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Pedro Passagem | Pedro Tierra

             

Foto: Marcos Lotufo

Talvez ele quisesse com sua passagem neste 8 de agosto de 2020, quando nossa gente assombrada com a irresponsabilidade e o crime reverencia cem mil mortos pela pandemia, resgatar-nos da indiferença que nos aprisiona. Assim fazem os profetas. Não permitem que palavra e gesto se distanciem. Testemunho na vida, testemunho na morte.

Num dos seus livros de poemas (2006) – uma antologia publicada pela Editora Fundação Perseu Abramo sob o título  “Versos Adversos”, escrevi na apresentação:

O Verso e a Vida

“Alceu Amoroso Lima certa vez dividiu os poetas em duas categorias: a dos poetas solitários e a dos poetas solidários. É possível dizer que Pedro Casaldáliga se enquadra nas duas categorias. Sua “arquitetura de passarinho”, para lembrar a expressão com que Fernando Brant o batizou quando escrevíamos a Missa dos Quilombos, sempre envolvida nos conflitos de uma sociedade radicalmente desigual, não dispensa a solitária, íntima, mística contemplação do mundo. Não a contemplação estéril, que percebe os conflitos humanos de forma asséptica, mas a contemplação mística, corporal, de quem se identifica com os oprimidos e faz dela, sem metáfora, sua própria dor. Em suma, esse homem – qualquer que seja a categoria utilizada para definir seu ofício – nasceu irremediavelmente poeta.

É que o catalão Pedro Casaldáliga, esculpiu com férrea disciplina e minúcia – ao atravessar as lutas que trava – essa figura rara no mundo contemporâneo: o poeta, o militante, o profeta fundidos de modo indissolúvel no mesmo homem. A qualidade dos poemas deste pequeno volume (“Versos Adversos”) – comentada pelo professor Alfredo Bosi – traz consigo um outro valor: o valor do testemunho. Alguém já disse que “a poesia é a face impossível da verdade”. A vida de Pedro e os versos que escreve, de algum modo, conferem materialidade a essa intuição sobre o ofício de escrever. Se é verdade que a poesia – ainda que profana tende para a prece, a sua traduz um impulso vital de indignação contra a injustiça, que o aproxima de outro grande poeta que jamais publicou um livro de poemas: o Che; mas , ao mesmo tempo o torna capaz de exercitar com sensibilidade aquela contemplação solidária com o mundo em transe que lhe foi dado viver…

Esse homem luminoso, protegido por uma pequena casa de adobe às margens do Araguaia, prossegue nos enviando alento, estímulo, beleza como quem oferece tijolos para a construção de nossas utopias. E nos ensina a permanente lição de sua própria vida: se é verdade que não se transforma sem lutas uma sociedade, é verdade também que não se transforma qualquer sociedade sem poesia…”

Numa manhã de sábado de 1974, recebemos a visita de solidária de Pedro Casaldáliga. Éramos 42 prisioneiros políticos cumprindo pena no Carandiru, em S. Paulo. Nada em sua presença ou indumentária o distinguia como um príncipe da Igreja. Um bispo. Sua presença ali me comovia. Ele sabia que a maior parte das pessoas que visitava sequer partilhava com ele suas convicções e sua fé. Mas, ele era apenas um homem que estabelecia ali um laço entre homens perseguidos. Oferecemos a Pedro uma par de sandálias que confeccionamos na oficina do Pavilhão 5. Registrei esse encontro com   

Um par de sandálias para o peregrino

    Para Pedro Casaldáliga

Um par de sandálias para o peregrino.

Seja quem for o peregrino que nos vem.

Um par de sandálias para proteger-lhe

os pés da áspera pedra dos caminhos.

Rústicas. Recortadas em couro e utopias.

Trabalhadas pelas mãos de perseguidos

que lavram, na sombra, a frágil matéria dos dias.

(Na larga história do tempo

a noite, sem saber, foi condenada

ao círculo perfeito da agonia:

mãe e coveira da manhã anunciada.)

Recolhemos sonhos, dores, esperanças,

polimos penas, tormentos, fúrias

e o impulso elementar de liberdade

que orientam os passos desse estranho peregrino.

Buscam o martírio? O martírio não se busca,

se vive. Como se vive

“la muerte que da sentido a mi vida…”

Percorrerão o pó dos caminhos,

a vasta geografia do drama urdido

pelos filhos de êxodo e da miragem.

Por nossas mãos que trabalharam

o couro, a borracha, as fivelas,

a fugitiva parcela de sonhos que cultivamos.

As sandálias do peregrino vão palmilhar

os desertos da alma, a impossível alegria do povo

para oferecer o bálsamo da palavra

e, quem sabe, os leites minados da lua

para nutrir como seiva

a esperança que nos mantém pulsando.

E para repetir com ele:

“me atengo a lo dicho: la esperanza”.

(Poema recuperado de uma carta manuscrita a meu irmão fr. Airton Pereira OP. Provavelmente enviada do Carandiru, 1974). Pedro Tierra.

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