Por Daniel Gaspar *
Do mar de bandeiras que foram revigoradas nos últimos meses pelas manifestações populares, uma vem tomando proporções nunca dantes vista no cenário político brasileiro: a luta pela desmilitarização da polícia. Muito presente nos movimentos da juventude negra, que lutam contra um extermínio que remonta aos capitães-do-mato do Brasil-colônia, a discussão sobre uma outra polícia vem sensibilizando, em especial, jovens das classes médias.
A solidariedade contra a violência policial e pelo direito à manifestação, além dos problemas impostos pelo mercado às vidas nas cidades, foram estopins das passeatas de junho e vem, até hoje, impulsionando debates através das forças e movimentos vivos na sociedade, e gerando iniciativas legislativas, como a PEC 51, apresentada pelo Senador Lindbergh Farias do PT-RJ.
A unificação das polícias, a criação de uma carreira, a desvinculação em relação ao Exército, dentre outras medidas, são importantes para mudarmos nossa polícia. No entanto, não podemos tratar a desmilitarização da polícia como uma panacéia que fará sumir do mapa os abusos, detenções arbitrárias, indiciamentos esdrúxulos e execuções praticados por agentes do Estado todos os dias. A militarização fincou raízes simbólicas nos meios sociais que não são simples de serem arrancadas.
A cultura da militarização
O problema da militarização não resolve-se apenas com mudanças, ainda que muito bem-vindas, no desenho institucional das polícias: há uma cultura socialmente arraigada de militarização, que é alimentada pelo modelo de sociedade em que vivemos. Dos males do neoliberalismo, um dos que obteve maior permanência foi o Estado Penal, fundado na mão vazia do Estado nas políticas sociais e em sua mão pesada com as “políticas de segurança” destinadas à pobreza.
A ideia de que o Rio de Janeiro passa por uma guerra civil – muito embora o número de homicídios nos façam pensar nisso – coloca em relevo um dos pilares da militarização: a necessidade de aniquilar o inimigo comum, o outro, o diferente. Aqui, os pobres, jovens negros e agora os que tomam as ruas contra os efeitos de um projeto de existência mercantilizado.
Tem forte papel também o medo, um potente legitimador social das violências, que é socialmente construído e disseminado pelos grandes jornais. Notem a quantidade de capas de jornal e programas televisivos que tratam, exclusivamente, de “crimes macabros”. A indústria da segurança privada agradece.
Outro alicerce da política de combate ao inimigo comum é o sistema penal e carcerário brasileiro, que é extremamente seletivo, uma vez que sua clientela principal é pobre e negra, e é deveras estigmatizador. O processado criminalmente e o preso são despidos de seus direitos e desumanizados. O encarceramento em massa faz com que as prisões tornem-se máquinas de hemodiálise. O sujeito sai renovado e organizado para o crime, vide os altos índices de reincidência delitiva no Brasil.
De lambuja, a militarização também nos oferece o não pensar, o não refletir, que é um instrumento próprio do Exército: cumprem-se ordens sem questionamento, afinal, guerra é questão de vida ou morte e não se pode esperar um debate em torno de um determiando comando. Naturalizam-se encarceramentos em massa, violações de direitos, as balas – de verdade e de borracha.
Para além de mudanças institucionais na organização e no papel das polícias, é preciso combater a até então hegemônica cultura da militarização. E isso se faz com mais participação e luta política, com mais debates, e com políticas públicas que tenham como princípio ético a promoção de uma cultura de paz e de respeito aos direitos humanos.
* Daniel Gaspar é advogado da Caarj e mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (RJ).
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