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Para a erradicação da violência doméstica e sexual

Nalu Faria

A violência doméstica e sexual, ou violência sexista, é a expressão mais dura da opressão das mulheres. Sabemos que é fruto das relações desiguais e de poder entre homens e mulheres, que expressam de forma mais contundente as contradições dessa relação de poder. Em geral, a violência é exercida por pessoas que estão muito próximas das mulheres: os maridos, amantes, namorados, pais, parentes, amigos e colegas de trabalho. É também um terreno onde nos sentimos permanentemente constrangidas e nos impõem um sentimento de perigo e, portanto, a necessidade de estar sempre em vigília.

A violência foi sempre tão naturalizada que às vezes não nos damos conta, em determinados momentos, que estamos sendo vítimas de violência sexista. Por isso, é importante conceituar  a partir do feminismo o que é violência, ou seja, toda vez que as mulheres somos consideradas coisas, objetos de posse e poder dos homens e, portanto, inferiores e descartáveis. Assim, quando na rua um homem que sequer nos olhou, mas só pelo fato de ser uma mulher nos dirige gracejos e cantadas é a mesma motivação que faz com que eles cometam estupros contra as mulheres. Como se elas estivessem a disposição para que os homens utilizem seus corpos como um objetos.

Como todos outros aspectos da opressão das mulheres, a violência sexista é um fato histórico, foi construída socialmente e tem sua base material na divisão sexual do trabalho, sustentada na construção de uma cultura patriarcal e misógina, que desqualifica as mulheres. A cultura ocidental na qual estamos inseridas está estruturada a partir de representações duais, através de símbolos como Eva e Maria.

As mulheres temos sido consideradas profanas ou virtuosas conforme nos movemos no terreno que a cultura nos destina. Somos qualificadas como puras ou impuras se cumprimos ou não o papel feminino da maternidade, considerado nosso principal papel. Com essas representações definem que devemos ser intuitivas, sensíveis, cuidadoras, delicadas, amáveis, carinhosas e boas donas de casa. As manifestações de violência em geral são justificadas com o argumento de que não estamos cumprindo bem nosso papel. Quando os homens batem nas mulheres justificam-se com o argumento de que elas não fizeram bem o trabalho doméstico, que não se comportaram bem ou coisas do estilo. Igualmente quando freqüentamos os espaços públicos se presume que estamos disponíveis sexualmente e com isso se justifica o assédio ou várias expressões utilizadas com esse fim.

Feminismo: público x privado
O feminismo foi o movimento social que tomou a iniciativa de denunciar essa violência e de lutar contra ela. Trouxe para o espaço público o que se vivia no espaço privado como parte do destino. Com isso desnaturalizou esses fatos e contribuiu para a construção do conceito de perigo que as mulheres vivem enquanto permanecer a violência.

A globalização neoliberal, na verdade, é uma nova expansão imperialista e é resultado da correlação de forças desfavorável para os setores explorados e oprimidos que lutam por sua liberação e conseqüentemente um aumento do poder dos dominadores. As relações produzidas nesse contexto reforçam a desigualdade das mulheres, o que faz com que ocorra uma hegemonia conservadora que fortalece a opressão de gênero, classe, raça e reforça e incrementa ainda mais as formas de dominação e de violência contra as mulheres, assim como aumenta a homofobia.
Também é visível como este sistema neoliberal patriarcal contra-ataca nossas lutas e nossas conquistas, em parte por uma aparente assimilação de aspectos do discurso feminista por parte dos poderes, utilizados para uma maior exploração e opressão sob aparência sutil. Por exemplo, o sistema utiliza nossa linguagem de luta pelo direito das mulheres ao trabalho assalariado para dizer que as mulheres são livres para vender sua força de trabalho e a utiliza indiscriminadamente. Ou seja, que as mulheres devemos estar disponíveis o tempo todo e, portanto, não há limite da jornada de trabalho em nome da flexibilidade. Além do mais, as condições de trabalho atuais revelam formas de violência e maior controle sobre as mulheres. Por exemplo o controle sobre o tempo para as funcionárias irem aos banheiros e até existem maquilas (montadoras) que obrigam as mulheres a usar fraldas para que não tenham permissão para ir ao banheiro.

Esta suposta assimilação do capitalismo, que parecia estar incorporando parte do discurso dos direitos das mulheres, impactou muitos dos movimentos, pois aparentemente havíamos conseguido conquistas. No Brasil, no início dos anos 1990, quando expressávamos alguma visão crítica às propagandas sexistas, era comum ouvir que isso estava mudando e que havia também propaganda com homens nus. Quinze anos depois podemos ver o que significou o incremento da utilização do corpo das mulheres como mercadoria.

Capitalismo e violência sexista
Em outras palavras, a violência contra as muheres está estreitamente conectada com a consolidação do modelo, tanto pela expansão da mercantilização como pela própia utilização das mulheres como mercadorias para exploração e para consumo. Isto está vinculado também à imposição do modelo atual de feminilidade e de um padrão de beleza difundindo que somente aquelas que cumprem com esse padrão poderão, inclusive, obter um melhor trabalho.

O assédio sexual é um componente das relações de trabalho para manter as mulheres com medo e divididas entre elas. Antes, há 25 anos atrás, era muito discutido o assédio nas fábricas, nos bancos, com as secretárias. Hoje sabemos que mulheres que ocupam postos considerados altos também sofrem o assédio.

Assim mesmo, segundo as características associadas à feminilidade, as mulheres têm que demonstrar sensibilidade no trabalho, comunicabilidade, estar sempre sorrindo. Porém vemos que esse incremento da feminilidade cada vez mais coloca as mulheres como seres não pensantes, como se observa nas propagandas, na televisião em que o tempo todo estão nuas ou rebolando. Essa expansão da mercantilização se expressa de forma diversa segundo a situação de raça, classe, etinia ou religião.

Outro aspecto do aumento da violência neste modelo é a prática do tráfico sexual das mulheres e o incremento da prostituição. O tráfico de mulheres é a terceira das mais rentosas máfias. Os números mostram que 75% (3/4) das mulheres que são traficadas não sabem que estão indo para os países do Norte para se prostituirem ou trabalhar na indústria do entretenimento. Quanto ao aumento da prostiutição, vimos dentro de nossos países como a indústria do turismo sexual utiliza as mulheres para obter lucro e cresce o número de meninas na prostituição.

A impunidade sobre as práticas de femicidio moderno fala por si só: a pouca importância que os poderes dão aos assuntos de violência contra as mulheres. Na cidade Juárez (Chihuahua, México), que é uma região de maquiladoras, desde de 1994 começaram a aparecer mulheres mortas e com forte conotação de violência sexual. As jovens que morrem são em sua maioria trabalhadoras das maquilas, entre 14 e 19 anos, que ficam sequestradas por 3 ou 5 dias para depois serem assassinadas. Existem várias organizações que lutam para elucidar esses crimes, porém até agora não há nenhum julgamento e menos ainda condenação. A polícia e os organismos judiciais do México não fazem a investigação e o Estado é cúmplice desse processo, pois jamais conseguiram comprovar um crime.

Outra face da violência sexual é uma questão muito antiga: o estupro das mulheres em situações de guerra ou de incremento da militarização. Como a militarização e a guerra são parte deste modelo, as mulheres seguem sendo vítimas de violência nessas situações.
Nunca é demais relembrar que em uma situação de aumento do individualismo, de fragmentação do tecido social e dos laços de solidariedade ocorre o aumento da violência doméstica, uma vez que na situação de vulnerabilidade em que os homens também se encontram as mulheres, muitas vezes, são seu último e único reduto de poder.

Retrocessos do neoliberalismo
Em nosso Continente, nesta era de neoliberalismo, prevaleceu a visão de resolver estes problemas por meio do desenvolvimento de políticas públicas. No entanto, sob o modelo neoliberal o que prevalece é o Estado mínimo e as pessoas foram reduzidas à condição de clientes, beneficiárias, ou até portadoras de uma patologia social. Então as políticas foram focais e retrocedeu a visão de emancipação ou de garantia de direitos.

Durante os anos 1990 (auge do neoliberalismo) diminuiu consideravelmente a capacidade do movimento de mulheres para responder com radicalidade a esses retrocessos. Reduziu-se o debate e a luta por mudanças ideológicas e foi rabaixando o conteúdo crítico das propostas. E assim cada vez mais a violência doméstica e sexual foi chamada como violência. Em vários documentos as propostas de atenção às mulheres vítimas de violência transitaram de uma visão de garantir a autonomia e a autodeterminação das mulheres para a necessidade de atender a violência em função dos custos econômicos que acarreta, ou no melhor dos casos em nome de uma visão geral. Ou seja, o argumento de que quando as mulheres apanham faltam ao trabalho e aumentam os gastos em saúde pública.

Atualmente vivemos um momento em que outros aspectos podem ser enunciados em relação aos movimentos sociais em geral e ao movimento de mulheres em particular. Temos não apenas o questionamento ao neoliberalismo como modelo, mas a construção de articulações continentais e mundiais na luta contra o livre comércio e as políticas neoliberais. Também no movimento de mulheres há processos de recomposição de campos e articulações com posições mais críticas e até a ampliação da base social do movimento de mulheres, inclusive com a entrada de jovens em várias partes.

Nossa tarefa urgente é vincular e interrelacionar a luta contra a violência doméstica e sexual com a luta global contra o modelo capitalista neoliberal que também é machista, racista e homofóbico. Isto inclui mudanças estruturais, tanto em termos de políticas públicas como a análise do que está passando no cotidiano que reforça outra vez um modelo de feminilidade como uma essência (que em última instância reforça a passividade) e coloca a violência como um problema de saúde, retirando o conteúdo de relações de poder dos homens sobre as mulheres.

É necessário enfrentar as construções da diferença e fazer o debate sobre o que queremos ser como mulheres, que identidades queremos ter. Porque, até agora, nossa identidade está misturada com aspectos que não queremos manter, que também desejamos mudar. A identidade que temos é em parte imposta, na qual não conseguimos decidir como queremos ser.

Na Marcha Mundial das Mulheres começamos uma campanha contra a violência sexista e contra a pobreza. Uma das metas desta luta é propiciar um debate sobre a violência de uma forma mais ampla. Queremos fazer um debate e uma ação política ampla que se antecipe a ocorrência da violência, sendo verdadeiramente preventiva. Para isso cremos que o movimento de mulheres deve construir uma forte e extensa auto-organização das mulheres lutando por autonomia e autodeterminação. E que essa organização das mulheres deve, em conjunto com outros movimentos sociais, construir uma forte mobilização por transformações gerais na sociedade e que inclua o componente feminista nesse projeto.

De fato, participamos cada vez mais em espaços de convergência e articulação. Em nosso continente, estamos envolvidas como mulheres em várias ações como a Campanha Contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), a Campanha Contra a Militarização e também no processo Fórum Social Mundial. Mas levamos para esses espaços o debate concreto da situação das mulheres que inclui o tema da violência. Não vamos conseguir a erradicação da violência sem mudanças estruturais, sem mudanças na cultura e se não conseguirmos que o conjunto dos movimentos sociais incorporem esta luta, até que a sociedade considere inaceitável a violência contra as mulheres.

Síntese da palestra apresentada na Conferência “Hacia Ia erradicación de Ia violencia sexista”, I Foro Social Américas, julho 2004, Quito, Equador.

Nalu Faria é psicóloga, coordenadora geral da SOF – Sempreviva Organização Feminista e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil.

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