediata ou de curto prazo; ações de estrangulamento com o propósito de vingança (causar danos e sofrimento ao povo em retaliação à resistência) e como estratégia de destruição de longo prazo. O menu de ações para uma queda de curto prazo também se esgotou rapidamente. Foram os primeiros atos de sabotagem e terrorismo liderados por uma força-tarefa criada pela CIA em 1960; a invasão de Playa Girón em 1961; Operação Mangosta após a derrota de Girón; a colocação do mundo à beira de uma guerra nuclear durante a crise de outubro de 1962; e as gangues contrarrevolucionárias que operaram até sua erradicação no final da década de 1960. A estratégia de isolamento político, bloqueio econômico e comercial – não apenas bilateral, mas também extraterritorial –, e a fabricação de uma “dissidência”, é a que se mantém até o presente, constantemente ampliada e endurecida.

Em suma, quando no final da década de 1950 os Estados Unidos esperavam colher plenamente os benefícios de sua dominação neocolonial recém-estabelecida na América Latina e no Caribe, eles teriam que dedicar inesperadamente três décadas para: 1) tentar aniquilar a geração revolucionária latino-americana forjada no calor da Revolução Cubana; 2) desmantelar as alianças sociais e políticas construídas no período desenvolvimentista; e 3) lançar as bases para a reestruturação das sociedades e a reorganização dos Estados da região, com base na doutrina neoliberal. Essas foram as funções dos estados de “segurança nacional” que devastaram o subcontinente entre 1964 e 1989.

Os Estados Unidos sofreram uma nova frustração com duas crises terminais inter-relacionadas, que ocorreram entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, a saber, a do socialismo real no bloco eurasiano do pós-guerra, nucleado em torno da URSS e, da insurgência revolucionária na América Latina como meio de conquistar o poder do Estado através do que Gramsci chamou de “guerra de movimentos”. Por ambas as razões, os Estados Unidos “afiaram seus dentes” para … agora é a hora! Desta vez, receberam plenamente os benefícios de sua dominação continental e, para tanto, entre 1989 e 1993, desenvolveram um grande projeto de reestruturação do Sistema Interamericano. No entanto, o resultado foi contraproducente para eles, porque foram criadas condições sem precedentes para a reforma social progressista e/ou para a revolução mediante o que, em termos  gramscianos, seria a “guerra de posições”.

Apesar de que nas novas condições, nem a luta armada como meio de conquista do poder, nem a matriz soviética da simbiose partido-estado assumida pela Revolução Cubana para exercer o poder conquistado sejam referência dos projetos emergentes e processos reformadores  ou transformadores na América Latina, Cuba continua sendo o obstáculo mais formidável ao domínio dos Estados Unidos no subcontinente, não só por sua resiliência diante do bloqueio, mas também por sua capacidade de interagir, de forma mutuamente benéfica e solidária com novos projetos e processos políticos. Isso exerce uma influência decisiva na política dos Estados Unidos em relação a Cuba, incluindo tudo o que, explícita e/ou implicitamente, seus grupos de poder gostariam de “receber” em um processo de normalização das relações bilaterais.

O primeiro processo de normalização das relações em seu contexto regional

Em comparação com a década de 1960, antes do primeiro processo de normalização das relações entre os Estados Unidos e Cuba, a correlação de forças latino-americana mudou a favor da esquerda e do progressismo, em virtude do posicionamento dos governos do General Juan Velasco Alvarado em Peru (1968-1975), Coronel Omar Torrijos no Panamá (1968-1981), Presidente Salvador Allende no Chile (1970-1973) e Presidente Héctor Cámpora na Argentina (1973), [3] e das quatro nações então recentemente independentes do Caribe de língua inglesa: Barbados, Guiana, Jamaica e Trinidad e Tobago, que não só restabelecem as relações com Cuba em desrespeito à proibição imposta pela OEA em 1964, mas que também juntamente com México exigiam que essa proibição fosse suspensa. Além disso, para a mudança de atitude dos Estados Unidos em relação a Cuba contribuí o fato de que, após a aniquilação da guerrilha do Comandante Ernesto Che Guevara na Bolívia, assassinado em 9 de outubro de 1967, não houve aumento da luta armada até a tomada do poder pelas forças revolucionárias em Granada e na Nicarágua, em 13 de março e 19 de julho de 1979, respectivamente, e a consequente eclosão do chamado conflito centro-americano.

Elier Ramírez Cañedo lembra que em 12 de novembro de 1969, no final do primeiro ano de governo de Richard Nixon (1969-1973-1974), o Secretário de Estado, Henry Kissinger, disse ao Presidente: “um entendimento com Cuba sobre os sequestros não alteraria o status de nossas relações com o governo de Castro ”. [4] O motivo desse diálogo foi que a promoção da pirataria aérea como arma contra a Revolução Cubana se voltou contra os Estados Unidos, que precisavam negociar um acordo com o governo cubano para erradicar os sequestros de aviões e navios, mas Nixon resistiu. Por fim, o referido autor resume: “Em 15 de fevereiro de 1973, após muitos meses de negociações, os dois países assinaram, por meio da embaixada suíça em Havana, um ‘Memorando de Entendimento sobre sequestros aéreos e marítimos e outros delitos’”. [5]

No estertor do segundo governo Nixon – interrompido por sua renúncia como presidente em 9 de agosto de 1974 para evitar o impeachment por parte do Congresso -, Kissinger empreendeu “discretos movimentos de reaproximação com Cuba” para evitar que o governo dos Estados Unidos ficasse isolado na votação que, mais cedo ou mais tarde, seria realizada na OEA para levantar as sanções a Cuba de 1964. Através de intermediários, conversas secretas entre os emissários de Kissinger e os do governo cubano facilitaram que na XVI Reunião de Consulta da OEA, realizada em San José, Costa Rica, em 25 de julho de 1975, a diplomacia dos Estados Unidos não ficasse isolada: os Estados Unidos votaram, junto com outras 15 nações, uma resolução que permitia aos Estados membros pôr fim às sanções contra Cuba individualmente, se assim o desejassem, e estabelecer o tipo de relações que considerem apropriadas ”. [6] No entanto, duas ações de solidariedade de Cuba, nomeadamente, uma resolução a favor da independência de Porto Rico apresentada, em Agosto de 1975, perante o Comité das Nações Unidas, e a chegada de tropas cubanas a Angola em Novembro do mesmo ano, foram consideradas por Ford e Kissinger como impedimentos para continuar a normalização das relações.

Gerald Ford perdeu a eleição presidencial em 2 de novembro de 1976 para o candidato democrata James Carter. É assim que Ramírez Cañedo resume a essência do processo de normalização da relação durante o governo Carter:

Em 1977 foram negociados os problemas menos candentes nas relações bilaterais, mas a partir de 1978 o processo de “normalização” das relações começou a congelar e até retroceder, pois não seriam resolvidos os mais espinhosos problemas das relações entre Cuba e os Estados Unidos ao mesmo tempo que foi se impondo na administração democrata a ideia de condicionar o avanço do processo de normalização das relações à “moderação” do ativismo internacional de Cuba, onde quer que fossem afetados os interesses dos Estados Unidos no marco do conflito do Leste-Oeste, critério defendido pelo assessor para Assuntos de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski.

No entanto, apesar do congelamento do processo de “normalização” por parte da Administração Democrata, o diálogo e a cooperação em certas áreas continuaram até o final de 1980. Da mesma forma, os intercâmbios culturais, acadêmicos, científicos e esportivos continuariam. Por sua vez, as conversações secretas mais longas e contínuas entre os dois países aconteceram em 1978 (Nova York, Washington, Atlanta, Cuernavaca e Havana).

Em 1979 houve um impasse, sendo retomadas as discussões em janeiro, junho e setembro de 1980, todas realizadas em Havana. […]

Mas em 1979 as tensões nas relações bilaterais e no contexto internacional, marcadas pelo retorno a uma fase de maior confronto entre a URSS e os Estados Unidos, fizeram com que Carter assinasse uma nova diretriz presidencial sobre Cuba que substituiu a de março de 1977. Seria a Diretriz Presidencial – NSC-52, elaborada por Brzezinski e assinada pelo Presidente em 17 de outubro de 1979. Nela, quatro objetivos específicos foram delineados: 1. Reduzir e eventualmente remover as forças militares cubanas desdobradas no exterior; 2. Minar a ofensiva cubana pela liderança no Terceiro Mundo; 3. Fazer com que Cuba se refreie na questão de Porto Rico e, 4. Impedir a intensificação da presença soviética nas Forças Armadas cubanas. Como se vê, foi uma diretriz totalmente hostil a Cuba. O interessante é que apesar de sua existência, em 1980, em meio à crise migratória de Mariel, Carter voltou a usar a diplomacia secreta com Cuba e por meio de emissários que viajavam à ilha para manter conversas privadas com o Comandante em Chefe Fidel Castro fez a promessa de que se fosse reeleito nas eleições de novembro, nos primeiros meses do segundo mandato, avançaria como nunca na normalização das relações.[7]

Em outro de seus artigos, com grande acerto, Ramírez Cañedo conclui:

 […] ainda que Carter estivesse avaliando uma aproximação  diplomática com Cuba em caso de reeleição, isso seria acompanhado por uma ameaça militar à Ilha para proteger os interesses fundamentais dos Estados Unidos na região. Outro elemento para pensar com pouco otimismo sobre a possibilidade de um entendimento entre os Estados Unidos e Cuba, pois que reitera a política americana de “aperto” e da “cenoura” não havia rendido nenhum resultado com Cuba. [8]

Em apoio a esta conclusão de Ramírez Cañero, gostaria de acrescentar o seguinte:

Não creio que, se Cuba tivesse preenchido um “catálogo de boa conduta” ao “moderar sua solidariedade internacional”, o resultado do processo de normalização com o governo Carter teria sido diferente. Influenciado pela breve “onda moral” desencadeada pela publicação de The Pentagon Papers (1971), o escândalo Watergate (1972) e a revelação do papel do governo Nixon no golpe de setembro de 1973 no Chile, a plataforma de política para a América Latina da  administração Carter se baseava nos informes da Comissão Linowitz, publicados em 1974 e 1976, respectivamente. As recomendações mais relevantes contidas no relatório intitulado “As Américas em um mundo em mudança” ou “Relatório Linowitz  [9] eram: reconhecer a erosão da potência mundial dos Estados Unidos; abandonar a chamada relação especial com a América Latina; aderir à doutrina da não intervenção e adotar uma abordagem “global” nas relações com os países da região. O “Relatório Linowitz I” sugere aproveitar a estrutura institucional da OEA para promover o respeito aos direitos humanos e evitar conflitos inter-regionais ou mediá-los quando surgirem. Este relatório prossegue dizendo que “em relação ao futuro da OEA – incluindo sua estrutura, liderança e localização -, os Estados Unidos devem ser guiados principalmente por iniciativas e desejos latino-americanos”. [10]

Elaborado a pedido expresso de Carter, já na qualidade de presidente eleito, o relatório “Estados Unidos e América Latina: Próximos Passos “, mais conhecido como Relatório Linowitz II , [11] preconiza a conclusão urgente da negociação dos Tratados do Canal Panamá, faz várias recomendações sobre direitos humanos, convida o governo Carter a “reabrir um processo de normalização das relações com Cuba” [12] apela à redução das transferências de armas e à prevenção da proliferação nuclear na região; defende o prisma de “compreender a situação e as reivindicações latino-americanas”, e defende o estreitamento dos intercâmbios culturais entre os Estados Unidos e a América Latina. Com toda essa agenda, Carter mal conseguiu concluir a assinatura dos Tratados do Canal do Panamá.

Como resultado da ofensiva da “nova direita” contra o governo Carter, ainda que  os Tratados do Canal do Panamá tenham sido assinados em 7 de setembro de 1977, isso ocorreu com grande demora e com múltiplas imposições onerosas ao Panamá. Por sua vez, o processo de normalização das relações com Cuba foi revertido em 1979. Ao dito por Ramírez Cañedo sobre a Diretriz Presidencial – NSC-52, se poderia acrescentar que Carter ordenou a todos os órgãos do governo dos Estados Unidos que realizassem um amplo trabalho de análise das relações com Cuba para fechar as “brechas” ( loopholes) encontradas no bloqueio, que pudessem ser aproveitadas por Cuba, decisão que poderia até ser considerada antecedente das leis Torricelli e Helms-Burton.

A suposta “não intervenção” de Carter para defender o “interesse nacional” dos Estados Unidos nos conflitos armados em diferentes partes do planeta torna-se alvo dos ataques da “nova direita” e da “maioria moral” liderada por Reagan , a maior parte deles dirigidos contra Cuba, especialmente pela ajuda militar prestada à Etiópia a partir de 25 de novembro de 1977, e sua solidariedade com os governos de Granada e Nicarágua, e com as organizações revolucionárias da América Central.

Antes do abandono da política latino-americana preconizada pela Comissão de Linowitz, o governo Carter carecia de vontade de promover a defesa dos “direitos humanos” e a “democratização” na América Central, onde a repressão praticada pelas ditaduras militares da Nicarágua, El Salvador, Guatemala e Honduras agravam a crise política, econômica e social. A imobilidade de Carter chega ao ponto de não ter retirado o apoio à tirania Somoza quando sua crise terminal já era evidente. Em retrospecto, os quatro anos do único mandato presidencial de Carter foi um período em que os círculos de poder dos Estados Unidos se concederam  para “exorcizar” o demônio de Richard Nixon, após o que facilitam a entrada do demônio maior: Ronald Reagan. Na realidade, os primeiros dois anos do governo Carter foram suficientes para completar o exorcismo que, ademais, muito distou de ser exaustivo. 

Gregorio Selser assegura que a Carter lhe tocou cumprir duas tarefas incompatíveis entre si: por um lado, “no final de 1976 havia uma necessidade de se banhar em águas batismais, purificando os pecados comprovadas e de outros não tão bem conhecidos”, [13] ou seja, era preciso restaurar a credibilidade do sistema político americano e, por outro lado, era necessário recorrer à força para reafirmar a supremacia mundial dos Estados Unidos. Essa necessidade de projetar uma imagem de uma “pomba” e executar uma política de um “falcão” é o que move Selser a dizer que “a política externa de Carter se parecerá com a cara dupla de Janus, com Brzezinski agindo como um ” falcão “e o secretário de Estado Cyrus Vance, como a “pomba”. [14]

O governo Ronald Reagan impôs uma solução de força para as disputas sobre a direção estratégica que os Estados Unidos adotariam a partir da década de 1980. Em relação ao dilema sobre a adoção de uma política interna e externa conciliatória ou agressiva, Reagan manteve uma postura invariável de usando repressão e violência. Com Reagan, não haveria “equilíbrio de poder mundial”, como Kissinger havia proposto anos antes. Os aliados teriam que compartilhar os custos – mais do que os benefícios – da dominação mundial, enquanto a URSS seria até desafiada por seu direito de existir, então a doutrina da contenção do comunismo foi substituída pela doutrina da reversão do comunismo (roll back), e para desestabilizar e destruir estados e/ou governos “inimigos”, foi criada a Fundação Nacional para a Democracia. 

A contrapartida de extrema direita da proposta dos Relatórios Linowitz I e Linowitz II, que estabeleceram as diretrizes não cumpridas da política do governo Carter para a América Latina, foi o “Documento do Comitê de Santa Fé”, [15] que serviu de plataforma para a política latino-americana do governo Reagan. Este comitê pediu a destruição das revoluções de Cuba, Nicarágua e Granada; intensificar a guerra de contra insurgência em El Salvador, Guatemala e Colômbia; usar a luta contra o narcotráfico como pretexto para aumentar a presença militar dos Estados Unidos na América Latina; criminalizar a esquerda e implantar todo tipo de pressão para impor a reestruturação neoliberal.

Nesse contexto, o ex-general Alexander Haig, primeiro secretário de Estado de Reagan, acusou Cuba de ser “a fonte” do conflito centro-americano e ameaçou “ir à fonte”, isto é, com agressão militar direta. Para fomentar um “clima favorável” ao endurecimento extremo da politica de ameaça, hostilidade, isolamento e bloqueio a administração criou a mal chamada “Radio Marti” e “institucionalizou” o lobby  anticubano.[16] 

George W. Bush intensificou a pressão para promover a condenação de Cuba na Comissão de Direitos Humanos da ONU; criou a Comissão de Ajuda a uma Cuba Livre, presidida durante seu primeiro mandato pelo Secretário de Estado Collin Powell (que emitiu seu primeiro relatório em maio de 2004) e em seu segundo mandato pela Secretária de Estado Condolezza Rice (que emitiu um segundo relatório em julho 2006); suspende negociações sobre migração em 2004; impõe restrições extremas às viagens e ao envio de remessas a Cuba e à concessão de vistos a cidadãos cubanos. Sob pressão do lobby agrícola depois de ser atingida pelo furacão Michelle – a partir do qual ofereceu ajuda humanitária com a imposição de condições que foram rejeitadas por Cuba – a venda de alimentos para a Ilha foi aprovada com estritas restrições.

Nas três décadas seguintes, os sucessores de Reagan, George HW Bush (Republicano, 1989-1993), William Clinton (Democrata, 1993-1997-2001) e George W. Bush (Republicano, 2001-2004-2009), mantiveram a política de aumentar constantemente a política de hostilidade, isolamento político e bloqueio econômico contra Cuba.

Bush (pai) fez a primeira tentativa de aproveitar o colapso do bloco eurasiano do pós-guerra para sufocar a Revolução Cubana. Para tanto, buscou impor um status quo ao continente semelhante ao da década de 1960, quando Cuba foi excluída de todos os espaços multilaterais do continente e impôs uma ruptura coletiva das relações bilaterais com ele. Desde a adoção do “Compromisso de Santiago do Chile com a Democracia e a Renovação do Sistema Interamericano” (1991) e a aprovação do “Protocolo de Washington” (1992), até o estabelecimento da “cláusula democrática”, entendida como “cláusula capitalista”, Bush ergueu um cerco para excluir Cuba dos espaços multilaterais latino-americanos e caribenhos e, uma vez estabelecida aquela política que lembra a sanção de 1962, desencadeou uma campanha de pressão sobre os governos do continente para prejudicar e provocar a ruptura de suas relações bilaterais com Cuba, no espírito da sanção de 1964. Em essência Bush (pai), tentou fazer retroceder os ponteiros do relógio da história do isolamento político e do bloqueio econômico contra Cuba. Entre suas muitas ações para fechar as “brechas” do bloqueio, destaca-se a aprovação da Lei Torricelli, apoiada pelo candidato democrata à presidência William Clinton, seu adversário nas eleições de novembro de 1992.

Clinton aplicou a Lei Torricelli aprovada por Bush (pai) e, como seus predecessores, restringiu a imigração legal e incentivou a emigração ilegal como arma contra Cuba, neste caso, quando a ilha passava pelos piores momentos do período especial, que resultou na chamada crise dos balseros de 1994. Entre suas ações anticubanas, destaca-se a aprovação, em dezembro de 1996, da Lei Helms-Burton. Sem alterar a essência do bloqueio, mas para reforçar o uso da chamada Via II, ou seja, a via de erosão interna, solapamento e fissuramento, autorizou as trocas interpessoais e, em janeiro de 1999, anunciou a ampliação das categorias de pessoas autorizadas a receber remessas dos Estados Unidos, estabelecimento de novos pontos de origem e destino para voos fretados a Cuba, o aumento dos intercâmbios acadêmicos, científicos e desportivos, manifestou disposição de restabelecer o serviço postal, e devido à pressão do lobby agrícola, autorizou a venda de alimentos com restrições.

Para situar as políticas anticubanas de Bush (pai), Clinton e Bush (filho) no contexto continental, vamos nos referir à periodização de elementos predominantes que caracterizam a etapa da história da América Latina aberta entre 1989 e 1991:

  1. Entre 1989 e 1994, durante a presidência de Bush (pai) e os dois anos iniciais do primeiro mandato de Clinton, o elemento predominante da situação política na América Latina e no Caribe foi a reestruturação do sistema de dominação continental, a partir da imposição de da democracia neoliberal e dos mecanismos transnacionais de controle e sanção de “infrações“.
  2. Entre 1994 e 1998, durante os últimos dois anos do primeiro mandato e os primeiros dois anos do segundo mandato de Clinton, os elementos predominantes da situação política continental são dois processos paralelos: o agravamento da crise estrutural e funcional do capitalismo latino-americano, causada pela mudança qualitativa no sistema de dominação; e o aumento da luta dos movimentos sociais contra o neoliberalismo, uma parte importante dos quais se transformou em movimentos político-sociais.
  3. Entre 1998 e 2009, nos últimos dois anos da presidência Clinton e ao longo dos dois mandatos de Bush (Jr.), o elemento predominante da conjuntura política regional é a eleição de governos progressistas e de esquerda, que conseguem capitalizar os efeitos sociais e políticos da concentração da riqueza e aproveitar os espaços políticos formais da democracia burguesa.

NOTAS

[1]    Roberto Regalado: O “’Triângulo das Bermudas’ através do qual Cuba navega. Acúmulo de problemas próprios, dupla margem do bloqueio e refluxo da esquerda latino-americana ”(I),“ Proposta da hipótese ”, publicado originalmente em La Tizza , Havana, Cuba, como a primeira parte deste artigo (II) e publicado em https://democraciasocialista.org.br/o-triangulo-das-bermudas-atraves-do-qual-navega-cuba-i-roberto-regalado/

[2]     Em vez da alusão tradicional ao “bloco europeu” ou “bloco da Europa de Leste”, prefiro falar de “bloco euro-asiático” porque a URSS era uma união de repúblicas europeias e asiáticas, e porque, como aconteceu na ” bloco ”, o socialismo real também sucumbiu na Mongólia.

[3]    Héctor Cámpora renunciou à presidência para facilitar que Juan Domingo Perón fosse eleito para esse cargo em setembro de 1973.

[4]     Elier Ramírez Cañedo: “Ford, Kissinger e a normalização das relações com Cuba” (primeira parte), in alainet, 25/02/2011. (Consultado em 7-4-2021).

[5]     Ibid.

[6]     Ibid.

[7]     Elier Ramírez Cañedo: “Carter e suas diretrizes presidenciais sobre Cuba”, em internet@granma.cu , 18/10/2016. (Consultado em 7-4-2021).

[8]     Elier Ramírez Cañedo: “Fidel, Carter e as missões secretas de Paul Austin”, 11/12/2014. (Consultado em 7-4-2021).

[9]     Comissão sobre as Relações Estados Unidos – América Latina (Comissão Linowitz): As Américas em um Mundo em Mudança ( Relatório da Comissão sobre as Relações dos Estados Unidos com a América Latina ou Relatório Linowitz I ), Washington DC, outubro de 1974, nos Documentos No. 2 , Center for Studies on America, Havana, 1980.

[10]   Ibid .: p. 51

[11]   Comissão de Relações Estados Unidos – América Latina (Comissão Linowitz): “Os Estados Unidos e a América Latina: próximos passos” ( Segundo Relatório da Comissão de Relações dos Estados Unidos com a América Latina ou Relatório Linowitz II ), nos Documentos nº 2 , Center for Studies on America, Havana, 1980.

[12]   Com respeito a Cuba, o Relatório Linowitz II afirma: “[…] os representantes do governo devem indicar aos representantes cubanos que os Estados Unidos estão dispostos a levantar seu embargo sobre alimentos e medicamentos e entrar em negociações posteriores com Cuba sobre toda a gama de questões em disputa, desde que Cuba forneça garantias satisfatórias de que: (1) daria uma resposta pública imediata e apropriada (como a libertação de prisioneiros dos EUA; (2) suas tropas estão sendo retiradas de Angola e não participará de intervenções militares em qualquer lugar, e (3) respeitará os princípios de autodeterminação e não intervenção em todos os lugares, e explicitamente com respeito a Porto Rico ”.

[13]   Gregorio Selser: Reagan: Entre El Salvador e as Malvinas , Mex-Sur Editorial, México, 1982, p. 51

[14]   Ibidem: p. 41

[15]         O documento da Comissão de Santa Fé e Santa Fe I . Posteriormente, três outras versões foram produzidas: Santa Fe II, III e IV.

[16]         Para as opiniões do autor sobre como o governo Reagan “deslocou para a direita” os fiéis do equilíbrio da sociedade americana na década de 1980, ver Roberto Regalado: América Latina Entre Séculos: Dominação, Crise, Luta Social e Alternativas Políticas dos À esquerda (edição atualizada), Ocean Sur, Mexico, pp. 157-164.

  • Roberto Regalado (Havana, 1953): Cientista político, doutor em Ciências Filosóficas, professor associado de Ciências Políticas, licenciado em Jornalismo e professor de Inglês. Membro da Seção de Literatura Histórica e Social da Associação de Escritores da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba. Entre seus livros estão América Latina entre séculos: dominação da crise, luta social e alternativas políticas de esquerda (2006), Encontros e desentendimentos da esquerda latino-americana: uma visão do Fórum de São Paulo (2007), A esquerda latino-americana no governo: alternativa ou reciclagem? (2012), e Construindo a Integração Latino Americana e Caribenha (2012, em coautoria com Valter Pomar), bem como a compilação e edição das antologias Os governos de esquerda na América Latina (2018), O ciclo progressivo na América Latina (2019) e Experiências do ciclo progressivo na América Latina (2020).

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