RESUMO Integrante da Comissão da Verdade, a psicanalista Maria Rita Kehl traça paralelo entre a violência de Estado da ditadura (1964-85) e a da PM paulista, que alegou “resistência seguida de morte” após matar nove pessoas no dia 12. A justificativa, típica dos anos de chumbo, foi endossada pelo governador Alckmin.
Por Maria Rita Kehl, publicado originalmente na Folha de SP
“Quem não reagiu está vivo”, disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada.
Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.
“Resistência seguida de morte”: assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.
Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias – tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).
Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos “suicídios”.
Herzog
A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros “suicidados” sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o suicídio por enforcamento com “suspensão incompleta”, na expressão do legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.
Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imaginam que a suposta “mão de ferro” do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.
Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas – qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como polícias militares – compromete a segurança de todos os cidadãos.
Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar – frequentemente com mais de um tiro.
Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo “tribunal do crime” do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.
Aliás, o “tribunal do crime” acabara de inocentar o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura – ”resistência seguida de morte”, em versão atualizada: “Quem não reagiu está vivo”.
Camorra
Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de “resistência seguida de morte”, numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar.
Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou 495 pessoas em 2006.
Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folha de 13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da lei?
Assassinatos
A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil-militar.
Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça. Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.
Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles.
Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?
Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes?
Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.
“Chame o ladrão”, cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje “os homens” não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores “suspeitos” das favelas e das periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.
Pela culatra
Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela culatra. “Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar”, teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.
E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação – portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar.
O Estado, ao mentir, perde legitimidade – quem acredita nas “rigorosas apurações” do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho… O Estado mente – e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?
A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.
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