Reflexões ajudam a pensar caminhos para reduzir sobrecarga enfrentada pelas mulheres.
Que políticas públicas ajudam a reduzir a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados para que as mulheres tenham mais tempo para si próprias? Como pensar projetos de saneamento, gestão de recursos hídricos e energéticos que, ao mesmo tempo, considerem a perspectiva de socialização dos cuidados das pessoas entre mulheres, homens e toda a sociedade? Como organizar a agroindústria com essa perspectiva? Como pensar a interrelação entre os cuidados nos território rurais, indígenas e quilombolas e urbanos? Como criar territórios abertos para o ócio e o lazer das mulheres e de toda a sociedade, com a perspectiva do autocuidado e do cuidado comunitário? Como construir um ordenamento territorial sob o paradigma do cuidado das pessoas e da natureza e não o da especulação imobiliária?
Temas como esses foram trazidos por pesquisadoras, movimentos de mulheres e feministas, sindicalistas, quilombolas, gestoras públicas em nível municipal, estadual e federal, estudantes e demais participantes do seminário “Política Nacional de Cuidados: caminhos para a garantia da autonomia econômica das mulheres”, realizado pelo Ministério das Mulheres nos dias 6 e 7 de dezembro de 2023, em Brasília (DF), com transmissão online.
O evento se organizou em torno a painéis de debates que abordaram a divisão sexual do trabalho no Brasil e os desafios para uma política nacional de cuidados, os impactos e significados do trabalho reprodutivo na vida das mulheres, as demandas por cuidados e os desafios na elaboração da política nacional.
“O cuidado é um direito e uma necessidade de todas as pessoas e é um trabalho que consome muitas horas diárias de milhões de mulheres no Brasil e no mundo inteiro, especialmente das mulheres mais pobres, das mulheres negras, as mulheres que vivem na zona rural ou nas periferias urbanas. Além disso, o cuidado é um bem público essencial sem o qual a força de trabalho não se reproduz, a economia, a sociedade, as instituições não funcionam”, destacou Laís Abramo, secretária nacional da Política de Cuidados e Família (SNCF) do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).
“O Ministério das Mulheres tem a responsabilidade de pensar a questão das mulheres. São as mulheres que estão 17 horas a mais que os homens nas tarefas de cuidado. Precisamos ser muito ousadas. Não podemos discutir a questão do cuidado a partir única ou exclusivamente da educação ou da creche, que são direito das crianças prioritariamente. Precisamos sair do campo comum”, destacou a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves. “Queremos discutir a divisão sexual do trabalho a partir de como vamos mudar a cabeça dos homens para que eles possam dividir o trabalho doméstico. Isso é o debate que tem que ser feito”, completou.
“O tema do cuidado não é só um tema de governo, é de cada um, cada uma de nós porque, em diferentes momentos da vida, mais ou menos, nós precisaremos ser atendidos ou atender essa demanda de cuidado que é uma demanda de dimensão humana que precisa ser dividida com o estado, a sociedade e os homens”, afirmou Neuza Tito, diretora de Autonomia Econômica e Cuidado, destacando a importância de construir um sentido comum para o conceito de cuidados.
Trabalho de cuidado: produção do viver
Helena Hirata, do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique) da França, recuperou o significado da divisão sexual do trabalho, que atribui principalmente às mulheres no âmbito doméstico ou em instituições de cuidado o trabalho doméstico e de cuidados de outras pessoas – crianças, pessoas com deficiência, doentes ou idosos. “Isso cria assimetrias grandes entre homens e mulheres e injustiça social, pois não permite que as mulheres possam trabalhar fora, ter uma profissão, tempo de lazer ou de respiro”, lembrou Helena. Ela ainda reforçou que o conceito de divisão sexual do trabalho parte de uma definição ampla de trabalho incluindo trabalho profissional e doméstico, formal e informal, remunerado e não remunerado. “Esse trabalho de reprodução da vida, de reprodução social, é uma produção do viver. Esse trabalho é produtivo e reprodutivo ao mesmo tempo”, explicou.
Além das desigualdades entre homens e mulheres, as painelistas destacaram que há imbricações de gênero, sexualidade, raça e classe na realização do trabalho de cuidados. Para estarem liberadas para o mercado de trabalho formal, um polo minoritário de mulheres profissionais intelectuais precisa do trabalho de um polo majoritário de mulheres, com salários baixos, para suprir sua demanda de cuidados no interior da família. E as desigualdades se acirram em um cenário de crise do modelo de reprodução social, com o envelhecimento da população e o avanço do conservadorismo e das políticas neoliberais, com reformas trabalhistas, previdência, privatizações ou cortes de serviços públicos e mais precarização geral da vida.
Alguns dados
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), quase 2,3 bilhões de pessoas demandarão algum tipo de cuidado até 2030. No Brasil, o número da população trabalhadora nos cuidados praticamente dobrou em cerca de 10 anos: em 2007, esse número era de 894.417. Já em 2018, havia cerca de 1.610.000 cuidadoras que trabalhavam no âmbito doméstico ou em instituições de cuidados, sem contar as trabalhadoras domésticas que também cuidam de crianças, idosos e doentes nas casas.
O cuidado condiciona também o destino de muitas mulheres jovens, entre 15 e 29 anos. Segundo dados do IBGE, 97% do total de jovens que indicam ser o trabalho doméstico ou de cuidados de parentes o principal motivo para não terem buscado trabalho mas que gostariam de trabalhar são mulheres, das quais 76,5% são mulheres pretas ou pardas. Ao todo, em 2022, foram mais de 2,5 milhões de mulheres jovens que relataram não poder trabalhar devido ao cuidado de parentes ou de tarefas domésticas.
Esse número é maior ainda se ampliar para o universo de mulheres de todas as faixas etárias: 32% das mulheres que não procuraram trabalho relataram ter que cuidar dos afazeres domésticos, dos filhos ou de parentes, correspondendo a cerca de 13,6 milhões de mulheres (Boletim trimestral do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, da Unicamp, a partir dos dados da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – contínua de 2023).
Rumo à Política Nacional de Cuidados
Em março de 2023, o Ministério das Mulheres criou um grupo de trabalho interministerial (GTI) para a elaboração de uma Política Nacional de Cuidados. A criação da política parte do princípio de que todas as pessoas, ao longo da vida, ofertam e demandam cuidados, sobretudo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, lembrando que o trabalho de cuidado consiste em dar uma resposta concreta em relação às necessidades do outro.
Rosane da Silva, secretária nacional de Autonomia Econômica e Política de Cuidados do ministério, explicou que valorizar os territórios e espaços de convivência é uma das preocupações na elaboração da política nacional de cuidados, que necessariamente será diferente para grandes e pequenas cidades, mundo rural, comunidades quilombolas ou indígenas. “Temos debatido no GTI quais são os públicos prioritários para essa política olhando para essa realidade”, completou Rosane. Isso inclui, por exemplo, a experiência das trabalhadoras domésticas, das trabalhadoras rurais, das mães solos.
As escutas feitas pelo GTI incluíram conversas durante a Marcha das Margaridas e a Marcha das Mulheres Indígenas, encontros das trabalhadoras domésticas, mulheres quilombolas, movimentos feministas como a Marcha Mundial das Mulheres (MMM), a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e a União Brasileira de Mulheres (UBM), além de mais de 13 rodas de conversa, da realização do seminário e de uma consulta online. “Ainda temos muitas escutas a fazer. Temos feito com os setores organizados da sociedade e também temos a escuta pública que qualquer pessoa pode acessar até 15 de dezembro”, explicou Rosane. “Também temos insistido com gestoras municipais e estaduais e parlamentares de realizar audiências públicas para tratar do tema que podem ser gravadas e acessadas posteriormente. Também queremos que os movimentos sociais também articulem diálogos sobre o tema”.
Além de edital para formação política na área do cuidado, o ministério das Mulheres trabalha no sentido de organizar ações para assessorar gestoras em nível estadual e municipal, onde há dificuldades estruturais básicas, como falta de computadores e apoio de equipe, necessários para acessar os instrumentos das políticas públicas.
A consulta online pode ser acessada clicando AQUI.
Saiba mais
O seminário “Política Nacional de Cuidados: caminhos para a garantia da autonomia econômica das mulheres” está disponível online na plataforma Youtube nos links:
Dia 1 (06/12/2023): https://www.youtube.com/watch?v=sPhGn73RuWE
Dia 2 (07/12/2023): https://www.youtube.com/watch?v=V0nv8FmbxuA
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Alessandra Oshiro Ceregatti é jornalista, militante feminista da Marcha Mundial das Mulheres e do PT de Ubatuba/SP.