As políticas para as mulheres no Brasil devem ser debatidas à luz dos acúmulos de análises e propostas do movimento feminista, que questionam a dicotomia entre as esferas pública e privada. A sociedade capitalista e patriarcal aprofunda a separação destas esferas, destinando as mulheres prioritariamente ao mundo privado, enquanto o espaço público, da política e da produção é prioritariamente um espaço masculino. As relações sociais de sexo têm uma base material, que não será superada apenas com mudanças no plano simbólico, do discurso ou da cultura política. Por isso, a ampliação da presença de mulheres nos espaços públicos e de poder não significa, automaticamente, uma mudança qualitativa destes, no sentido de que eles rompam com a desigualdade e construam referenciais baseados na igualdade.
Ao formular propostas para o Estado, setores do movimento de mulheres têm apontado a necessidade de se criar organismos executivos de políticas para as mulheres. O alcance desta proposta vai além dos conselhos, que na realidade cumprem o papel do Estado na mediação deste com o movimento social.
A criação da Secretaria de Politicas para as Mulheres (SPM), no governo Lula, foi uma vitória e significou um avanço na concepção de que a ausência de políticas para mulheres significa a conivencia do Estado com a desigualdade. Nas últimas semanas, veículos da grande imprensa (como o jornal O Globo) circularam rumores de que o governo estuda reunir as secretarias de mulheres, de promoção da igualdade racial e de juventude dentro de um ministério de direitos humanos. O próprio debate é colocado de forma enviesada e parte dos mesmos setores que atacam as iniciativas da SPM no combate ao machismo, como no caso da crítica à publicidade da Hope.
Esses rumores se dão ao mesmo tempo em que cerca de 250 mil mulheres participam do processo da 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Nas etapas municipais e estaduais foram aprovadas propostas que reforçam a centralidade da criação e fortalecimento de organismos específicos de políticas para as mulheres nos poderes executivos.
Estas políticas não podem ser limitadas à garantia dos direitos humanos, porque a desigualdade a que estamos submetidas é estrutural e são necessárias políticas que revertam esta situação. Um exemplo são as políticas para garantir a autonomia econômica das mulheres. Estas passam por políticas específicas de formação e capacitação, mas também por uma ampla articulação com os Ministérios, como o da Educação para a ampliação de vagas em creches públicas, ou o do Trabalho e Emprego que deve incorporar a perspectiva de igualdade para não impulsionar políticas focadas na geração de empregos ocupados majoritariamente por homens, enquanto para as mulheres sobra o trabalho doméstico, em postos precários, ou a prostituição no entorno de grandes obras. Poderiam ser listadas aqui outras tantas áreas em que há necessidade de articulação de políticas de igualdade, como na cultura, no desenvolvimento social e no meio ambiente.
A institucionalização das políticas de igualdade está avançando nos últimos anos, e deve ser aprofundada e ampliada. Qualquer alteração no status da SPM que signifique em alguma medida um rebaixamento e a diminuição de sua capacidade de articulação e execução será, portanto, um retrocesso no Brasil. Ainda mais se consideramos as iniciativas que conformam a atual ofensiva conservadora e misógina contra os direitos das mulheres, por exemplo, a partir da criminalização das mulheres relacionada ao aborto e a intensificação da mercantilização dos nossos corpos e vidas.
Frente às desigualdades estruturais e aos desafios conjunturais, o Estado não pode ser neutro. Ao contrário, deve ter um lado, assumindo o compromisso com a liberdade e a igualdade.
A eleição da primeira mulher presidenta do país gerou um conjunto de expectativas de que as políticas para as mulheres teriam um lugar privilegiado neste governo. Mas o alcance desta eleição pode ser mais que um simbolismo ou que uma mudança na cultura de representação política. Os próximos anos podem e devem ser marcados por alterações concretas na vida das mulheres, fortalecendo a perspectiva de um projeto político que erradique a pobreza extrema ao mesmo tempo em que combata realmente todas as formas de desigualdade e opressão.
* Tica Moreno é militante da Democracia Socialista e integrante da coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.