Marco Weissheimer – Carta Maior
Prática da democracia direta está em fase de implementação na capital da Venezuela. Experiência do OP em Porto Alegre serve como ponto de referência. O secretário geral do PT, Raul Pont, foi a Caracas falar sobre os fundamentos teóricos do OP. Em entrevista à Carta Maior, ele relata como anda esse processo.
Porto Alegre – A experiência do Orçamento Participativo (OP), desenvolvida por administrações petistas no Brasil, está em vias de ser implantada em Caracas. O secretário geral do PT, Raul Pont, esteve recentemente na Venezuela, a convite do governo de Caracas, onde participou de um seminário sobre o OP, com a presença de mais de 500 pessoas, na Universidade Bolivariana. Acompanhado por seu assessor e ex-coordenador do Gabinete de Orçamento e Finanças do governo Olívio Dutra, Ubiratan de Souza, Pont falou sobre a experiência de implantação do OP em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul, onde o instrumento de democracia participativa chegou a ser implementada em nível estadual. O ex-prefeito de Porto Alegre também teve uma audiência com o presidente Hugo Chávez, logo após participar de uma marcha popular de apoio à política externa venezuelana contra a ALCA e os presidentes Bush (EUA) e Fox (México).
Em entrevista à Carta Maior, Pont falou sobre o processo de implementação do OP na Venezuela e relatou alguns dos temas abordados em sua conversa com Chávez.
Carta Maior – Como nasceu essa conexão Porto Alegre-Caracas em torno do tema do Orçamento Participativo?
Raul Pont – Há algum tempo que temos uma relação com o tema da democracia participativa e do Orçamento Participativo, via o trabalho que desenvolvemos em nosso mandato na Assembléia e, antes disso, através do trabalho que fizemos na prefeitura de Porto Alegre e no governo Olívio Dutra. Pessoas encarregadas desta área no governo de Caracas, principalmente a “alcaldía” maior, governada por Juan Barreto, interessaram-se por essa experiência e nos convidaram para ir a Venezuela falar sobre ela (a Alcaldia de Caracas é composta por cinco municípios, sendo Caracas propriamente chamada de Alcaldia Maior). Ubiratan de Souza, que trabalha aqui comigo e foi coordenador dessa área de OP tanto na prefeitura quanto no governo estadual, já havia estado lá e feito algumas apresentações e discussões sobre o tema. Agora, desde o início de novembro, ele está lá, a convite da “alcaldia” para fazer um curso de formação para funcionários do governo e dirigentes comunitários de Caracas. Dentro desse curso, fui convidado para falar sobre o mesmo tema, de um ponto de vista mais teórico e programático.
CM – O OP já começou a ser implementado em Caracas?
RP – Ele está em fase de implementação. O trabalho neste momento é com a formação de pessoal e com a elaboração de um projeto para submeter às comunidades e às associações de moradores para avaliar o que as pessoas pensam, se concordam ou não, se acham que é por aí mesmo ou se tem que mudar alguma coisa. É claro que esse processo inicial já está sendo adequado à realidade local. A administração destes países da América espanhola é muito diferente da nossa. Na maioria das vezes são estados unitários, com uma única assembléia nacional. A divisão dos estados não é típica de uma república federativa como a nossa. A deputação regionalizada, quando existe, tem poderes delegados e não poderes constituintes próprios. A competência dos municípios também é distinta, o mesmo acontecendo com sua autonomia tributária e financeira. Então, não para pensar numa transferência automática de modelos e experiências, como se fosse uma receita de bolo. O trabalho que está sendo feito agora é fundamentalmente um trabalho de adequação.
CM – Como tem sido a recepção à idéia geral do Orçamento Participativo?
RP – A aceitação tem sido muito grande, porque esse é um dos princípios fundamentais que vem sendo defendido pelo governo Chávez. Todos os discursos e pronunciamentos do presidente Chávez que ouvi enquanto estive lá, insistem muito no tema da democracia participativa, da democracia direta, da “democracia protagônica”, como ele chama. Uma democracia onde o cidadão seja efetivamente protagonista do dia-a-dia do governo. O discurso dele está muito marcado por essa idéia de protagonismo direto da população. Isso aparece também no programa de televisão Alô, Presidente, que vai ao ar todos os domingos e onde as pessoas são chamadas a se manifestar sobre questões de governo. Os temas que aparecem no programa, muitos deles trazidos pela própria população, são os mais variados: economia solidária, crédito cooperativo, formação de cooperativas, ações de produção coletiva, ocupação de fábricas falidas e estímulo à produção agrícola, fator que se tornou um fator fundamental e estratégico para a soberania do país.
CM – Como essas políticas têm influenciado a vida do país?
RP – A Venezuela é um país que sempre viveu muito da importação, apresentando carência nas coisas mais elementares e básicas como é o caso da produção de alimentos. Os recursos oriundos do petróleo sempre foram a principal fonte de renda do país. É um país, portanto, que foi jogado em uma divisão internacional do trabalho totalmente absurda, apresentando carência na produção de leite e de água, por exemplo. A água engarrafada custa mais caro que a gasolina. Isso dá uma idéia das distorções de um modelo econômico submisso e subserviente, que fez com que uma tecnocracia degenerada e corrupta, junto com uma burguesia completamente parasitária, transformassem a mina de ouro que era o petróleo em um fator de enriquecimento próprio, de enriquecimento de um número pequeno de famílias. Esse grupo acabou se apropriando do Estado e renegando o resto da população, empurrando-a para a marginalização e a exclusão. A reversão desse quadro não poderá ser feita exclusivamente pelo Estado.
CM – De que forma é possível superar os limites do Estado no enfrentamento desses problemas?
RP – O Estado tem que ser hoje um proporcionador de autonomias. Há todo um debate sobre a reorganização das “alcaldias”, sobre as competências de cada instância. Esse debate está sendo feito com administradores públicos, lideranças comunitárias, dirigentes políticos, parlamentares, dirigentes do Movimento Quinta República (partido de Chávez), do Partido Pátria para Todos, do “Podemos” (outra força política que compõe o bloco que sustenta o governo Chávez). Em um curto espaço de tempo o país sofreu um choque, uma reformulação profunda. A reação a esse processo de mudanças teve seu ponto alto na tentativa frustrada de golpe, derrotada pela contra-ofensiva popular. De lá para cá, houve um avanço muito sólido do movimento Quinta República, um avanço eleitoral e administrativo. E o governo prevê uma grande vitória nas eleições legislativas de dezembro. O que é evidente é que o país está vivendo um processo de profunda transformação.
CM – Qual a intensidade e o sentido desse processo de transformação?
RP – Há muitos problemas herdados que não foram ainda tocados. Os fundamentos capitalistas da sociedade venezuelana permanecem e nem o governo Chávez está se propondo a uma ruptura total com tais fundamentos. Ele insiste muito com a manutenção da iniciativa privada e das empresas, mas, simultaneamente, insiste muito no caráter social da propriedade. Diz que não vai transigir sobre esse ponto. Ele quer que os mais ricos ganhem menos e que o incentivo a outras atividades pelo Estado permita que a imensa maioria da população ganhe mais. Esse é um discurso muito presente em sua fala. Chávez diz que o caminho da Venezuela é o socialismo, mas que isso é um caminho longo e difícil. Além disso, em todas as oportunidades de que dispõe, faz a defesa pública da integração do país no Mercosul, insistindo muito na necessidade de uma unidade latino-americana. Para ele, é preciso fortalecer um eixo estratégico entre Caracas-Brasília-Buenos Aires e Montevidéu. Aí estaria o eixo de sustentação de uma nova América.
CM – Esse seria, segundo ele, o eixo fundamental para a construção da ALBA, como alternativa à ALCA…
RP – Chávez defende que a proposta de criação da ALBA (Aliança Bolivariana da América), que ele propõe, neste momento passa pelo Mercosul. Por isso, o governo venezuelano está totalmente comprometido em ajudar os quatro países do Cone Sul a fortalecer a integração sul-americana. O inimigo é Bush, não cansa de dizer Chávez. Ele e seus “asseclas” na região, como o presidente do México, Vicente Fox. Uma das teses estratégicas defendida por Chávez é que há, desde o início da colonização da América Latina, o surgimento de uma leva de revolucionários que faz avançar o processo de emancipação dos povos do continente. E que há uma linha de continuidade entre esses movimentos e lutas, uma linha que liga nomes como Simon Bolívar, Pancho Villa, Emiliano Zapata, Che Guevara. A idéia central dessa tese é a unidade dos povos latino-americanos contra os governos títeres e aliados do imperialismo e contra o imperialismo.
CM – Qual sua avaliação sobre a articulação política interna do governo Chávez para levar esses projetos adiante?
RP – Conversando com William Lara, secretário de organização do Movimento Quinta República, ele reconheceu que ainda sofrem de grandes debilidades. O Movimento Quinta República, segundo ele, é espetacular para mobilizar a ganhar eleições, mas para funcionar organicamente e para governar tem problemas sérios. Eles querem aprender e por isso valorizam muito a troca de experiências. Sabem que precisam estabelecer um outro tipo de relação em um grau superior de qualidade e funcionamento. Por enquanto, há um predomínio do movimentismo, que vem sobrevivendo, crescendo e ganhando eleições. É um processo que guarda semelhanças com o que ocorreu com o PT: um grande Ascenso popular e, no momento em que se chega ao governo, é preciso começar a resolver um monte de problemas. O país só é auto-suficiente em petróleo. Trata-se de um país a construir, portanto. E isso passa por ter governos eficientes. A máquina pública venezuelana sofreu um processo corrosivo muito grande, sendo afetada pela cultura do clientelismo e do patrimonialismo. Não se rompe com isso só na vontade, no grito, só pelo movimentismo. Lara disse que eles têm consciência desses limites e estão trabalhando para superá-los.