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“Os sentidos do lulismo”: Quem somos e para onde vamos? (IV)

624308Quarta parte da resenha do livro “Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador”, de André Singer. Para ler a primeira parte clique aqui. Para ler a segunda parte clique aqui e a terceira aqui.

Por Juarez Guimarães, na Teoria e Debate *

Os Sentidos do Lulismo e a formação do cidadão socialista

Um dos temas centrais do argumento de Os Sentidos do Lulismo, de André Singer, é a problematização, a partir de um ponto de vista socialista, de qual será o resultado histórico de um vasto processo de inclusão de dezenas de milhões de brasileiros no mercado de consumo e de trabalho sem a formação paralela ou expressiva de uma consciência e de uma cultura socialistas. Se, no campo do PT, a chamada por ele de “alma do Sion”, que revelaria a identidade socialista histórica do partido, encontra-se amortecida pelo “espírito do Anhembi”, no qual foi aprovada a famosa “Carta ao Povo brasileiro”, expressando os compromissos do primeiro governo Lula com a manutenção dos paradigmas de regulação da ordem capitalista, a dinâmica mercantil de inclusão e de promessas de ascensão social apontaria para uma possível e progressiva acomodação do povo brasileiro aos limites de um capitalismo reformado.

André Singer é muito cioso de apontar os limites de consciência popular expressos no processo histórico em curso. Em primeiro lugar, são setores populares em geral com baixa tradição associativa e de experiência de lutas em movimentos sociais. Em segundo lugar, há uma novidade importante na propagação de religião e seitas evangélicas que alimentam uma “ética do sucesso e do enriquecimento”, para retomar os termos da análise clássica de Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Em terceiro lugar, os valores de civilização dominantes nos meios de comunicação de massa são claramente aderentes à lógica do individualismo competitivo e possessivo.

Entre a densidade socialista em baixa da cultura do PT e esse novo dinamismo do mercado capitalista de massas no Brasil circularia, então, a imaginação de um New Deal à brasileira, isto é, de uma democratização da sociedade competitiva de classes sem questionamento de seus fundamentos capitalistas.

A corroborar essa avaliação problemática da formação de uma cultura socialista na experiência histórica do lulismo estão as pesquisas que medem a “posição no espectro ideológico dos brasileiros entre 1989-2010”. Enquanto os que se posicionam “à esquerda” nesse período oscilam em torno de 20%, os que se veem “ao centro” oscilam em torno de 19% e os que se posicionam “à direita”  marcam em torno de 37%. Em todos os institutos  pesquisadores – Datafolha, Fundação Perseu Abramo, Criterium –, os resultados apontam sempre uma predominância entre os que se posicionariam “à direita” no espectro ideológico. A identificação do PT por parte de seus apoiadores teria variado de 50% como “esquerda”, 6% como “centro” e 20% como “direita” em 2002 (Criterium) para, respectivamente, 32%, 16% e 35%, em 2010 (Datafolha). Mesmo levando em consideração que tais posicionamentos são, em uma medida importante, influenciados pelo entendimento precário ou mesmo equivocado do que significa “esquerda” ou “direita” por parte de setores populares, eles indicariam, no mínimo, a dificuldade da construção crescente de uma clara autoidentidade socialista por parte dos setores populares.

Um problema na história

Quem é o povo brasileiro? Qual a singularidade que resulta de sua particular formação social? Para onde caminha o processo de construção de sua identidade?

Essas são perguntas fundamentais que alimentaram os grandes clássicos da formação do pensamento brasileiro, os melhores intérpretes de cultura do Brasil, seus próprios criadores. Não é o caso aqui, nem seria possível neste espaço, retomar esse riquíssimo e complexo debate que fundamenta como enigma a imaginação brasileira das várias gerações.

Mas há, por parte de alguns deles, uma percepção que é muito importante para nossa reflexão aqui. Ao imaginar o brasileiro como “um herói sem caráter”, mestiço e sincrético, Mário de Andrade estava a nos dizer que, no fundo, o brasileiro ainda não havia constituído uma identidade estável e definitiva na formação de sua cultura. Não se trataria de perguntar o “que é o povo brasileiro”, mas mais propriamente o que ele “está sendo”, a partir de suas origens e em uma história inacabada. Antonio Candido, em uma luminosa comparação contrastante com o processo de formação do povo norte-americano, afirmou certa vez que a origem não havia fornecido um sinal de identidade ao povo brasileiro e que esta, em um complexo e inacabado processo histórico, ainda era um vir a ser. Isto é, a formação de nossa identidade era um processo histórico em aberto. Darcy Ribeiro, em suas utopias do povo brasileiro, como formador de uma  civilização multiétnica, generosa e democrática, trabalha também na mesma linha de que o povo brasileiro não é ainda mas é um pode vir a ser.

Retomando esse método de interpretação, trata-se hoje de compreender que o povo brasileiro e suas classes trabalhadoras não são mas estão vivendo momentos históricos decisivos de seu vir a ser. Esta é, por excelência, uma época de transição de consciências. Juízos não podem ser categóricos sem ser simplificadores. Por isso, os argumentos muito inteligentes de André Singer devem ser tomados como problematizadores de uma expectativa ingênua de que toda mudança social progressiva leva à consciência socialista.

Do nosso ponto de vista, essa consciência crítica da formação de uma consciência socialista no Brasil dos tempos do lulismo deve ser equilibrada também por uma consciência crítica dos impasses históricos da formação de uma consciência liberal de massas no Brasil, isto é, de uma consciência que sedimenta articuladamente valores capitalistas em sua visão de mundo.

O liberalismo aqui – como bem demonstrou Luiz Werneck Vianna em seu clássico, Liberalismo e Sindicato no Brasil, não formou historicamente uma cultura fordista como nos EUA do pré-guerra e em países europeus do pós-guerra. Produção e consumo de massas, individualismo possessivo e horizontes liberais não foram aqui produzidos por um partido liberal em uma experiência histórica de inclusão das classes trabalhadoras. Atrofiado historicamente desde sempre diante da questão social – e sua expressão regional, a questão nordestina –, o liberalismo brasileiro sempre muito cioso de seus ares do mundo também nunca enfrentou a questão nacional. Essa dupla falta – na questão social e na questão nacional – interditou historicamente, como nos ensinou Florestan Fernandes em A Revolução Burguesa no Brasil, a alma democrática do liberalismo brasileiro, empurrando-o para as formas autocráticas de poder.  Parafraseando Marx de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “liberdade, igualdade e fraternidade” acabaram sendo para a porção dominante do liberalismo brasileiro, que foi decisiva na construção do golpe civil-militar de 1964, “infantaria, cavalaria e artilharia” contra os pobres e os trabalhadores.

Problematicidade de uma cultura socialista classista clássica, problematicidade de uma cultura liberal hegemônica: como compreender o vir a ser do povo brasileiro?

Cinco mediações republicanas

Em nossos estudos sobre a cultura e o pensamento brasileiros, que se iniciaram de forma mais sistemática desde meados dos anos 1990, temos formulado que a anima do atual grande ciclo histórico de organização, lutas e conquistas dos trabalhadores e do povo brasileiro alimenta-se de, pelo menos, cinco tradições antiliberais e de sentido geral republicano.

A primeira delas é o nacional-desenvolvimentismo, exemplarmente expressado na vida e na obra de Celso Furtado, que contribuiu decisivamente para formar a nossa autoconfiança nas possibilidades construtivas da nação democrática, um certo sentido de desenvolvimento a partir da superação do subdesenvolvimento histórico e estrutural.

A segunda é o cristianismo social que se formou desde os anos 1950, a partir da magnífica trajetória e obra de dom Helder Câmara, passando pela notável obra libertária de Paulo Freire, até se expressar na linguagem muito alta da Teologia da Libertação, com Leonardo Boff, as militâncias proféticas de tantas lideranças como dom Pedro Casaldáliga, dom Paulo Evaristo Arns e dom Tomás Balduino, e as comunidades eclesiais de base. Apesar de perseguido pela cúpula conservadora da Igreja Católica nas décadas recentes, esse cristianismo continua a soprar com muita força nas bases em movimento da sociedade brasileira.

A terceira tradição é o socialismo democrático, reconhecida por André Singer, na “ala do Sion” do Partido dos Trabalhadores, que alimenta um sem-número de movimentos classistas e populares, em seu pluralismo de tradições, incluindo aí aquelas correntes e partidos em processo de ruptura com a tradição stalinista que formou o principal partido da esquerda brasileira no pré-1964.

A quarta seria representada por “liberais republicanos” ou “liberais cívicos”, isto é, que se nomeiam liberais mas críticos e em pugna permanente com os liberalismos realmente existentes no Brasil, em seus economicismos, em seus sentidos antipopulares e refratários a uma cultura de direitos humanos e democráticos. Um exemplo magnífico dessa tradição é o grande pensador e lutador pelas liberdades democráticas Raymundo Faoro, o principal jurista brasileiro da segunda metade do século 20.

A quinta seria aquela representada pelo povo brasileiro mesmo, em sua cultura popular, negra e mestiça, em seus comunitarismos, seus quilombos e religiões, em sua festa e fé, em seus comoventes testemunhos de que uma outra vida é possível, em liberdade e em fraternidade. De Pixinguinha a Paulinho da Viola, de Caymmi a Gilberto Gil, de Gonzagão a Gonzaguinha, de carnavais a maracatus, de candomblés às festas do cristianismo popular, de garrinchas aos capoeiras, essa tradição é muito viva e resistente, em sua célula erótica matriz, a conformar a personalidade e os destinos do humano a uma acumulação egótica de poderes e riquezas.

A consciência socialista dos brasileiros, se vier a se desenvolver, não é externa a esses antiliberalismos, mas, ao contrário, só pode vir a ser um transcrescimento deles. Se for democrática, ela saberá inclusive respeitá-los em seu pluralismo de matrizes e de futuros.

Nosso ponto de vista é que o lulismo é, em seu sentido histórico profundo, uma experiência sintética dessas tradições em movimento, aberto a contradições e múltiplos desdobramentos. Essa liderança, originada nos movimentos classistas do trabalho e na cultura do socialismo, tornou-se brasileira de raiz em sua expansão histórica.

Mas por qual síntese da cultura do povo e dos trabalhadores brasileiros lutamos?

A formação do cidadão socialista

Essa passagem de culturas antiliberais a uma consciência socialista democrática só pode historicamente acontecer no Brasil em um processo de aprofundamento da revolução democrática. Isto é, só pode ser o resultado do próprio processo de autoformação do povo brasileiro em sua conquista de liberdade, de democratização do poder político em todas as suas dimensões econômicas, sociais e culturais.

Lutamos, então, para que essa consciência de liberdade seja anticapitalista, contra o monopólio da propriedade privada dos meios de produção e a mercantilização da vida social, inclusive e principalmente da própria exploração dos trabalhadores. Uma consciência de liberdade que conceba como públicos, para todos, em igual dignidade e valor, os bens e serviços necessários à reprodução da vida social.

Queremos que essa consciência de liberdade seja feminista, porque se não o for isso será uma caricatura de socialismo.

Desejamos que essa consciência de liberdade seja multiétnica, tenha todas as cores e todas as caras, todas as culturas, do povo brasileiro.

Aprendemos que essa cultura da liberdade deve ser ecológica, deve respeitar e amar a vida em todas as suas manifestações, deve criar novas racionalidades e paradigmas da ciência e do desenvolvimento.

Trabalhamos para formar uma linguagem pública da liberdade que seja internacionalista, solidária com as lutas dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo, a começar pelos povos da latino-américa e do continente africano.

Não queremos, enfim, separar mais a condição cidadã – da liberdade, dos direitos humanos e da soberania popular – da consciência socialista porque uma é condição da plenitude da outra.

Temos certeza que essas razões, esses valores, esses sentimentos são de muito forte receptividade na consciência do povo brasileiro, em sua diversidade e em seu pluralismo. A revolução democrática é exatamente esse processo histórico da autoconstrução do cidadão e da cidadã socialistas brasileiros.

* Juarez Guimarães é cientista político, professor na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate e membro da Coordenação Nacional da DS. 

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