Gustavo Aniteli *
Assim como as demais expressões artísticas, a música está à mercê do modo capitalista de produção. Além disso, nos tempos atuais a cultura está subordinada à função de entretenimento. A teórica Hanna Arendt dizia que a cultura de massa cumpria um papel de responder a uma necessidade biológica do indivíduo, que já não mais possuía tempo livre, e sim, um leve descanso ou pausa entre um dia e outro na rotina do trabalho.
Independentemente dos porquês sociológicos que determinam a caracterização das expressões artísticas, fato é que as grandes empresas, partícipes de conglomerados internacionais, tomaram para si a tarefa de produzir, difundir e promover a música no mundo todo, em cada país. A principal cartada foi o domínio das comunicações em toda e qualquer região. Criaram mídias, compraram as existentes, e assim, somente “seus” artistas chegam à população. Foram as rádios o alvo principal das gravadoras, tocando repetidas vezes as mesmas músicas em troca de dinheiro ou presentes. A partir de então, iniciou-se a prática corriqueira chamada no Brasil de jabá.
Lembremos também que, até pouco tempo atrás, era muitíssimo caro produzir um álbum, já que os equipamentos necessários eram inacessíveis para os artistas em geral. Com as grandes gravadoras no domínio absoluto do processo de produção, difusão e promoção, era praticamente impossível qualquer forma de perpetuação e construção de carreira musical independente, sólida e abrangente.
Um novo momento
Mas esse contexto mudou a partir da década de 90, com o aprimoramento das novas tecnologias na área da comunicação, eletrônicos e de produção musical em geral. Os chamados “home studios” surgiram no mercado e aparelhos de captação de áudio e mixagem ficaram mais baratos. Iniciou-se uma explosão de estúdios de pequeno e médio porte, que reaqueceram o mercado para gravação de álbuns oferecendo preços acessíveis para artistas e produtores em geral.
O surgimento do CD também foi um elemento reorganizador, já que essa mídia é de fácil acesso para produtores e consumidores. Qualquer um poderia ter sua própria fábrica e produzir milhares de cópias para venda. A Cia. Musical “Teatro Mágico” vendeu a maioria de seus CDs (cerca de 200 mil) dessa maneira.
Certamente, a internet foi o que mais reconfigurou todo o mercado musical. Essa ferramenta que tem revolucionado o mundo foi capaz de recriar a relação não somente do mercado com o artista, mas também do artista com seu público, já que a comunicação livre permite a troca direta de informações, sem a dependência dos atravessadores da indústria que distanciavam esse elo principal.
Com o surgimento da rede, iniciou-se um processo pouco profetizado pelos teóricos: a cultura de massa perdeu espaço para os nichos outrora isolados em cada canto do mundo. A livre circulação de informação trouxe novos modelos de distribuição e promoção, apresentando artistas novos e derrubando os clássicos.
A transformação da música de bem material para bem imaterial, com a troca de arquivos na rede, é um fator fundamental para as mudanças radicais nesse universo cultural. O sistema dá um golpe em si mesmo e a própria Sony, que atua em diversos ramos e é uma das principais multinacionais da música, está entre as primeiras empresas a comercializar computadores com acesso à internet e gravador de CD.
Essa conjuntura internacional tem provocado uma revolução nas estruturas de poder da grande indústria, pois cada vez se vendem menos CDs e cada vez há menos “super-astros”. É notória a tomada de espaço que alguns gêneros musicais têm alcançado na grande mídia, driblando os escritórios das multinacionais, como tem nos mostrado o funk carioca e o tecno-brega do Pará.
Democratizar de verdade
Perguntamos: por que será que mesmo com a enorme fragilidade da indústria musical e a força das novas mídias ainda não foi possível acabar com o jabá ou com os “artistas inventados”? Nem democratizar de maneira radical o acesso dos artistas a seu público e vice-versa?
É evidente que mercado musical, artistas e público não são elementos descolados de 500 anos de uma sociedade injusta e coronelista como a do Brasil. Sem uma ruptura radical com essa lógica, o velho mercado sempre encontrará alternativas para a perpetuação de seus esquemas de entretenimento, que procuram amortizar o pensamento com o que há de mais preconceituoso, machista, racista e homofóbico. É justamente por isso que acreditamos que militar pela Música Livre é parte de uma luta cotidiana por um país justo, igualitário e democrático.
Não é possível falar em liberdade de acesso aos bens culturais imateriais sendo que menos de 25% da população brasileira tem acesso à internet de boa qualidade. Por isso, é importante um plano nacional da banda larga, pela construção de uma internet pública, gratuita e de qualidade.
Também não é possível falar no fim do jabá se o governo não adotar uma outra política de comunicação, descriminalizando as rádios livres e comunitárias, e criminalizando as que praticam impunemente a repetição das músicas em troca de propina, silenciando a cultura brasileira. Além disso, não podemos nos esquecer da obrigação do governo em fomentar alternativas na televisão brasileira, com novas opções e mecanismos de acesso.
É igualmente necessária a democratização da produção dos álbuns, a partir de uma política de estúdios públicos e livres (a prefeitura de Suzano tem uma experiência interessante). A circulação também deve ser encarada mais seriamente, com investimento na diversidade da cultura brasileira, não apenas em alguns nichos de festivais ou bandas.
Mais do que uma ação, atuar pela música livre é uma postura. Por isso, desde 2008 estamos construindo o movimento Música pra Baixar (MPB). Nossa luta é pela criação de mecanismos mais igualitários e democráticos de produção, distribuição e acesso, à música e à cultura em geral.
* Gustavo Aniteli é sociólogo, um dos organizadores do movimento “Música Para baixar” e produtor executivo da Cia Musical Teatro Mágico.