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Partido no governo ou Governo no partido

Depois de noticiado pela chamada grande imprensa, o documento preliminar do Campo Majoritário é uma referência para o debate na renovação das direções do PT. A alusão é obrigatória porque se trata da maior corrente partidária, e também porque o que tenta elaborar vai contra toda a tradição petista. 25 anos de elaboração partidária são contrapostos a 3 anos de governo. Para efeito de análise, o texto pode ser decomposto em duas partes: a de concepções mais gerais e a que refere ao seu núcleo interpretativo da experiência de governo. Os artigos desta página e da seguinte tratam desses temas

1. A pretensão do texto apresentado pelo campo majoritário é grande: redefinir o programa partidário à luz da experiência de três anos de governo federal. A base para essa redefinição, no entanto, é pequena. Por pelo menos três razões: a experiência de governo não está concluída; o documento tenta superar a contradição entre programa do partido e ação do governo pelo simples arquivamento do primeiro e a tentativa de dar um caráter “programático” ao segundo; o balanço do governo é muito parcial e “à direita” do próprio governo, com graves omissões da ação governamental, justamente as que se relacionam com o programa do PT, como a reforma agrária e, em geral, assumindo o que parece ser o ponto de vista formulado a partir da ótica do Ministério da Fazenda para as várias questões de governo.

2. Ao procurar refletir sobre a experiência do governo Lula, o texto deixa claro que não pretende uma atualização programática, isto é, refletir sobre a prática de governo atual tomando como base a elaboração programática realizada pelo PT no seu conjunto, ou mesmo aquela que se voltou mais especificamente para a hipótese de alcançar a Presidência da República – vale dizer, as plataformas de 1994 e 2001. Na verdade, o texto abandona três das formulações mais clássicas do PT: primeira, a própria idéia de programa de partido, passando a vigorar a idéia deprograma de governo; segunda, por decorrência, a perspectiva de transformação do país (em direção ao socialismo presente nas duas plataformas citadas e muito mais claro ainda no conjunto dos encontros partidários, especialmente no V, VI e VII ENs); terceira, também em conseqüência das anteriores, a diferença entre governo e poder.

3. Depois de transformar o programa histórico do PT em “valores” abstratos, espécie de “quadro na parede” – como a Itabira de Drummond –, o texto fala do mundo e do Brasil sob uma ótica geral de modernização. A perda do sentido geral de programa partidário, da perspectiva de transformação e da distinção entre governo e poder – vale dizer, do socialismo – faz com que adote a perspectiva modernizadora – e isso tem um significado enorme tanto nas ciências sociais como na política de esquerda. Quer dizer, hoje, tomar como padrão civilizatório e horizonte o capitalismo desenvolvido nos chamados países centrais. Desaparecem, portanto, a crítica à globalização capitalista e às instituições de poder dessa globalização. A aspiração proposta para o Brasil parece ser a de tornar-se um sócio menordesse processo de hierarquização do mundo sob os centros de poder do imperialismo e sob os interesses do capital. A OMC é vista, por exemplo, como local privilegiado de disputa e de conquista de posições. A Alca passa a ser vista como oportunidade de negócios, e por aí vai. O texto está à direita da política internacional levada pelo Itamaraty.

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4. A perda do programa histórico do PT leva também à perda de referências históricas, da América Latina e do Brasil. Aliás, é muito sugestivo que o tema da América Latina passe tão longe dos olhos dos autores do texto. Os processos abertos na América Latina, sobretudo na Venezuela, Uruguai, Argentina e tantos outros, de tentativas
de abrir caminho para superação de mais de uma década de neoliberalismo, que em conjunto com o processo brasileiro, são hoje referências obrigatórias para uma política internacional, simplesmente não são tratados.

De forma complementar, o desenvolvimentismo como programa e como experiência histórica é colocado na condição de “desvio” simétrico ao neoliberalismo, quer dizer, ambos devem ser rejeitados. Essa forma de colocar a questão tem um sentido ideológico: ao colocar no mesmo plano os dois “desvios”, o texto tenta formular uma espécie de terceira via tropical, buscando absorver o que julga ser os aspectos positivos de um e de outro. Termina por render homenagens ao mercado e por sugerir ao Estado um papel corretivo de suas “falhas”.

Aqui mais uma falha (não do mercado, mas do texto). Há nele uma boa referência ao papel da sociedade diante dos processos de mudanças sociais: “A democracia, as reformas e as mudanças só avançam quando contam com a luta e o ativismo social da sociedade civil”. No entanto, não há qualquer menção em governar com a mobilização social. Pelo contrário, há uma explícita exaltação do parlamento: “valorização do Congresso Nacional como fonte maior da representação popular”. Apesar de falar da importância da democracia e até de ativismo social como motor das mudanças, nenhuma
linha é dedicada à democracia participativa, seja como parte fundamental de uma reforma política, seja como ação de governo para abrir espaços nessa direção. O texto fala de um republicanismo sem povo.

5. Há uma total ausência de afirmação programática ou de colocar o partido como defensor de seu programa – historicamente construído – diante de um governo de alianças. No governo, o programa do partido desaparece sob um único programa de alianças. “O sentido das alianças e coligações do PT deve orientar-se para a constituição de um bloco programático de forças democráticas e populares, da esquerda ao centro, com vistas a construir projetos comuns.”

O mínimo que se poderia esperar desta formulação é que o partido tivesse um programa mínimo para alianças e que se preservassem concepções básicas delas. A diluição programática fica mais evidente quando a orientação para a formação de alianças é reduzida a que “o PT deve levar em conta critérios para formalizar alianças considerando o compromisso democrático e a conduta ética dos atores envolvidos”.

6. Por fim, o balanço do governo deveria passar, ele próprio, por um balanço detido. Duas questões ao menos devem ser assinaladas. Primeira, a de ser um balanço aquém da ação governamental, pelas flagrantes omissões das reformas de caráter popular em andamento: reforma agrária, reforma universitária, reforma urbana, etc. E não é porque o texto busca uma abordagem mais geral; em algumas situações chega a ser detalhista (por exemplo, quando se mete a definir os currículos educacionais para o século XXI).

Segunda: a avaliação bastante crítica feita pelo texto do significado da economia da era FHC é seguida de uma formulação de política econômica que continua em muitos aspectos a que foi praticada no segundo governo de FHC. Essa é uma contradição importante. Um olhar mais detido poderia apontar outros aspectos deste balanço
parcial, aquém do que faz o governo e, mais uma vez, à direita do próprio governo.

Para os consideram a vitória de Lula em 2002 a abertura de um período de possibilidade de colocar a questão da superação do neoliberalismo, a tarefa de criticar, apontar contradições, limites e retrocessos ao texto preliminar do “campo majoritário” é parte dessa luta.


 

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