Para o especialista em políticas públicas Armando Simões, de 47 anos, está na hora de começar a imaginar o que a redução da pobreza pode fazer pela educação. Simões investigou se o Bolsa Família, maior programa de transferência condicionada de renda do mundo, influenciaria positivamente a aprendizagem dos alunos cujas famílias recebem o benefício. Defendida na Universidade de Sussex, na Inglaterra, a tese de doutorado de Simões apontou uma redução de 76% no gap, ou seja, na diferença do resultado medido pela Prova Brasil entre escolas cuja maioria dos estudantes recebe o benefício em comparação com escolas sem alunos beneficiários. Ele considerou casos em que o tempo médio de participação no programa aumenta de um para quatro anos. O programa também afetaria o abandono e a aprovação. Especialista do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Simões conversou com Carta na Escola, por telefone, sobre o Programa Bolsa Família e os resultados de sua pesquisa.
Carta na Escola: Por que investigar efeitos do Bolsa no desempenho escolar?
Armando Simões: As análises de programas de transferência condicionada de renda mostram evidências fortes de efeito positivo na matrícula escolar e na redução do abandono. Mas poucos estudos detectam efeitos específicos sobre a aprendizagem. Se os objetivos das transferências condicionadas de renda passam por ampliação no longo prazo no capital humano das famílias de renda mais baixa, é necessário que não haja só matrícula e permanência na escola, mas também progressão no ciclo escolar, associado à aprendizagem. Havia o que chamo de “elo perdido” nas evidências: é possível identificar redução do abandono, a manutenção da criança na escola e avanços na promoção escolar, mas havia a contradição forte de não se encontrarem avanços na aprendizagem. Portanto, tentei explorar a experiência do Bolsa Família, utilizando dados do Prova Brasil de 2005 e de 2007 dos alunos do 5º ano. Junto a esses dados agreguei informações sobre o tempo de permanência da família no programa e o valor do benefício per capita, duas variáveis até então inexploradas nas pesquisas internacionais. Essa pista foi dada pelos estudos americanos, que encontravam resultados na aprendizagem só depois de três anos no programa.
CE: O efeito não é imediato?
AS: Alguns efeitos são, como a permanência na escola. A condicionalidade induz ao cumprimento da frequência escolar, inclusive com exigência superior à da Lei de Diretrizes Básicas, que estabelece o mínimo de 75%. A condicionalidade é mais rigorosa, exige 85%. O segundo efeito é a matrícula, ou seja, você tem uma indução forte de que as crianças sejam de fato matriculadas na idade certa. Estudos mostram que, quanto maior a idade de ingresso na escola, menor é a chance de a criança concluir a escolaridade obrigatória. Outro efeito imediato, embora nesse campo os estudos sejam um pouco mais controversos, é que existem evidências de redução do trabalho infantil brasileiro.
CE: E quanto aos efeitos de médio e longo prazo?
AS: Os efeitos de médio prazo são a promoção escolar e os resultados na aprendizagem. Há também os efeitos de longo prazo, associados não somente à conclusão do ciclo escolar obrigatório, mas também à criação de oportunidades futuras de continuidade de estudos. Ou seja, há a ampliação das oportunidades de inclusão social e econômica dessas crianças no futuro.
CE: Quando se compara o resultado dos alunos do 5º ano na Prova Brasil, as crianças beneficiárias obtêm 20 pontos a menos do que as não beneficiárias no teste de Português. O que significa essa diferença de resultados?
AS: Essa diferença é encontrada entre alunos beneficiários e não beneficiários no exame da Prova Brasil de 2005. A diferença em Matemática é de 16 pontos e de 20 pontos em Português. Tento mostrar que existe uma correlação entre renda per capita da família e o resultado no exame. Para dar um significado prático para essa diferença, faço um paralelo com o tempo de escolarização. No caso de Matemática, há uma diferença de cinco meses de escolarização e de Português, sete.
CE: Em que medida o tempo de participação no programa e o valor per capita repassado para a família ajudam a reduzir essa diferença?
AS: Há uma redução de 14,5 pontos entre escolas com 80% de beneficiários e escolas sem alunos beneficiários quando se comparam diferentes tempos de participação no programa. A diferença de pontuação é de 19 pontos quando os alunos beneficiários possuem 12 meses de participação. Quando a participação dos alunos passa para 48 meses, a diferença cai para 4,5 pontos, aproximadamente. É uma diferença da ordem de 14,5 pontos. Ou seja, o maior tempo de participação reduz a diferença de desempenho entre escolas com alunos beneficiários e escolas sem alunos beneficiários. É uma redução grande, 76% do gap, ou seja, da diferença de resultados entre beneficiários e não beneficiários.
CE: E quanto ao valor per capita repassado para as famílias?
AS: No caso do efeito do valor per capita, essa diferença se traduz nas taxas de aprovação escolar. Cada real a mais no valor per capita representa um aumento de 0,6% na taxa de aprovação das escolas, nas quais mais de 80% dos alunos são beneficiários. O fator tempo também aparece como influente nas taxas de abandono: o acréscimo de um ano no tempo de participação reduz 0,8% na taxa de abandono. Sempre lembrando que esse resultado de aprendizagem é baseado na Prova Brasil de 2005, no 5º ano. Não podemos extrapolar esse resultado para qualquer ano da escolaridade.
CE: Qual é a importância de se analisarem as duas variáveis conjuntamente?
AS: Não dá para avaliar efeitos educacionais de programas de transferência de renda como o Programa Bolsa Família sem levar em consideração o tempo de participação e o valor per capita pago. O produto dessas coisas é o que podemos chamar de dose do programa. Quanto maior o beneficio pago e maior o tempo de participação, maior a dose do programa. Imagine uma família que entrou este mês e receba 100 reais, tem uma dose menor do programa do que uma família que recebesse só 70, mas está há 12 meses. Multiplicar o número de meses pelo valor médio per capita que a família recebe é a dose do programa. É o que faz a diferença nos efeitos educacionais. Essa é a ideia que está argumentada na tese de por que internacionalmente não se encontrarem resultados na aprendizagem. É porque não se consideraram as duas variáveis simultaneamente.
CE: Por que receber o benefício se reverte em melhora da aprendizagem?
AS: São derivações dos efeitos imediatos. O Bolsa Família afeta diretamente fatores que interferem no resultado da aprendizagem, como a frequência, que está associada ao desempenho: o aluno que vai à aula tem maiores chances de desempenho. Por outro lado, o aumento da exigência da presença na escola invariavelmente reduz a chance de envolvimento da criança e do jovem no trabalho, seja ele remunerado ou não. O programa também favorece o ingresso na escola na idade certa. Há também as condições materiais. Esse é o grande impacto: além de reduzir a pobreza, garantir que essas crianças estarão alimentadas, menos vulneráveis a condições de doença ou situações que a tirem da escola, isso certamente possibilita melhora no desempenho. Há também múltiplos efeitos na condição na família. A maior segurança econômica reduz o nível de estresse dos pais e melhora o seu bem-estar psicológico, fatores que interferem na qualidade e na dedicação dos pais aos filhos, que é outro elemento que deve ser levado em consideração. Parece algo trivial, mas não é. Transformar a percepção de segurança econômica de uma família faz diferença nas expectativas que ela tem com relação a seus filhos. Ou seja, transforma o grau de disponibilidade das famílias de investirem no longo prazo nessas experiências.
CE: Podemos afirmar que, além de aumentar a aprovação e reduzir o abandono, o Bolsa Família estaria reduzindo as desigualdades educacionais?
AS: Sim. Obviamente, as desigualdades nos resultados dependem de outros fatores que não a condição das famílias, como o padrão de oferta e qualidade da escola. Só que existe um componente da desigualdade associado à condição de pobreza, é ele que o Bolsa Família ajuda a reduzir. A pobreza tem um efeito sobre as desigualdades educacionais do mesmo modo que a desigualdade educacional vai ter um efeito de longo prazo sobre a pobreza. O que a teoria do capital humano diz é que é preciso equilibrar as oportunidades educacionais para reduzir a pobreza no futuro, só que a pobreza afeta as desigualdades educacionais no presente. Se a pobreza no presente não diminuir, não é possível gerar benefícios reais a partir da oferta de serviços educacionais, ao menos para os que vivem em extrema pobreza. Há um mínimo necessário para que a prestação de serviços universais como a educação se converta em benefício real. A educação é uma atividade que exige do sujeito condições de atuação no processo educacional. Só que a qualidade e as condições para essa atuação estão fortemente determinadas pelas condições sociais e familiares. Os efeitos da pobreza se manifestam contra a educação de muitas formas: desde os aspectos de investimento de tempo e dinheiro pelas famílias até dimensões subjetivas e de bem-estar psicológico, de estresse com relação ao dia a dia, as oportunidades de convivência social e outras também afetadas pelas condições de renda. Por isso é que eu digo no artigo: está na hora de pensarmos não só no que a educação pode fazer para a redução da pobreza, mas o que a redução da pobreza pode fazer para a melhora da educação. O direito à educação pressupõe um direito anterior, que é um direito a uma renda mínima que assegure a condição da família de evoluir da extrema pobreza. É como se a garantia da renda fosse um pré-requisito para a garantia do indivíduo à educação.
CE: Por que ainda há resistência de algumas parcelas da população brasileira em relação a programas como o Bolsa Família?
AS: Acho que parte dessa crítica se origina do desconhecimento das pessoas e de informação. Muitos países desenvolvidos mantêm programas permanentes de transferência de renda e de benefícios ligados à criança. Livro recente da professora Célia Lessa conta o histórico da política social e da constituição dos Estados do Bem-Estar Social no mundo. Ela mostra claramente que os países desenvolvidos usaram as políticas sociais como mecanismo de construção do equilíbrio necessário para o processo de desenvolvimento. Outra parte da crítica ainda é resquício de uma visão preconceituosa, arcaica, em relação às populações pobres, que entendem que a pobreza é resultado das escolhas dos indivíduos ou de certa incapacidade de trabalharem, o que não é verdade. As causas da pobreza são inúmeras, mas a pobreza em massa é fruto de uma estrutura social que reproduz através de gerações esse status quo. Quando olhamos para a história das políticas sociais, vemos políticas sociais defensoras de oferecer as piores condições possíveis aos pobres, porque entendia qualquer benefício como desincentivo ao trabalho e à iniciativa de superar a pobreza. Essa visão é ultrapassada. Os estudos mostram o contrário. Quando o mínimo social que permite segurança para a família é assegurado, a tendência é de aumentar a participação no mercado de trabalho e não diminuir.